O ESGAR DO CRÂNIO NU: a construção da imagem do corpo em Hilda Hilst e Iberê Camargo

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PROGRAMA DE PÓS-­‐GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS DOUTORADO

O ESGAR DO CRÂNIO NU: a construção da imagem do corpo em Hilda Hilst e Iberê Camargo André Araújo de Menezes Tese apresentada ao Programa de Pós-­‐ graduação em Estudos de Linguagens do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais -­‐ CEFET-­‐MG -­‐ como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Estudos de Linguagens. Orientador: Prof. Dr. Wagner José Moreira Belo Horizonte CEFET/MG 2018


M543e

Menezes, André Araújo de. O esgar do crânio nu : a construção da imagem do corpo em Hilda Hilst e Iberê Camargo / André Araújo de Menezes. - 2018. 318 f. : il. Orientador: Wagner José Moreira Tese (doutorado) – Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens, Belo Horizonte, 2018. Bibliografia. 1. Camargo, Iberê, 1914-1994. 2. Hilst, Hilda, 1930-2004. 3. Corpo humano. 4. Intermidialidade. 5. Sinais e símbolos - Na arte Tradução. I. Moreira, Wagner José. II. Título. CDD: 401.41 Ficha elaborada pela Biblioteca - Campus I – CEFET-MG Bibliotecário: Wagner Oliveira Braga CRB6 - 3261


Dedico este trabalho à todos os mestres das artes que de uma forma ou de outra influenciam meu trabalho


Agradecimentos Agradeço ao Programa de Pós-­‐Graduação em Estudos de Linguagens do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Cefet-­‐MG, por aceitar este projeto de pesquisa. À Fapemig (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais), por tornar possível esta pesquisa, através do seu imprescindível apoio financeiro. Ao Cefet-­‐MG, que me proporcionou um ensino gratuito de qualidade. Ao meu ilustre orientador, Professor Doutor Wagner José Moreira, por ter acolhido esta pesquisa com entusiasmo, atenção e cuidado e por criar um espaço de trabalho em que a franqueza e absoluta liberdade intelectual estiveram sempre presentes. A ele, minha imensa gratidão. Aos Professores da banca de qualificação, Prof. Dr. Pablo Gobira e o Prof. Dr. Mário Alex Rosa, pela generosidade que tanto contribuiu para a realização deste trabalho. Agradeço também a Simone, Raul e Antonio pela paciência. Um agradecimento muito especial a Maria de Lourdes por todo o apoio logístico, sem ele nada seria possível. E a todos que direta ou indiretamente me auxiliaram na execução deste estudo. A todos vocês, muito obrigado.


Porque o corpo é de luta e não de perfumaria. Hilda Hilst Sempre nadei contra a corrente. Só o peixe morto é levado pela maré. Iberê Camargo


Resumo Esta tese aborda a construção da imagem do corpo, nas pinturas de Iberê Camargo, produzidas entre os anos de 1980 até 1994, ano de sua morte, e no livro Fluxo-­‐ floema (1970) de Hilda Hilst. Estuda, assim, o processo criativo, a partir das relações entre as linguagens verbal e não-­‐verbal, no contexto dos diálogos poéticos entre literatura e artes plásticas, sob a luz da intermidialidade e da tradução intersemiótica. Identifico correspondências entre as pinturas de Iberê Camargo e o livro de Hilda Hilst Hilst no que diz respeito à representatividade do corpo, apresentado sob a estética do fragmento, do grotesco e do abjeto na obra destes dois artistas. Como forma suplementar às análises aqui apresentadas, desenvolvo uma série pictórica composta por pinturas, desenhos, gravuras, fotografias, performance, animações e vídeo. Demostrando na prática a recriação e a transposição intermidiática entre linguagens de códigos diferentes. Palavras-­‐chave: Iberê Camargo; Hilda Hilst; Corpo; Intermidialidade; Tradução Intersemiótica.


Abstract This thesis deals with the body image's construction in the Iberê Camargo's paintings, produced between the years of 1980 until 1994, the year of his death, and in the Hilda Hilst's book Fluxo-­‐floema (1970). Studying this way, the creative process based on the relationship between verbal and non-­‐verbal languages, in the context of poetic dialogues between literature and the visual arts, under the light of intermidiality and intersemiotic translation. I identified correspondences between Iberê Camargo's paintings and Hilda Hilst Hilst's book on the representativeness of the body, presented under the aesthetics of the fragment, the grotesque and the abject in the work of these two artists. As a supplement to the analyzes presented here, I developed a pictorial series composed of paintings, drawings, prints, photographs, performance, animations and video. Demonstrating in practice, the re-­‐ creation and the intermiditic transposition between languages of different codes. Keywords: Iberê Camargo; Hilda Hilst; Body; Intermidiality; Intersemiotic Translation.


ÍNDICE DE FIGURAS Figura de capa -­‐ Andre Araujo, Fuxo-­‐floema (detalhe), 2017-­‐2018. Técnica mista sobre tela. 300 x 150 cm................................................................................................................... capa Figura 1 -­‐ Gustave Moreau. A aparição, óleo sobre tela. 142 x 103 cm, 1874-­‐1876. Museu Gustave Moreau, Paris............................................................................................................. 36 Figura 2 -­‐ Gustave Moreau. A aparição, aquarela, 72 x 105 cm, 1876. Museu Gustave Moreau, Paris.............................................................................................................................................. 36 Figura 3 -­‐ Auguste Rodin. Homem andando, bronze, 86 cm x 56 cm x 28 cm, 1877– 1878. Museu Rodin, Paris...................................................................................................................... 43 Figura 4 -­‐ Auguste Rodin. Assemblage: Mask of Camille Claudel and Left Hand of Pierre de Wissant, gesso, 42 cm x 26,5 cm x 27,7 cm, 1895. Museu Rodin, Paris.......... 43 Figura 5-­‐ Auguste Rodin, aquarela, 21 x 31 cm, 1876. Museu Rodin, Paris................... 43 Figura 6 -­‐ Auguste Rodin, Iris, mensageira dos deuses com uma bênção de êxtase para homens e mulheres, 82.7 x 69 x 63 cm, bronze, 1895. Museu Rodin, Paris...................... 43 Figura 7 -­‐ Gustave Coubert, A origem do mundo, óleo sobre tela, 46 x 55 cm, 1866. Museu d’Orsay, em Paris....................................................................................................................... 44 Figura 8 -­‐ Iberê Camargo, Os pés do mingote, 1989. Guache e lápis stabilotone sobre papel, 70 x 50 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre............................................................................................................................................................. 46 Figura 9 -­‐ Iberê Camargo, Acidente em Angra, 1989. Nanquim sobre papel, 33,5 x 22,7 cm. Col. Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre. ..... 46 Figura 10 -­‐ Casa do Sol. foto: Pio Figueiroa. ............................................................................... 88 Figura 11 -­‐ Giotto, A ressurreição de Lázaro, 1304. Cappella degli Scrovegni, Padova, Itália. ............................................................................................................................................................118 Figura 12 -­‐ Juan de Flandes, A ressureição de Lázaro, 1519. Óleo sobre tábua de madeira de pinus, 110 x 84 cm. Museu do Prado, Madrid....................................................118 Figura 13 -­‐ Frame do filme Hilda Hilst pede contato de Gabriela Greeb, filmado na Casa do Sol. 2018....................................................................................................................................123 Figura 14 -­‐ Iberê Camargo, Pintura, 1979. óleo sobre tela. 65 x 92 cm. Coleção Christóvão de Moura.............................................................................................................................145


Figura 15 -­‐ Iberê Camargo, Retrato de Estácio Kramer da Luz, 1947. óleo sobre tela, 91 x 63 cm. Coleção Bruno Giorgi, Rio de Janeiro.....................................................................146 Figura 16 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1942. Lápis conté sobre papel. 29,6 x 31,3 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...............145 Figura 17 -­‐ Iberê Camargo, Face, 1984. óleo sobre tela, 40 x 57 cm. Coleção Cláudio Gil. Rio de Janeiro, RJ.............................................................................................................................149 Figura 18 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1984. guache, 56 x 76 cm. Coleção Galeria Tina Presser. Porto Alegre, RS.....................................................................................................................149 Figura 19 -­‐ Iberê Camargo, Espaço com figura III, 1965. óleo sobre tela, 130 x 184 cm. Coleção Maurício Bacellar, Rio de Janeiro, RJ.............................................................................153 Figura 20 -­‐ Iberê Camargo, Ciclistas no Parque da Redenção, 1989 (detalhe). óleo sobre tela, 95 x 212 cm. Coleção José Otávio Montessanti...................................................155 Figura 21 -­‐ Iberê Camargo, Série ciclistas, 1990(detalhe). óleo sobre tela, 145 x 185 cm. Coleção particular..........................................................................................................................155 Figura 22 -­‐ Iberê Camargo, No vento e na terra II, 1992. Óleo sobre tela, 200 x 283 cm. Coleção Isabela Prata............................................................................................................................156 Figura 23 -­‐ Iberê Camargo, Manequim, 1986. óleo sobre tela, 42 x 30 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre................................158 Figura 24 -­‐ Iberê Camargo, Diálogo, 1987. óleo sobre tela, 42 x 30 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre.............................................158 Figura 25 -­‐ Iberê Camargo, A Idiota, 1991. óleo sobre tela, 155 x 200 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre................................260 Figura 26 -­‐ Iberê Camargo, Figuras 3, 1994. serigrafia, 70,3 x 50 cm. Edição encomendada pela ƒiat do Brasil S.A. como um presente da empresa aos seus clientes e colaboradores, ao final de 1994....................................................................................................161 Figura 27 -­‐ Iberê Camargo, Modelos, 1994. gravura em metal, 19,6 x 15 cm. Última gravura elaborada por Iberê Camargo. Acervo Fundação Iberê Camargo....................161 Figura 28 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1993. Guache e lápis stabilotone sobre papel, 50 x 70 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...........................................................................................................................................................162


Figura 29 -­‐ Iberê Camargo, No vento e na terra I, 1991. Óleo sobre tela, 200 x 283 cm. Coleção APLUB.........................................................................................................................................165 Figura 30 -­‐ Iberê Camargo, Iberê, 1987. Óleo sobre tela, 78 x 55 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre.............................................167 Figura 31 -­‐ Iberê Camargo, Autorretrato, 1984. Óleo sobre tela, 25 x 35 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre................................167 Figura 32 -­‐ Iberê Camargo, Autorretrato, 1979. Pastel oleoso sobre papel, 25 x 35 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...........................................................................................................................................................167 Figura 33 -­‐ Iberê Camargo, Eu e signos, 1981. Óleo sobre madeira, 30 x 42 cm. Coleção Fernando Baril .......................................................................................................................168 Figura 34 -­‐ Iberê Camargo, Eu, carretéis e dados, 1983. Óleo sobre tela, 65 x 92 cm. Coleção João Borges Fortes Filho....................................................................................................168 Figura 35 -­‐ Iberê Camargo, Gelson, 1992. Óleo sobre tela, 185 x 146 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre................................169 Figura 36 -­‐ Iberê Camargo, Retrato (Jane e Mariza), 1987. Óleo sobre tela, 184 x 130 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre......169 Figura 37 -­‐ Iberê Camargo, Retrato, 1991. Óleo sobre tela, 155 x 200 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre................................169 Figura 38 -­‐ Iberê Camargo, Maria, 1990. Óleo sobre tela, 155 x 200 cm. Coleção Paula e Jones Bergami.......................................................................................................................................169 Figura 39 -­‐ Iberê Camargo, Retrato, 1987. Óleo sobre tela, 150 x 93 cm. Coleção Vanda Klabin ............................................................................................................................................169 Figura 40 -­‐ Iberê Camargo, Fantasmagoria, 1986. Óleo sobre tela, 180 x 213 cm. Coleção Josef Rupp ................................................................................................................................170 Figura 41 -­‐ Iberê Camargo, Ciclista, 1988 (detalhe). Óleo sobre tela, 200 x 236 cm. Coleção particular..................................................................................................................................171 Figura 42 -­‐ Iberê Camargo, Homem de bicicleta, 1989. Óleo sobre tela, 42 x 30 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...............171 Figura 43 -­‐ Iberê Camargo, Fantasmagoria IV, 1987. Óleo sobre tela, 200 x 236 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...............172


Figura 44 -­‐ Iberê Camargo, Pintor e Signos, 1981. Óleo sobre tela, 100 x 173 cm. Coleção Ita Batistela Scaff...................................................................................................................173 Figura 45 -­‐ Iberê Camargo, Figura, 1943. Gravura em metal, 21,1 x 19,7 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre................................174 Figura 46 -­‐ Iberê Camargo, Figura deitada, 1993. Gravura em metal, 9,7 x 15,2 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...............174 Figura 47 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1991. Guache e lápis stabilotone sobre papel, 50,2 x 35,2 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...........................................................................................................................................................175 Figura 48 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1988. Lápis stabilotone sobre papel, 32,4 x 23,5 cm. Col. Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre.....175 Figura 49 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1973. Nanquim sobre papel, 14,3 x 11,2 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...............177 Figura 50 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1990. Caneta esferográfica sobre papel, 9,5 x 15,8 cm. Col. Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre.....177 Figura 51 -­‐ Iberê Camargo, Erótica 1, 1987. Litografia, 42,4 x 32,1 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre.............................................178 Figura 52 -­‐ Iberê Camargo, Erótica 2, 1987. Litografia, 42 x 28,6 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre.............................................178 Figura 53 -­‐ Iberê Camargo, Erótica 3, 1987. Litografia, 48,6 x 17,2 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre.............................................178 Figura 54 -­‐ Iberê Camargo, Erótica 4, 1987. Litografia, 48,6 x 17,2 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre.............................................178 Figura 55 -­‐ Iberê Camargo, Crepúsculo de Restinga Seca, 1993. Óleo sobre tela, 65 x 92 cm. Col. Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre........180 Figura 56 -­‐ Iberê Camargo, Mulher e manequim, 1989. Óleo sobre tela, 42 x 30 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...............180 Figura 57 -­‐ Iberê Camargo, Mulher 2, 1993. Gravura em metal, 15,1 x 9,6 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre................................182


Figura 58 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1991. Guache e lápis stabilotone sobre papel, 25 x 35 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...........................................................................................................................................................182 Figura 59 -­‐ Iberê Camargo, Tudo te é falso e inútil IV, 1992. Óleo sobre tela, 200 x 236 cm. Col. Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...............183 Figura 60 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1991. Caneta esferográfica sobre papel, 24,1 x 32 cm. Col. Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre........184 Figura 61 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1991. Grafite, caneta esferográfica e nanquim sobre papel, 24,1 x 32 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre..........................................................................................................................184 Figura 62 -­‐ Oswaldo Goeldi, Sem título, 1940. Xilogravura, 21 x 27,3 cm. Coleção Museu Nacional de Belas Artes , Rio de Janeiro........................................................................188 Figura 63 -­‐ Iberê Camargo, Músicos, 1987. Litografia, 25,9 x 26,1 cm. Coleção Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, Porto Alegre, RS.............................................188 Figura 64 -­‐ Marcel Duchamp, Étant donnés: 1° la chute d'eau, 2° le gaz d'éclairage, 1945 -­‐ 1966. Instalação. Col. Philadelphia Museum of Art, Philadelphia, PA, US.......190 Figura 65 -­‐ Hans Bellmer, A Boneca, 1936. Fotografia, 11,7 x 7,6 cm. Coleção Museu de Arte Moderna de Nova York, USA..............................................................................................190 Figura 66 -­‐ Man Ray, O manequim de Man Ray, negativo 1938; impressão 1966. Fotografia, 19,2 x 14,2 cm. Coleção Particular...........................................................................190 Figura 67 -­‐ Giorgio De Chirico, O Filho Pródigo, 1922. Óleo sobre tela, 87 x 59 cm. Galeria de Arte Moderna de Milão, IT............................................................................................191 Figura 68 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1991. Óleo sobre tela, 42 x 30 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre................................192 Figura 69 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1989. Caneta esferográfica e nanquim sobre papel, 34 x 23 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...........................................................................................................................................................192 Figura 70 -­‐ Iberê Camargo, Tudo te é falso e inútil V, 1993. Óleo sobre tela 200 x 250 cm. coleção particular...........................................................................................................................193 Figura 71 -­‐ Iberê Camargo, Suíte Manequis III, 1986. Serigrafia, 70,3 x 50 cm. Max Stolz Galerie, Curitiba, PR....................................................................................................................193


Figura 72 -­‐ Iberê Camargo, Manequins, 1985. Serigrafia, 36,5 x 55,2 cm. Acervo BRDE.............................................................................................................................................................194 Figura 73 -­‐ Iberê Camargo, Figuras e Manequins, 1985. Serigrafia, 31,3 x 45, 1 cm. Gravura encomendada para a Galeria Studio de Arte Cláudio Gil, como presente aos seus clientes e colaboradores............................................................................................................194 Figura 74 -­‐ Iberê Camargo, Manequim e Ciclista, 1992. Gravura em metal, 24,6 x 29,5 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre......194 Figura 75 -­‐ Iberê Camargo, Manequim e Modelo, 1992. Guache e lápis stabilotone sobre papel, 70 x 50 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre..............................................................................................................................................194 Figura 76 -­‐ Iberê Camargo, O Relógio, 1988. papel, 33,3 x 22,4 cm. Estudo para ilustração do conto. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...............................................................................................................................................197 Figura 77 -­‐ Iberê Camargo, O Relógio, 1988. Guache, lápis stabilotone, caneta esferográfica, grafite e nanquim sobre papel, 32,9 x 22,1 cm. Estudo para ilustração do conto. Col. Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre...197 Figura 78 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1988. Guache, lápis stabilotone, caneta esferográfica, grafite e nanquim sobre papel, 33 x 22,1 cm. Estudo para ilustração do conto. Col. Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre.........197 Figura 79 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1988. Nanquim sobre papel, 33 x 22 cm. Estudo para ilustração do conto. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre..........................................................................................................................197 Figura 80 -­‐ Iberê Camargo, Monturo, 1984. Óleo sobre tela, 95 x 212 cm. Coleção Manuel Otávio Pereira Lopes. São Paulo, SP...............................................................................198 Figura 81 -­‐ Iberê Camargo, Homem, 1984. Óleo sobre tela, 60 x 120 cm. Coleção Waldir Martins Fontes, São Paulo, SP............................................................................................214 Figura 82 -­‐ Iberê Camargo, Medo, 1985. Óleo sobre tela, 65 x 92 cm. Coleção Celma Albuquerque.............................................................................................................................................217 Figura 83 -­‐ Cueva de las Manos........................................................................................................218 Figura 84 -­‐ Cueva de las Manos........................................................................................................218


Figura 85 -­‐ Iberê Camargo, Hora V, 1983. Óleo sobre tela, 95 x 212 cm. Coleção João Sattamini, comodante Museu de Arte Contemporânea de Niterói....................................218 Figura 86 -­‐ Iberê Camargo, Hora VIII, 1984. Óleo sobre tela, 93 x 132 cm. Coleção Roque Sut Ribeiro...................................................................................................................................219 Figura 87 -­‐ Iberê Camargo, Hora VI, 1984. Óleo sobre tela, 95 x 212 cm. Coleção particular....................................................................................................................................................219 Figura 88 -­‐ Iberê Camargo, Hora VII, 1984. Óleo sobre tela, 93 x 132 cm. Coleção Márcia e Luiz Chrysostomo................................................................................................................220 Figura 89 -­‐ Iberê Camargo, Grito, 1984. Óleo sobre tela, 132 x 93 cm. Coleção particular ...................................................................................................................................................221 Figura 90 -­‐ Iberê Camargo, Hora II, 1984. Óleo sobre tela, 132 x 93 cm. Coleção Gustavo Rabello Arte.............................................................................................................................230 Figura 91 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1983. Acrílica sobre papel, 900 x 300 cm. Outdoor.......................................................................................................................................................234 Figura 92 -­‐.................................................................................................................................................234 Figura 93 e 94 -­‐ Iberê pintando o outdoor comemorativo de Ano Novo no ateliê da Rua Lopo Gonçalves, Poto alegre, 1983. Fotos: Martin Streibel.........................................236 Figura 95 -­‐ Iberê Camargo, Estudo para outdoor comemorativo de Ano Novo, 1983. Grafite sobre papel, 25 x 18 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre..........................................................................................................................236 Figura 96 -­‐ Iberê Camargo, Estudo para outdoor comemorativo de Ano Novo, 1983. Grafite sobre papel, 25 x 18 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre..........................................................................................................................236 Figura 97 -­‐ Iberê Camargo, Estudo para outdoor comemorativo de Ano Novo, 1983. Nanquim sobre papel, 22 x 33 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre..........................................................................................................................236 Figura 98 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, da série Desastre, 1987. Grafite e lápis Stabilotone sobre papel 21 x 31,7 cm. Coleção Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre.............................................................................................................237 Figura 99 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1991. Caneta esferográfica sobre papel, 23 x 34 cm. Col. Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre........239


Figura 100, 101, 102 -­‐ Iberê Camargo, ilustrações para o conto "O rato". 1990. Nanquim sobre papel, 21 x 31, cm cada. Col. Maria Coussirat Camargo -­‐ Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre ............................................................................................................241 Figura 103 -­‐ Iberê Camargo, À beira da lagoa, 1988. Lápis Stabilotone sobre papel, 33,1 x 22 cm. Col. Maria Coussirat Camargo, Fund. Iberê Camargo, Porto Alegre. ...242 Figura 104 -­‐ Iberê Camargo, Ilustração para o conto "À beira da lagoa", 1988, tinta de esferográfica e nanquim sobre papel, 33,4 x 22 cm. Col. Maria Coussirat Camargo, Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre........................................................................................242 Figura 105 -­‐ Pintura de Hilda Hilst. ..............................................................................................244 Figura 106 -­‐ Pintura de Hilda Hilst. ..............................................................................................244 Figura 107 -­‐ Pintura de Hilda Hilst. ..............................................................................................245 Figura 108 -­‐ Desenho de Hilda Hilst. ...........................................................................................245 Figura 109-­‐ Abby Warburg, Atlas Mnemosine, painel 47, 1944 a 1929. .......................249 Figura 110 -­‐ Gerhard Richter, Atlas, 1962 a 2013 (in progress) .....................................249 Figura 111 -­‐ Andre Araujo, Atlas, 2018-­‐2019 (in progress)...............................................251 Figura 112 -­‐ Andre Araujo, Cadernos de processo, 2015 a 2019 (in progress)..........254 Figura 113 -­‐ Andre Araujo, Antes da sombra, 300 x 100 cm (tríptico) 100 x 100 cm cada painel. Técnica mista sobre tela. 2017................................................................................254 Figura 114 -­‐ Pedro Américo, Tiradentes esquartejado, 1893. Óleo sobre tela, 170 x 165 cm. Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora (MG).....................................................258 Figura 115 -­‐ Cândido Portinari, Braço de Tiradentes, 1949. Gravura em metal, 39,5 x 26,5 cm.......................................................................................................................................................258 Figura 116 -­‐ Cândido Portinari, Tiradentes, 1948. Têmpera sobre tela, 309 X 1767 cm. COLEÇÃO: Fundação Memorial Da América Latina, São Paulo, SP...........................258 Figura 117 -­‐ Andre Araujo, Sem título, 2018. Téc. mista sobre tela, 30 x 40 cm.......259 Figura 118 -­‐ Andre Araujo, Sem título, 2018. Téc. mista sobre tela, 30 x 40 cm.......260 Figura 119 -­‐ Andre Araujo, Sem título, 2018. Téc. mista sobre tela, 30 x 40 cm.......260 Figura 120 -­‐ Andre Araujo, O pogo é fogo, 2017. 60 x 35 cm. Técnica mista sobre tela (tríptico), 20 x 35 cm cada painel....................................................................................................261 Figura 121 -­‐ Andre Araujo, Ode ao fim dos tempos, 2018. Técnica mista sobre tela 60 x 80 cm........................................................................................................................................................261


Figura 122 a 125 -­‐ Andre Araujo, Sem título. Téc. mista sobre tela, 30 x 40 cm.......262 Figura 126 -­‐ Andre Araujo, A casa da senhora H, 2018. Acrílica sobre tela, 120 x 80 cm (bíptico), 60 x 80 cm cada painel..............................................................................................262 Figura 127 -­‐ Andre Araujo, Ruiska, 2018. Técnica mista sobre tela, 28,5 x 57 cm. (bíptico)......................................................................................................................................................263 Figura 128 -­‐ Andre Araujo, Sem título, 2018. Téc. mista sobre tela, 30 x 40 cm.......263 Figura 129 -­‐ Andre Araujo, A mulher do Cornudo com a figueira à janela, 2018. Técnica mista sobre tela, 30 x 40 cm.............................................................................................264 Figura 130 -­‐ Andre Araujo, Corpo terra, 2018. Técnica mista sobre tela, 28,5 x 57 cm. (bíptico)......................................................................................................................................................264 Figura 131 -­‐ Andre Araujo, Corpo de luta, 2016. Nanquim e caneta esferográfica sobre papel, 33,5 x 45,5 cm................................................................................................................267 Figura 132 -­‐ Andre Araujo, Corpo terra, 2016. Nanquim sobre papel, 33,5 x 45,5 cm...................................................................................................................................................................267 Figura 133 -­‐ Andre Araujo, Divina Trindade, 2017. Pastel oleoso e colagem sobre papel, 31 x 42 cm.....................................................................................................................................268 Figuras 134 a 139 -­‐ Andre Araujo, Sem título, 2018. Nanquim sobre papel, 17 x 17 cm..................................................................................................................................................269 Figura 140 -­‐ Andre Araujo, Lázarus, 2018. Aquarela sobre papel, 17 x 17 cm..........267 Figura 141 -­‐ Andre Araujo, Lázarus, 2018. Nanquim e caneta posca sobre papel, 17 x 17 cm..................................................................................................................................................267 Figura 142 -­‐ Andre Araujo, Lázarus, 2018. Nanquim sobre papel, 17 x 17 cm..........270 Figura 143 a 146 -­‐ Andre Araujo, Entranhas da d'alma, 2018. Gravura digital, 31 x 42 cm............................................................................................................................................................275 Figura 147 -­‐ Andre Araujo, Série RESTOS DE NADA, 2018. Fotografia..............277 a 280 Figura 148-­‐ Andre Araujo, Performance Corpo Terra, 2018..................................281 e 282 Figura 149 a 153 -­‐ Andre Araujo, Adobe Photoshop, animação. ....................................284 Figura 154 a 158 -­‐ Andre Araujo, Livro de artista Olho de Cão, 2016..........................291 Figura 159 a 161 -­‐ Andre Araujo, Livro artista Fluxo-­‐floema, 2018..............................294 Figuras 162 a 168 -­‐ Andre Araujo, Frames do vídeo NADANADA, 2018.....................303


Sumário Introdução................................................................................................................................................................ 19 Cap.1. A construção da imagem do corpo................................................................................................31 2.1. O corpo fragmentado...........................................................................................................................36 2.2. O corpo grotesco....................................................................................................................................44 2.3. O corpo abjeto.........................................................................................................................................51 Cap.2. Hilda Hilst: corpo e alma................................................................................................................... 59 2.1. Da crítica....................................................................................................................................................59 2.2. Fluxo-­‐floema: a imagem do corpo estranho.............................................................................. 64 2.3. "Fluxo": o corpo grotesco...................................................................................................................72 2.4. "Osmo": decifra meu corpo ou eu te devoro..............................................................................98 2.5. "Lázaro": o corpo reencarnado.....................................................................................................108 2.6. "O Unicórnio": o corpo bestial.......................................................................................................124 2.7. "Floema": o corpo na mesa de dissecação................................................................................135 2.8. Inconclusões.........................................................................................................................................138 Cap.3. Iberê Camargo: o corpo trágico...................................................................................................139 3.1. Da crítica.................................................................................................................................................141 3.2. Pinturas de 1980-­‐1994: Corpos densos....................................................................................150 3.3. Conclusão: In progress......................................................................................................................197 Cap.4. Hilda Hilst e Iberê Camargo: o esgar do crânio nu.......................................................... 199 4.1. O corpo político.............................................................................................................................................229 4.2. Um esgar mais que imperfeito................................................................................................................244 Cap. 5. O corpo intersemiótico....................................................................................................................246 5.1. Série NADANADA................................................................................................................................253 5.1.1. Pinturas............................................................................................................................. .........253 5.1.2. Desenhos.....................................................................................................................................263 5.1.3. Gravuras......................................................................................................................................269 5.1.4. Fotografias.................................................................................................................................274 5.1.5. Animação....................................................................................................................................281 5.1.6. Livro de artista.........................................................................................................................284 5.1.7 Vídeo..............................................................................................................................................292 Conclusão................................................................................................................................................................302 Referências............................................................................................................................................................305


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INTRODUÇÃO Esta tese aborda a construção da imagem do corpo nas pinturas de Iberê Camargo produzidas entre os anos de 1980 até 1994, o ano de sua morte, e o livro Fluxo-­‐ floema (1970) de Hilda Hilst. Desse modo, considerei como hipótese central de trabalho o fato de existirem elementos comuns entre as obras escolhidas de Iberê Camargo e o livro Fluxo-­‐floema de Hilda Hilst no que diz respeito à construção da imagem do corpo em suas obras. Considerando a questão do diálogo entre artes de diferentes linguagens, no caso, a literatura e a pintura, sob a luz da intermidialidade e da tradução intersemiótica. Minhas questões de pesquisa articulam-­‐se a partir desse eixo triplo: o livro de Hilst, a pintura de Iberê e a construção da imagem do corpo na obra desses dois artistas. Uma da literatura e outro da pintura. Assim, como pensar um conceito de corpo que seja suficientemente geral para artes visuais e literatura e que seja também suficientemente peculiar para responder aos problemas específicos? Qual a importância da modernidade na formação dos artistas no que diz respeito à representação da imagem do corpo nas artes visuais e na literatura? De modo geral e especificamente, como o problema da construção da imagem do corpo aparece na crítica da obra de Hilda Hilst e de Iberê Camargo? Na visão particular do pintor e da escritora sobre as suas próprias obras, como se dá a construção da imagem do corpo? Existe um diálogo entre o conjunto de obras de Iberê Camargo selecionado para esta pesquisa e o livro Fluxo-­‐floema de Hilda Hilst, no que diz respeito à construção da imagem do corpo? Se existe, é a intermidialidade um caminho apropriado para o estudo desse diálogo interartes? As indagações expostas no decorrer da tese tornam-­‐se hipóteses de trabalho que são testadas, descartadas, mantidas ou retomadas de modo mais complexo, segundo o conjunto de informações que minha pesquisa vai acrescentando, a partir da relação entre teorias e análises das obras.


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Considerei, para o estudo desses diálogos entre a obra de Camargo e de Hilst, a importância do contexto cultural, social, histórico e artístico ao qual as obras pertencem e se inserem, tendo como base declarações do pintor e da escritora e também a fortuna crítica dos trabalhos aqui analisados. Também considerei a integração do conceito de intermidialidade com o estudo acerca da representatividade do corpo, para a constituição de uma metodologia para este trabalho. Minha primeira justificativa é a ausência de estudos acadêmicos sobre as correspondências intermidiáticas existentes entre o livro Fluxo-­‐floema de Hilda Hilst e as pinturas de Iberê Camargo especificamente as pinturas figurativas do período entre 1980 e 1994. Tal justificativa faz desta tese não apenas um lugar para investigação da obra desses artistas a partir de questões específicas, mas também uma oportunidade para a apresentação de (parte) da obra desses dois nomes tão representativos na fortuna cultural brasileira, de modo sistemático e abrangente, buscando cobrir uma pequena parte de suas longas trajetórias artísticas. A segunda justificativa é a da atenção própria à questão do corpo na literatura e na pintura, de modo geral. Ou seja, parte do princípio que parece incontestável de que onde há arte, sempre existe um corpo. "O corpo pode estar lá representado figurativamente, aos pedaços, residualmente, metafórica ou iconicamente, ou seja, até mesmo como uma possibilidade e não como existente." (GREINER, 2005; p. 112-­‐ 113). Justifica-­‐se também, pensar de forma específica a obra de Hilda Hilst e de Iberê Camargo, sob o foco da construção imagética do corpo, assim como a reflexão teórica sobre o corpo no que diz respeito à obra desses dois artistas. O que apresentarei mais especificamente no capítulo 1, que dedico exclusivamente aos conceitos relacionados ao corpo. A terceira justificativa é a necessidade de estudar a questão da intermidialidade, pela necessidade de apresentar um panorama de seu desenvolvimento conceitual, que surge a partir de um campo distinto: o da tradução intersemiótica. Acredito que tais práticas estabelecem um campo intermidiático em que convergem os problemas de diálogos entre linguagens de diferentes códigos, no caso a literatura e a pintura,


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oferecendo uma entrada promissora para a compreensão de um tempo -­‐ o nosso tempo -­‐ cuja proximidade de produções tão heterogêneas desafia o nosso olhar. Como qualquer investigação de fundo hipotético, esta tese se construiu pela ligação de fatos, de conceitos e de intuições sobre os problemas. A partir desses fundamentos básicos desenvolveu-­‐se de forma progressiva e buscou evidenciar em sua própria estrutura a construção da pesquisa, ao contrário de apresentar questões preestabelecidas. Como sou artista plástico, como forma de suplementar minha pesquisa, usei os fundamentos da tradução intersemiótica para produzir uma série prática de obras plásticas que dialoga com o livro Fluxo-­‐floema de Hilda Hilst e com as pinturas de Iberê Camargo, aproximando os trabalhos do pintor e da escritora do meu trabalho e de outros artistas da arte contemporânea. A pesquisa em artes visuais implica um trânsito ininterrupto entre prática e teoria. Os conceitos extraídos dos procedimentos são investigados pelo viés da teoria e novamente testados em experimentações. Dessa forma, passamos sem cessar do exterior para o interior e vice-­‐versa. A teoria alimenta-­‐se da subjetividade e da vivência prática do artista, ao mesmo tempo em que reafirma ou coloca em discussão questões oriundas da própria maneira de trabalhar. Uma vez pinçados das condutas instauradoras da obra tais questões balizam a pesquisa teórica. A pesquisa em artes visuais parte da maneira como a obra é feita, e frequentemente a investigação teórica indica novas possibilidades para a resolução de procedimentos técnicos. Nesta pesquisa o fator de motivação criativa é apreendido a partir dos estudos do objeto. Diferente da pesquisa sobre artes, que é aquela onde o pesquisador trabalha com artistas e obras pré-­‐definidas podendo fazer articulações com a história da arte e a crítica da arte, na pesquisa em artes o artista-­‐pesquisador produz concomitantemente à parte teórica uma parte prática. Acredito que a pesquisa sobre artes foi de suma importância nesta tese, onde pude correlacionar tanto o trabalho de Hilda Hilst quanto o de Iberê Camargo com artistas que, posso dizer, "influenciaram" e também artistas "companheiros de estrada" tanto de Hilst quanto de Camargo. E também fazer correlações com artistas contemporâneos que


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produzem hoje, trabalhos que dialogam com os trabalhos de ontem, do pintor e da escritora. Esta tese constrói-­‐se a partir de vários desvios, e por meio deles construí meu método de trabalho. Entendo estes desvios como um sentido quase metodológico de deslocamentos, recuos, avanços e mudanças de trajetórias ao longo de um caminho. A priori meu objeto de pesquisa era a trilogia obscena de Hilda Hist: O caderno rosa de Lori Lambi, Cartas de um sedutor e Contos d'escárnio, textos grotescos. Como já havia trabalhado a questão do erotismo e da pornografia no mestrado, pretendia continuar essa pesquisa no doutoramento. Minha proposta era identificar graus de picturalidade nessas três obras de Hilda Hilst e traduzi-­‐los intersemioticamente para a linguagem visual. Cheguei a desenvolver um livro de artista, Olho de Cão (2016), baseado no livro Contos d'escárnio, textos grotescos, que apresentarei mais adiante, no capítulo 5. O trabalho andou, a pesquisa avançou, e no decorrer dela senti a necessidade de mudar radicalmente o meu objeto de estudo: troquei a trilogia obscena pelo livro Fluxo-­‐floema e acrescentei a obra de um pintor para o diálogo intermidiático. Minha pesquisa é, antes de tudo, um processo, um trânsito ininterrupto entre teoria e prática que a cada movimento me suscitou novas perspectivas e assim novos caminhos a seguir. É o que explica Sandra Rey: Duchamp, não sem ironia, estabelece seu "coeficiente de arte" na "distância entre intenção do artista e a obra acabada". Então o projeto na pesquisa em artes visuais, equivaleria a um projétil, algo que é lançado com uma mira. Mas o caminho exato que irá percorrer nunca saberemos. Pierre Soulages declara que "o que eu faço me esclarece o que procuro” revelando, de certo modo, a cegueira do artista no processo de criação. (REY, 2002, p. 134)

Outro fator importante a ressaltar é que a inserção do trabalho de Iberê Camargo ampliou a pesquisa sobre artes, permitindo-­‐me situar a obra de Camargo e de Hilst em contextos históricos, sociais e culturais específicos, e fazendo-­‐me entender o conceito de arte de cada época, de cada sociedade, de cada classe social, bem como o conceito de obra e até mesmo o de artista. Icleia Cattani explica:


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A pesquisa sobre arte deve inter-­‐relacionar as instâncias histórica, teórica e crítica. Essas instâncias, que compreendem também, em seu cerne, a estética e a filosofia da arte, compõem os fundamentos teóricos das artes visuais, ou seja, a produção de conhecimentos, sob a forma de discursos, que se elabora a partir de, ou simultaneamente à produção artística. (CATTANI, 2002; p. 42)

Apresento um conjunto de reflexões ligadas a uma estrutura geral de pensamento relacionadas à História da Arte e aos Estudos Literários que delimitaram os discursos de Iberê Camargo e de Hilda Hilst e da fortuna crítica de seus trabalhos ao conceito de representação do corpo. Chego ao campo da intermidialidade no sentido de adequá-­‐la à nossa questão e finalmente apresentá-­‐la como uma ferramenta para a análise das obras de Iberê Camargo e do livro de Hilda Hilst. Os "diálogos" suscitados por essa tríade -­‐ pinturas de Camargo, livro de Hilst e a imagem do corpo -­‐ são conduzidos à luz da intermidialidade, que é um campo teórico em processo, que abriga perspectivas e linhas teóricas múltiplas. Trata-­‐se de um campo de interseção que tem a intenção de abrir tanto a discussão quanto à criação de objetos de caráter heterodoxo, por ser atravessado por fontes teóricas, mídias e regimes de signos diversos. O termo intermidialidade, segundo Irina O. Rajewsky, surgiu nos anos de 1990 e está relacionado, basicamente, aos vários modos possíveis semioticamente para produções textuais que ultrapassam os limites do verbal para atingirem outros sistemas semióticos/de linguagens. O principal divulgador da intermidialidade é Claus Clüver, que vem substituindo a denominação "estudos interartes" por "estudos intermidiais ou intermidiáticos" (RAJEWSKY, 2012, p. 16). Há muito tempo existe um discurso preocupado com a interface entre as diversas artes, e esse discurso é um elemento chave nos estudos de artes apresentadas em códigos diferentes. A intermidialidade começou a ganhar os contornos de um campo de investigação autônomo, devido ao fato das produções culturais contemporâneas mostrarem uma variedade de textos e hipertextos visuais, verbais, musicais, cinéticos, performativos e digitais que não se circunscrevem em uma categoria disciplinar restrita.


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Intermidialidade diz respeito não só ao que em geral se chama de “arte”, mas também às “mídias” e seus textos, que incluem não apenas as mídias impressas, mas também o Cinema, a Televisão, o Rádio, o Vídeo, bem como as novas mídias eletrônicas e digitais. Uma mídia pode ser o próprio corpo, o óleo sobre a tela, o pincel e a tinta, ou ainda, a câmera de vídeo, ou instrumentos como piano e flauta, a voz, a caneta, o papel, o pergaminho, o tecido. Num outro sentido, a mídia equivale à “arte”, isto é, dança, arquitetura, escultura, escrita, vídeo e mídias digitais1. Portanto, ao não tomar um caminho direto e preestabelecido, busquei a mesma fluidez e surpresa da pincelada na pintura no desenvolvimento das questões desta tese, ora traçando seus contornos e texturas exteriores, ora buscando, a partir de seu interior, a configuração conceitual da estrutura da forma. Do mesmo modo, a apresentação das teorias de maneira mais ampla possível, e a aplicação dos pensamentos que considerei mais pertinentes de forma mais específica foram os meios que encontrei de ser o máximo explícito e abrangente na redação desta tese. Ainda que seguindo uma trajetória indireta, múltipla e rizomática, é importante ressaltar que meu objeto central -­‐ a construção da imagem do corpo no livro de Hilda Hilst e nas pinturas de Iberê Camargo -­‐ está presente em diferentes níveis, nos capítulos desta tese. A intermidialidade é o estudo que se dedica ao cruzamento de fronteiras entre diferentes mídias. Esta tese então, em termos intermidiáticos, estuda as fronteiras permeáveis entre a mídia verbal (o livro Fluxo-­‐floema de Hilst) e a mídia visual (as pinturas de Camargo). Esta pesquisa não pretende identificar traduções entre as obras aqui estudadas, tanto porque as obras foram produzidas por seus autores sem este fim. A intermidialidade foi aporte quanto à identificação de picturalidade no texto de Hilst e a aproximação desses marcadores de picturalidade com a pintura de Camargo. É o que Agnaldo José Gonçalves chama de "homologias de procedimento", quando analiso as obras levando em consideração as especificidades de cada gênero, para assim caminhar para uma compreensão dos objetos. Para comparar as duas artes, fez-­‐se necessária uma análise dos próprios objetos aqui apresentados, e assim, 1-­‐ Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/intermidia2017/ > Acesso 17/05/2017.


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a análise das suas relações estruturais. Dizer que esse estudo busca a homologia estrutural, ou homologia de procedimentos, entre literatura e pintura, é buscar identificar correspondências expressivas de procedimentos entre artes distintas. A intermidialidade é um conceito que se articula na multiplicidade, no diálogo, na parceria. Na intermidialidade acontece um cruzamento, uma contaminação de uma mídia por outra. Pode-­‐se afirmar que desse cruzamento "nasce" um terceiro objeto. Podemos pensar que toda criação artística sempre vem acompanhada de outros "textos" precedentes a ela, ou seja, toda pintura tem sua tradição e todo texto é uma intertextualidade de outros textos e, segundo Clüver, "a intertextualidade sempre significa também intermidialidade" (CLÜVER, 2011, p.17). É o que explica Maria do Carmo Freitas Veneroso: Considerando as artes plásticas como um sistema de significação, que tem signos tal qual a escrita, podemos ler a arte do século XX, principalmente a arte mais recente, como um processo intertextual de reescrita de outros textos. A intertextualidade designa o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que irradia sentidos. A produção do outro “texto” se dá através de processos de rapto, absorção e integração de elementos alheios na criação da obra nova. Essa relação não se dá como uma relação de mera influência, mas de diálogo. (VENEROSO, 2012, p.82)

O texto de Veneroso mostra claramente a multiplicidade que se apresenta na composição de uma obra. Tal composição é a absorção e integração de outros textos. São conexões de conexões e, como um agenciamento, a composição está em conexão com outros agenciamentos. A arte torna-­‐se um reflexo do mundo contemporâneo, do hibridismo, do múltiplo, do caos. Além da intermidialidade também utilizei o biografismo para as análises dos objetos. Entendo que o biografismo não é uma ferramenta definitiva em uma análise de obras de arte. Porém, nos casos de Hilda Hilst e de Iberê Camargo, observei que suas vidas refletiram muito em suas obras. Se arte é vida nela haverá, ainda que minimamente, reflexos da existência de quem a produziu. Como explica Juarez Guimarães Dias:


26 Alguns traços biográficos dessa escritora [Hilda Hilst] metamorfoseiam-­‐se em fala, adentrando o corpo de linguagem e afetando a sua expressividade... n' O Unicórnio, a voz da escritora emerge com muita clareza na narrativa para quem conhece seus traços biográficos e de personalidade. (DIAS, 2010, p.40)

Quem conhece a biografia de Hilda Hilst sabe que muitas passagens de sua vida aparecem, mesmo que disfarçadas, na vida de seus personagens. Como por exemplo, a inúmeras menções à santas e padres, remetem ao fato de Hilst ter vivido durante sua infância em um convento de freiras. A loucura que ronda seus textos, pode remeter ao fato de seu pai ter ficado louco e morrer em um sanatório. Esse episódio em sua vida a marcou profundamente. A figueira, o "pátio de pedras perfeitas" é uma alusão à parte da Casa do Sol, onde a escritora viveu e escreveu toda a sua obra. Outros fatores que apresento no capítulo 2, onde trato da obra de Hilst evidenciando muitas passagens de sua vida presentes nos seus personagens: Hilda estudou durante oito anos como interna no Colégio de Freiras Santa Marcelina, em São Paulo, ambiente evocado na sua dramaturgia (A Possessa, Rato no Muro), na narrativa O Unicórnio, deste volume [Fluxo-­‐floema] e também na poesia: Os amantes no quarto Os ratos no muro A menina Nos longos corredores do colégio. (ROSENFELD, 1970, p.10-­‐11)

A biografia também é uma marca indelével na obra de Iberê Camargo. Quando pintava abstrato informal era seu próprio corpo que estava presente na pintura através de marcas autográficas -­‐ no empastelamento da pintura, nos rastros de pinceladas -­‐ elementos que denunciam a presença do corpo do artista. Quando, em outra fase, surgiram objetos na tela, eram carretéis e dados que o pintor foi resgatar no pátio de sua memória, nos brinquedos da sua infância, no regresso ao Sul, que ele considerava o colo de sua mãe, elementos que também remetem à pessoa do artista. Ao se aproximar da década de 1980 Iberê já vinha colocando questões mais humanistas em seus trabalhos. A partir desses tempos, as obras do artista mostram uma substancial transformação artística e outros problemas formulados. As referências biográficas não são o foco


27 dessas reflexões, mas não se pode omitir que as novas possibilidades dos trabalhos desses tempos tenham sido intensificados por proximidade da morte, seja por um trágico incidente ocorrido em legítima defesa em 1980, como pela doença incurável, contraída em 1985. Esses fatos certamente exacerbaram seu desespero de terror humanista, extrapolando as questões históricas e os fatos apreendidos a nível pessoal. (ZIELINSKY, 2014, p. 43)

A biografia de Iberê Camargo é intrínseca à sua obra. Iberê pintou exclusivamente o que estava no atelier, perto dos olhos ou guardado na sua memória. Mesmo no período em que morava no Rio de Janeiro, nunca se rendeu a tropicalismos, calor ou alegrias exacerbadas. Em suas pintura, Camargo prezava exclusivamente suas questões pessoais e interiores, ele pintava para dentro. O modelo e a paisagem não importavam, a não ser o modelo que buscava em sua memória de menino no Rio Grande do Sul, ou a paisagem das suas lembranças -­‐ plana, fria e solitária. Camargo é um trágico nos trópicos. Como explica o próprio pintor: Há formas que são melhores condutos, que servem melhor aos nossos fins. Eu sou levado com mais facilidade à expressão de um drama, de um vazio, diante de uma árvore esgalhada, de inverno, do que se eu apanhasse uma árvore frondosa. Seria bem difícil despolpar todas aquelas folhas. Esta árvore não serve no meu jardim, não serve no meu paraíso. Eu faço uma escolha, procurando no modelo aquilo que ele pode me dar. (CAMARGO in LAGNADO, 1994, p. 30)

É o que o pintor Carlos Vergara, que foi aluno de Camargo, afirma no filme documentário O Pintor (1992): "a pintura de Iberê não tem nada a ver com a paisagem do Rio de Janeiro, não tem nada a ver. É um pintor que podia não ter janelas no atelier, ele pintava olhando para dentro." Iberê Camargo nasceu em Restinga Seca, no Rio Grande do Sul, a 18 de novembro de 1914. Filho de ferroviários não recebeu estímulos de seus pais para a carreira artística, nem tampouco conviveu com livros em sua casa. como relata o próprio Camargo: O único livro que lembro ter encontrado, que suponho, pela capa, ter sido de Júlio Verne, mas que nunca li. O que eu gostava, mesmo, era de mexer nas gavetas de minha mãe, porque as gavetas tem muitas surpresas, o fundo das gavetas guarda bens inesperados: restos de fazenda, carretéis, coisas mutiladas. (CAMARGO in BERG, 1985, p. 14)


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Em 1922 a família de Iberê muda-­‐se para Canela, na serra gaúcha, e não encontrando escola para o menino Iberê, envia-­‐o para o internato em Santa Maria. Foi em Santa Maria que Iberê inicia seus estudos de pintura, em 1927 na Escola de Artes e Ofícios. Mais tarde muda-­‐se para Porto Alegre onde retoma os estudos à noite, no curso de arquitetura do Instituto de Belas Artes, e começa a trabalhar como desenhista na Secretaria de Obras Públicas. Naquela época Porto Alegre parecia-­‐lhe uma cidade acanhada. O modernismo, que tanto entusiasmava Camargo, ainda nem chegara a apontar suas primeiras influências. Decidido a estudar no Rio de Janeiro, Iberê é agraciado com uma bolsa de estudos concedida pelo governador do Rio Grande do Sul. No Rio de Janeiro conhece Guignard e participa do seu grupo de pintura. Em 1947 ganha o Prêmio de Viagem à Europa no salão Nacional de Belas-­‐Artes, Divisão Moderna, o maior prêmio de artes plásticas conferido no país. Na Europa, Camargo trabalhou com o mestre em gravura Carlo Alberto Petrucci (1881-­‐1963) onde aprendeu toda a técnica da calcografia e da gravura em metal. Depois, frequentou os ateliers de André Lothe (1885-­‐1962) e de Giorgio De Chirico (1888-­‐1978). De volta ao ambiente cultural do Brasil, Iberê encontra um cenário artístico em progressiva mudança. Ele traz na bagagem um significativo conhecimento intelectual e nos anos seguintes sua produção artística passa por um processo de amadurecimento, conseguindo assim inserir-­‐se no novo ambiente e conquistar reconhecimento. O pintor não tinha compromisso com nenhum movimento estético ou estilo, porém dominava exemplarmente a técnica pictórica. Ele mesmo dissera: "Não me filio a nenhum pintor ou escola, simplesmente porque há muito estou filiado a mim mesmo." (CAMARGO in BERG, 1985, p. 23) Durante as décadas de 1960 e 1970 Iberê participou de diversas exposições e Bienais no Brasil e no exterior. Era dono de uma reputação que o colocava como um dos maiores artistas brasileiros, tendo sido convidado para pintar um painel de 49 𝑚! para o novo prédio da Organização Mundial da Saúde, um presente do governo brasileiro para essa instituição nas Nações Unidas. Teve uma sala especial na Bienal de São Paulo, participou de diversas bienais internacionais como a de Veneza, Bienal do Japão, Quadrienal internacional de Roma, fez exposições na


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Iugoslávia, Paris, Londres, Venezuela, Estados Unidos... Iberê ganhou o mundo e suas obras eram das mais valorizadas em termos comerciais no Brasil. Em 1965, após ler o livro Carta à El Greco (1963) do escritor grego Niko Kazantzákis, Hilda Hilst decide sair de São Paulo. Muda-­‐se para a Fazenda São José, de propriedade da mãe Bedecilda, a 11 quilômetros de Campinas. Foi lá que, três anos depois, constrói a Casa do Sol, em companhia do escritor Dante Casarini. HH-­‐ Quando li esse livro, Carta a El Greco, resolvi mudar para cá. Resolvi mudar minha vida. Eu tinha uma casa gostosíssima em São Paulo, todo mundo ia lá comer, namorar, dançar -­‐ meus namorados, meus amigos, minhas amigas. Aí, li o livro e mudei minha vida. CLB-­‐ Era preciso essa renúncia mesmo, essa vida reclusa para poder produzir? HH-­‐ Ah, sim. CLB-­‐ Por quê? HH-­‐ Eu tinha que ser só para compreender tudo, para desaprender e para compreender outra vez. (HILST, 2013,p. 197)

Em Carta à El Greco Kazantzákis prega a necessidade fundamental do isolamento para o conhecimento do ser humano. No livro, o personagem estava em Paris e combina um encontro com uma linda prostituta. Quando estava fazendo a barba para sair com a moça, nasceram pústulas em seu rosto e ele acabou não indo ao encontro. Achou que era um milagre. "Deve ter sido um milagre mesmo" (HILST, 2013, p. 198) disse Hilda Hilst, aí ele foi para o Monte Athos escrever. O livro impressionou de tal maneira Hilda Hilst que a fez refletir sobre a sua dificuldade de optar entre a vida de festas e glamour e o trabalho de se construir uma obra. Hilda Hilst "refere-­‐se ao texto como um chamamento, que a levou a dedicar-­‐se ao projeto de escrita." (DIAS, 2010, p. 24) É o que Anatol Rosenfeld chama de "experiência decisiva": não só de ordem literária e sim 'existencial' (se é que é possível separar o que é inseparável para quem, como para Hilda Hilst, a criação literária é uma atividade absolutamente vital). (ROSENFELD, 1970, p. 13)

E foi na Casa do Sol que Hilda Hilst, de forma sacerdotal, escreveu toda a sua obra, até o fim dos seus dias. A casa hoje abriga uma fundação onde artistas e


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pesquisadores podem fazer residências artísticas. E também onde se encontram os móveis e objetos pessoais de Hilda. A edificação foi construída nos moldes de um mosteiro espanhol em estilo colonial, e com um pátio interno. No centro dele um enigmático poço que, dizem, foi construído baseado nos princípios da alquimia, um pátio interno "de pedras perfeitas" (HILST, 2003, p. 22). O terreno possui também uma enorme figueira centenária onde "Hilda costumava realizar rituais e fazer pedidos debaixo da árvore sagrada" 2. Na Casa do Sol Hilda Hilst viveu até a sua morte e escreveu seus quarenta e um livros. Por quarenta anos viveu reclusa com seus vários personagens, mas cercada de amigos que sempre a visitavam A Casa do Sol se tornou um ponto de encontro de uma comunidade artística, com lendárias noitadas regadas a vinho do Porto e debates que iam de filosofia a romances açucarados da novela das nove. Hilda amava os animais e chegou a ter 100 cachorros vira-­‐latas que ela resgatava, abandonados. A seguir apresento alguns conceitos que identifiquei, tanto na obra do pintor quanto da escritora, e que guiaram todas as minhas análises: no capítulo 1, trato das teorias acerca do corpo que mais se aproximaram das obras aqui estudadas, como o fragmento, o grotesco e o abjeto. No capítulo 2, trato do livro de Hilda Hilst, sua fortuna crítica e como se dá a apresentação da imagem do corpo na obra. No capítulo 3 apresento a fortuna crítica acerca da obra de Iberê Camargo produzida no período referente ao recorte aqui selecionado e analiso a presença da imagética do corpo nas pinturas. No capítulo 4, apresento algumas correspondências identificadas entre a obra do pintor e o livro de Hilda Hilst. E no último capítulo, por meio das obras produzidas por mim, apresento algumas traduções intersemióticas oriundas de diálogo entra=e as pinturas de Camargo e o livro de Hilst.

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Disponível em: <http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2015/03/29/casa-do-solfoi-refugio-criativo-de-hilda-hilst--174372.php>


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CAPÍTULO 1. A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO CORPO Escultura, pintura, cinema... as artes são espaço privilegiado de construção, exposição e fetiche dos corpos. As imagens do corpo apresentam-­‐se tanto de forma direta, como através das imagens dos artistas evidenciadas na obra, como as pinceladas e as marcas digitais, que se apresentam também como parte do corpo do artista. Ou no caso do corpo artista, onde o próprio corpo é a obra. As performances, danças e atuações teatrais representam essa categoria. Assim como as marcas autorais presentes nas obras. Na literatura também há essa construção da imagem do corpo através das palavras. Porém, é mais difícil perceber o corpo do escritor na obra, ou no livro. Tornam-­‐se necessárias algumas estratégias para se evidenciar o corpo do escritor na obra final. Manuscritos, rascunhos, rasuras no canto da página e um cuidado nas edições tentam resgatar um retorno fantasmático do corpo do escritor. É o corpo artista do escritor. No livro Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst (2013), há um cuidado no tratamento com o corpo da escritora. Principalmente, por ser um livro de entrevistas, a direção de arte trabalhou com uma série de elementos pessoais da escritora como anotações, lista de supermercado, desenhos, recados, contas à pagar etc. Pode-­‐se perceber uma proximidade maior com Hilst ao nos depararmos com tais elementos autográficos. Este capítulo é um passeio por vários lugares ocupados pela metáfora corporal presente no livro de Hilda Hilst e nas pinturas de Iberê Camargo. Ora aproximando, ora distanciando mas seguindo sempre a construção imagética do corpo presente na obra desses dois artistas. Após as leituras do livro de Hilst, e as imersões visuais nas pinturas de Camargo, foram detectados, a priori, alguns elementos recorrentes nessas obras e que possibilitaram uma primeira análise. Digo a priori por se tratar de objetos artísticos, e porque durante o processo da pesquisa sobre as obras e a pesquisa em artes, outros elementos foram surgindo, suscitados pelas leituras teóricas. Mesmo focando exclusivamente na imagem do corpo na obra de Hilst e de Camargo, sei da inesgotabilidade do assunto.


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A história da representação do corpo vem desde os tempos remotos da pré-­‐ história, e em cada período da nossa história essa representação se deu mediante necessidades, imposições, cultura, política, poder etc. A tradição filosófica dominada pelo cartesianismo, até o fim do século XIX pelo menos, representou o corpo de forma mimética, seguindo os preceitos clássicos que ditavam todas as regras para a criação artística. Porém, o pensamento acerca do corpo em nossa cultura também remonta a uma assinatura teológica. O cristianismo sempre esteve ligado ao controle do erotismo. Segundo Agamben, (2014, p.94) a descoberta do corpo, a percepção de sua nudez, se dá através do pecado. "Antes da queda, o homem existia para Deus de modo tal, que seu corpo, mesmo na ausência de qualquer veste, não estava nu". Nota-­‐se que a descoberta, como a consciência corporal, aparece fundada no interdito do pecado: a nudez. Para Georges Bataille, o interdito da nudez é um absurdo de caráter gratuito, historicamente condicionado. "O interdito da nudez e a transgressão do interdito da nudez fornecem o tema geral do erotismo, quero dizer, da sexualidade tornada erotismo ( a sexualidade própria do homem)." (BATAILLE, 2013, p.282) Para Bataille, o erotismo é o que difere o ser humano dos outros animais que têm a sexualidade apenas para a sua reprodução, a sexualidade humana é limitada por interditos e o triunfo do erotismo é a transgressão desses interditos. Apenas os seres humanos fizeram de sua atividade sexual uma atividade erótica. (BATAILLE, 2013, p.35) O corpo do outro, objeto de desejo. O desejo, segundo Agamben (2014, p.111), é uma estratégia para fazer aparecer no corpo do outro a carne. "O desejo é a tentativa de despir o corpo dos seus movimentos tal como suas vestes pode fazê-­‐lo existir como pura carne: é uma tentativa de encarnação do corpo do outro." (AGAMBEN, 2014, p. 92) Para Bataille (2013, p. 41), a nudez se opõe ao estado fechado. Na nudez os corpos se abrem apresentando canais secretos que nos dão o sentimento de obscenidade. O desnudamento é um simulacro, sem gravidade, da imolação. Bataille considera a nudez um prenúncio do erotismo e esse erotismo justifica uma aproximação entre o ato de amor e o sacrifício. Para ele o parceiro feminino aparece, numa relação


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erótica, como a vítima, o masculino como o sacrificador, e a consumação um ato de destruição. "A própria paixão feliz acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade de que se trata, antes de ser uma felicidade de que seja possível gozar, é tão grande que se compara ao seu contrário, ao sofrimento." (BATAILLE, 2013, p. 43) Na obra A História do Corpo (2011), Alain Courbin, Jean-­‐Jacques Courtine e Georges Vigarello desenvolvem uma extensa pesquisa, em três volumes de grosso calibre, acerca da trajetória do corpo como objeto cultural no decorrer da história humana. O livro é composto de vários textos de teóricos que têm o corpo como centro de seus estudos, e esses textos foram organizados sob a direção de Courbin, Courtine e de Vigarello. Os autores afirmam que o século XX inventou teoricamente o corpo. E que essa invenção se dá à partir do momento em que Freud decifrou a histeria: o inconsciente fala através do corpo (COURBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2011, p. 7). E cita Merleau-­‐Ponty: Nosso século apagou a linha divisória do "corpo" e do "espírito" e encara a vida humana como espiritual e corpórea de ponta a ponta, sempre apoiada sobre o corpo [...] Para muitos pensadores, no final do século XIX, o corpo era um pedaço de matéria, um feixe de mecanismos. O século XX restaurou e aprofundou a questão da carne, isto é, do corpo animado (COURBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2011, p.7).

Segundo Courbin, Courtine e Vigarello, o corpo passou no começo dos anos de 1970 a desempenhar os primeiros papéis nos movimentos individualistas e igualitaristas de protesto contra o peso das hierarquias culturais, políticas e sociais, herdadas do passado. O discurso e as estruturas estavam estreitamente ligadas ao poder, ao passo que o corpo estava do lado das categorias oprimidas e marginalizadas: as minorias de raça, de classe ou de gênero pensavam ter apenas o próprio corpo para opor ao discurso do poder, à linguagem como instrumento para impor o silêncio aos corpos (COURBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2011: p.9).

Em seu livro O corpo impossível (2002), Eliane Robert de Moraes recompõe o percurso da construção imagética do corpo a partir do modernismo francês pelo viés da ideia da fragmentação do corpo. No período entre o fim do século XIX e a


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Segunda Grande Guerra (1939-­‐1945), diversos artistas e escritores se voltaram para a criação de imagens do corpo dilacerado, dispostos a subverter a tradição do antropomorfismo e inaugurar uma estética contemporânea voltada para os dilemas do seu tempo. Moraes remonta à tela de Gustave Moreau, A aparição (1875), onde podemos ver a cena da bailarina Salomé e Herodes em frente à cabeça amputada de S. João Batista. Moraes chama a atenção para a imagem de Herodes cobrindo o rosto com as mãos. E recorda que, da mesma forma, Batista cobriu a face para não ver Salomé. Com essa aproximação, Moraes conclui que aquilo que se esconde no sexo de Salomé pode ser o mesmo que faz a vista recuar diante da cabeça decepada do santo. (MORAES, 2002, p.36) Talvez não seja apressado adiantar que essa aproximação entre a sexualidade difusa de Salomé e a cabeça decapitada de S. João Batista atenta para um tema que a modernidade estética não cansará de representar: a perda da unidade do corpo. Estamos, portanto nos domínios da morte. (MORAES, 2002, p.36)

Fig. 13-­‐ Gustave Moreau. A aparição, óleo sobre Fig. 24-­‐ Gustave Moreau. A aparição, aquarela,

tela. 142 x 103 cm, 1874-­‐1876. 72 x 105 cm, 1876.

3 Fig. 1:<Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Gustave_Moreau_A_apari%C3%A7%C3%A3o.jpg>


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Segundo Jorge Coli (2010) a guilhotina sistematizou e multiplicou as execuções por crimes políticos ou ideológicos. Trazendo esses corpos decapitados para o cotidiano da população. E mais forte ainda, segundo Coli, foram as guerras napoleônicas com seus milhares de mortos e de aleijados. Tais guerras foram responsáveis pelo aperfeiçoamento de técnicas cirúrgicas para amputações e restaurações de membros. Para Coli: estes são alguns dos motivos que levaram o cadáver, a putrefação, a entrar como elemento constituinte das novas sensibilidades que se difundiram durante o século XIX. O gênio de Baudelaire cultivou, como ninguém, a poética do mórbido e do putrefato. (COLI, 2010, p. 305)

A erótica batailleana é a erótica que se aproxima da construção da imagem do corpo em Hilda Hilst e em Iberê Camargo. Para Bataille o coito é a paródia da morte. O abjeto, o grotesco e o pornográfico, presentes em Bataille (O "Batalha" como escreve Hilst no Caderno rosa de Lori Lambi (HILST, 1990, p.72) se aproxima da ficção de Hilda Hilst. A própria escritora reconhece tal proximidade, evocando o fracasso, sua incursão pela pornografia e uma angústia diante da ausência de salvação e do abandono de Deus, presente nos seus textos e nos de Bataille, o que se afirma também na ficção hilstiana. "DEUS, se soubesse, seria um porco" escreve Bataille (MORAES, 2002, p. 174), "Deus é um porco com mil mandíbulas escorrendo sangue e imundície", escreve Hilda. (HILST, 2003, p. 163) Segundo Eliane Robert Moraes, o que encontramos, tanto em Bataille quanto em Hilst, é uma inversão dos polos da proposição. Uma oposição entre planos radicalmente distintos, um confronto entre o alto e o baixo. Onde Deus representa o mais alto grau de majestade em contraposição à energia abjeta do charco imundo e terreno onde vivem os porcos/corpos. Hilda também usa bastante a imagem do porco em seus textos, não só em Fluxo-­‐floema, mas em toda a sua obra em prosa. Bataille, segundo Moraes, (1999, p.119-­‐120) se vale da imagem do porco para associar Deus aos extremos mais sórdidos da experiência humana. 4

Fig. 2: <Disponível em: https://de.wahooart.com/@@/8XY73L-Gustave-Moreau-Die-Erscheinung>


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Como no universo batailleano, no universo de Hilst e de Camargo, entram em cena imagens e termos como incisões, feridas ou alusões à objetos cortantes, à orgia sangrenta, à tortura. Em Bataille é o corpo agonizante que ganha relevo: Se o corpo agonizante, convulsivo e retorcido, prenuncia a morte, ele torna-­‐se paradoxalmente, a alteridade do corpo morto, imobilizado num vazio glacial. As imagens da agonia identificam-­‐se ao êxtase e dela poderíamos dizer o mesmo que Bataille afirmou sobre o erotismo: "é a confirmação da vida até a própria morte". Para esse corpo febril, inquieto, tremendo violentamente diante do abismo que está prestes a ser lançado, dificilmente poderíamos propor a imagem de uma mesa de dissecação. Não: o objeto emblemático da erótica de Bataille é antes uma mesa de sacrifícios. (MORAES, 2002, p. 53)

Com a fragmentação, os artistas modernos problematizam o corpo em primeiro lugar. Livres da representação clássica, e com o projeto de destruir o corpo, submetendo-­‐o a uma mesa de dissecação, os artistas passaram a decompor sua matéria e oferecê-­‐la aos pedaços. Destrói-­‐se a forma humana e desumaniza-­‐se a arte.

O interesse pela anatomia humana era, portanto, proporcional ao desejo de destruí-­‐ la. Por isso Apollinaire definiu (a pintura de Picasso) Les demoiselles d'Avignon como "o crepúsculo da realidade". (MORAES, 2002, p. 61)

Para tanto foi necessário, com o objetivo de libertar a anatomia humana das proporções estabelecidas e dos cânones normatizados, apresentar e representar um corpo fragmentado, dando assim autonomia aos pedaços e deixando-­‐os viver na desordem que caracteriza o erotismo.

1.1. O CORPO FRAGMENTADO Na concepção clássica, o corpo humano segue regras estéticas de beleza e proporção. As esculturas gregas e romanas buscavam uma unidade corporal de perfeição e irredutibilidade. Porém, a imagem do corpo fragmentado, destruído e apresentado em partes, tornou-­‐se também prática de artistas e escritores. Segundo


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Perniola (2010, p. 140), a prática da fragmentação do corpo humano nasce no primeiro romantismo alemão e: O fragmento é há dois séculos o objeto de uma excitada celebração, que não indica estar se acalmando: começando pelo primeiro Romantismo da revista "Athenaeun" (1798-­‐1800), dirigida pelos irmãos Schlegel, até o pós-­‐moderno, através de uma pletora de filósofos, de escritores, de artistas, de músicos, sendo exaltado como a forma literária e artística mais coerente com a modernidade pela sua capacidade de manifestar a descontinuidade, a incoerência, a dilaceração da experiência e por estar de acordo com o dinamismo convulso e febril de uma atividade que é incapaz de se empenhar em projetos de grande fôlego, porque muda muito frequentemente de direções e propósitos. Estas duas características, a expressão do desmembramento e a adequação de uma frenética "inoperosidade", não são, todavia, suficientes para explicar o sucesso extraordinário do fragmento na cultura contemporânea. (PERNIOLA, 2010, p. 139)

Portanto, se na concepção clássica o corpo humano é apresentado como algo pronto, acabado e dentro das regras vitruvianas de beleza e proporção, o fragmento, ao contrário, implica uma incompletude, uma imperfeição essencial que elimina o modo finito e fechado da representação clássica. O que ocorria, das artes clássicas até o século XVII, era um antropomorfismo exacerbado, ligado ao cristianismo e à igreja católica: o corpo era a obra prima de Deus, e sendo assim, deveria ser respeitado como a grande criação divina. O respeito religioso e a submissão à Deus passava pela intacta coesão da unidade do corpo humano. Mesmo em um artista como Poussin (1594-­‐1665), apesar de toda a sua fúria e beleza ao representar as guerras e as torturas humanas em uma cultura clássica, sua forma de representação coincide com o respeito religioso pela integridade coesa do corpo humano. Nada de sangue, nada de vísceras, nada de semblantes agonizantes. O que vemos em Poussin, e em muitos outros artistas de sua época, é a beleza acima de qualquer tormento. Porém, a revolução iluminista trouxe a postura científica e metódica que pressupõe a desmontagem do corpo em partes para a compreensão do todo. É o nascimento de uma cultura do fragmento, como explica Jorge Coli: na virada do século XVIII para o XIX, surge uma nova configuração, na qual o olhar do homem sobre o homem não é mais sobre si, mas sobre uma coisa. O homem objetiva a si mesmo, no sentido a que se dispõe, como objeto, para um sujeito que


38 conhece. Objeto de si, seu corpo se evidencia, apresenta-­‐se enquanto corpo apenas, disposto para a ciência ou para a arte. (COLI, 2010, p. 295)

Esse cientificismo afasta o homem de Deus e o aproxima do próprio homem. E isso reflete-­‐se nas pinturas, onde arte e ciência se mesclam: esses quadros incorporavam também a ofensa à unidade do corpo, imagem divina, templo a ser reverenciado, que ressuscitaria no dia final dos mortos. Ao agredir o corpo, o algoz agredia Deus em sua obra maior. (COLI, 2010, p. 295)

Como afirmou Coli (2010, p. 297), a criação de uma poética do fragmento constitui-­‐se como uma crítica às certezas da ciência e também uma crítica à tirania da perfeição e da beleza. As obras de arte do período iluminista, pode-­‐se dizer, transitavam interdisciplinadamente, muitas vezes, entre arte e ciência. Assiste-­‐se então, nos dois últimos séculos, a um fascínio pelo humano que se desmembra, que se apresenta por partes. Como já elucidou Jorge Coli acerca da invenção da guilhotina democrática, como apresentarei mais à frente. Essas partes amputadas de um todo, pode-­‐se pensar, não apresentam uma fragilidade e sim uma potência. Um fragmento torna-­‐se um todo, uma poderosa e nova coesão. É o que explica Perniola: Na base da experiência da fragmentação não está a dor pela perda da relação com a totalidade cósmica, e nem mesmo a saudade ou nostalgia de tal experiência. Ao invés dessa possibilidade, percebe-­‐se que o que incita o fragmento é o entusiasmo pela afirmação de uma singularidade que é capaz de romper a continuidade do mundo, de transgredir o enredo, o tecido, o entrelaçamento que possuía ao mesmo tempo a grande cadeia do ser, enfim, de conter em si mesma, a plenitude, a exuberância, a vivacidade criativa atribuída da tradição somente à natureza ou a Deus. (PERNIOLA, 2010, p. 141)

O fragmento é uma poética autônoma, enquanto fragmento. Segundo Coli, o fragmento é uno. Como no caso dos fragmentos das esculturas gregas e romanas encontradas em escavações. Cada mão, pé, ou torso fragmentado de sua obra anterior tem hoje sua própria poética. Ou seja, o fragmento torna-­‐se todo. A experiência da arqueologia moderna contribuiu consideravelmente para a incorporação, na cultura ocidental


39 contemporânea, do fragmento enquanto portador de beleza e poesia específicas. (COLI, 2010, p. 300-­‐301)

O fragmento, assim, traz uma nova possibilidade, um devir, por assim dizer. Para Perniola: o fragmento não é o estilhaço de uma totalidade que se quebra, porém, ao contrário, é a própria totalidade que irrompe na superfície mutilada e parcial, coerente e lacunar, desmalhada e desconectada da vida corrente. Esse é o paradoxo do fragmento: não é completamente fragmentário, mas bastante coeso e unitário, como uma bolinha de ferro. (PERNIOLA, 2010, p. 147)

Ou seja, no pensamento de Perniola, "o fragmento é rico, múltiplo, pleno." (PERNIOLA, 2010, p. 142) Em seu livro A obra prima ignorada (1831/2003) Honoré de Balzac oferece uma das representações centrais do drama do nascimento da arte moderna. Publicado primeiramente no jornal L'Artiste, foi integrado à sua A comédia humana em 1846 e faz uma reflexão sobre a arte e a literatura. Em seu livro, Balzac acentua a força expressiva do fragmento como modelo de prática artística, onde um velho pintor do século XVII, chamado Frenhofer, tentando produzir uma grande obra prima, destrói a obra com confusas pinceladas que resultam em um borrão. Mas, dentro de tamanha abstração, percebia-­‐se um pé, tão maravilhoso que parecia viver: "O velho tratante está zombando de nós", disse Poussin, voltando a olhar o suposto quadro. "Só estou vendo cores confusas espalhadas umas sobre as outras [...] Aproximando-­‐se, perceberam num canto da tela um pedaço de pé que se projetava para fora daquele caos de cores, tons e matizes indecisos, uma espécie de neblina sem forma. Mas, aquele era um pé delicioso, um pé vivo! ficaram petrificados de admiração diante daquele fragmento que escapara de uma incrível, lenta e progressiva destruição. Aquele pé parecia ali como o torso de alguma Vênus de Paros em mármore surgindo entre os escombros de um palácio incendiado. (BALZAC, 2003, p. 53-­‐54)

Frenhofer termina por se suicidar ao descobrir o engano ao qual levara sua loucura perfeccionista, mas segundo Jorge Coli: A parábola pode ser lida pelo avesso: a loucura seria imaginar um todo possível. No lugar da luxúria plena, o fetichismo da parte. Os tempos novos são antes pelo


40 inacabado, e um pé vale um corpo. Progressivamente a força do fragmento passa a ser moderna. (COLI, 2010, p. 303)

Ou seja, o fragmento parece, portanto, moderno, e aos poucos os escultores, pintores, escritores vão incorporá-­‐lo no seu trabalho. Segundo Moraes: Fragmentar, decompor, dispersar: essas palavras se encontram na base de qualquer definição do "espírito moderno". Entre a década de 1870 e o início da Segunda Guerra Mundial, a Europa assistiu uma crise profunda no humanismo ocidental, com radical impacto sobre a política, a moral e a estética. (MOAES, 2002, p. 56)

Foi com o escultor francês Auguste Rodin (1840-­‐1917) que o fragmento amplia sua potência, pois Rodin foi um dos artistas que mais empregou o uso do fragmento. O artista leva ao extremo, passando a fabricar fragmentos imitando o trabalho do tempo, do sofrimento e do envelhecimento. Ele rasgava e torcia suas peças de argila, amputando braços e troncos. Sua crítica foi muito dura com ele condenando seus procedimentos de mutilações do corpo humano, pois consideravam tais atos como agressões diretas aos ideais artísticos. Mas Rodin conseguiu com tais fragmentos alcançar uma beleza estética, dando assim uma poética completa ao fragmento. Com Rodin o fragmento tornou-­‐se único, como explica Jorge Coli:

Rodin mutila seus próprios gessos e acentua a força expressiva de um gesto, de um passo, de um movimento. Mais ainda, propõe associações inesperadas: enxertar a mão de uma estátua monumental a uma cabeça, por exemplo, e assim formar uma bizarra unidade, onde o todo perdeu referências plausíveis, mas abriu-­‐se para sugestões impensadas. Rodin precede, deste modo, os futuros jogos do surrealismo. (COLI, 2010, p. 303-­‐304)


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Fig. 35-­‐ Auguste Rodin. Homem andando, Fig. 46-­‐ Auguste Rodin. Assemblage: Mask of Camille bronze, 86 cm x 56 cm x 28 cm, 1877–1878 Claudel and Left Hand of Pierre de Wissant , gesso, 42 cm x 26,5 cm x 27,7 cm, 1895

Fig. 57-­‐ Auguste Rodin, aquarela, 21 x 31 Fig. 68-­‐ Auguste Rodin, Iris, mensageira dos deuses cm, 1876 com uma bênção de êxtase para homens e mulheres, 82.7 x 69 x 63 cm, bronze, 1895

O fetichismo então torna-­‐se característica íntima do fragmento. Muitas das obras de Rodin apresentam-­‐se carregadas pela imagem do sexo feminino, da vulva. Pode-­‐ 5 6

Fig. 3: Disponível em: <https://www.moma.org/collection/works/81085>

Fig. 4: Disponível em: http://collections.musee-rodin.fr/fr/museum/rodin/assemblage-masque-de-camille-claudel-et-main-gauche-de-pierrede-wissant/S.00349?materiauxUtilises%5B0%5D=pl%C3%A2tre&anneeDeCreation%5B0%5D=1900&position=4 7 Fig. 5: Disponível em: <http://deslumieres.blogspot.com/2007/02/rodin-ertico.html> 8

Fig. 6: Disponível em: <http://www.musee-rodin.fr/en/collections/sculptures/iris-messenger-gods>


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se identificar inúmeros trabalhos seus onde os desenhos, as aquarelas e as esculturas protagonizaram esta parte do corpo. "Rodin a expõe, sem falsos pudores, evidenciando-­‐a, escancarando-­‐a. Ele exalta aspectos imediatamente orgânicos. Nele (Rodin), a pulsão fetichista que o fragmento contém em si aflora, violenta." (COLI, 2010, p. 303-­‐304) Isso não é exclusividade do escultor francês. O pintor Gustave Coubert (1819-­‐1877), atraído pelos mistérios do corpo feminino, pinta o quadro A origem do mundo (1866), um torso feminino, sem cabeça, pernas ou braços, que são cortados no limite da tela. Em evidência, a vulva.

Fig. 79-­‐ Gustave Coubert, A origem do mundo, óleo sobre tela, 46 x 55 cm, 1866

Faz-­‐se importante ressaltar aqui, baseado nestes três exemplos (figuras 5, 6 e 7), as esculturas de membros de Rodin e a pintura de Coubert, uma diferença crucial. O pormenor e o fragmento. No primeiro, segundo Sarzi-­‐Ribeiro (2007, p. 9), o pormenor só pode ser observado a partir do inteiro e da operação do corte. Os confins da parte do corpo representada são expandidas para as extremidades do quadro, dificultando a visualidade por inteiro. "A parte permanece inacabada e 9

Fig. 7: Disponível em: <http://www.heralddeparis.com/france-head-of-courbets-notorious-origine-du-monde-foundmagazine-claims/>


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precisa do exercício de relação do corpo inteiro para ser identificada como corpo. Trata-­‐se de uma obra pormenor." (SARZI-­‐RIBEIRO, 2007, p. 10) O quadro de Coubert é um exemplo de pormenor, como se fosse um zoom de uma câmera. Já o fragmento, diferente do pormenor, quebra, corta-­‐se, se separa totalmente do conjunto, rompe qualquer relação com o todo, torna-­‐se autônomo enquanto o pormenor dialoga constantemente com o conjunto que o gerou. O fragmento não contempla um inteiro anterior, ele passa a ser observado como ele é e não como uma ação de um sujeito anterior. O fragmento possui caráter de inteiro. Daí pra frente, o ser humano foi totalmente desfigurado, desmontado e desarticulado: as mãos separaram-­‐se dos braços, os pés se desligaram das pernas, o ventre adquiriu autonomia, os olhos e as orelhas destacaram-­‐se do rosto, os órgãos internos desagregaram-­‐se uns dos outros. Uma vez fragmentado, só lhe foi possível recuperar a unidade do corpo através de formas híbridas e monstruosas. Uma grande variedade delas se sucedeu até que, em 1936, Georges Bataille e André Masson recolocaram em cena a figura do homem decapitado. (MORAES, 2002, p. 89)

O fragmento é um elemento recorrente nos contos do livro de Hilst e nas obras de Camargo. Como, por exemplo, no conto "Floema", como apresentarei mais adiante, onde a incisão, o corte, a faca, o punhal, o sangue, tudo remete à uma fragmentação do corpo: "... AMARGO, APARÊNCIA. Estilhaço do todo, isso que me perguntas, fragmento do nada. Também busco." (HILST, 2003, p. 225) É o que pode-­‐se observar também nos dois desenhos de Iberê Camargo (figuras 8 e 9), onde pernas e pés cortados apresentam-­‐se como fragmentos, não como representação de uma incompletude, mas como uma peça única, completa em si, porém aberta para infinitas interpretações. Mais adiante, no capítulo em que trato da obra de Iberê Camargo, apresentarei outros fragmentos recorrentes em suas pinturas e desenhos, como mãos e cabeças.


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Fig. 8-­‐ Iberê Camargo, Os pés do mingote, 1989. Fig. 9-­‐ Iberê Camargo, Acidente em Angra, Guache e lápis stabilotone sobre papel, 1989. Nanquim sobre papel, 33,5 x 22,7 cm. 70 x 50 cm. .

1.2. O CORPO GROTESCO Um dos conceitos de grotesco que utilizei nesta tese foi o estudado por Wolfgang Kaiser em sua obra O grotesco na literatura e na pintura (1957). No tratado, Kayser conceitua o grotesco como um artifício muito usado, especialmente pelos espanhóis e pelos ingleses. Já no século XVI, o grotesco, segundo Kayser, era caracterizado como uma mistura do animalesco e do humano. O monstruoso era a característica mais importante do grotesco, e já aparecia no primeiro documento da língua alemã. Kayser define o grotesco como "elemento lúgubre, noturno e abismal, diante do qual nos assustamos e nos sentimos atônitos, como se o chão nos fugisse debaixo dos pés." (KAYSER, 1986, p.16). O grotesco é um elemento muito presente no livro de


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Hilda Hilst e nas pinturas de Iberê Camargo como apresentarei nos respectivos capítulos de cada obra aqui estudada. O conceito de corpo grotesco também é largamente estudado por Mikhail Bakhtin (1999), em seu livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, onde o autor dedica um capítulo à questão do corpo grotesco. Questão que pude relacionar com os trabalhos de Hilda e Iberê, principalmente quanto às questões do baixo corporal e do baixo material. O livro de Hilst está repleto de elementos corporais que dialogam com questões levantadas por Bakhtin: (...) no grotesco interessa-­‐se por tudo que sai, procura sair, ultrapassa o corpo, tudo o que procura escapar-­‐lhe. Assim todas as excrecências e ramificações tem nele um valor especial, tudo que em suma prolonga o corpo, reúne-­‐o aos outros corpos ou ao mundo não corporal. (BAKHTIN, 1999, p. 277)

Outro autor importante na conceituação do grotesco foi Victor Hugo, no livro Do grotesco ao sublime: tradução do prefácio de Cromwell, publicado em 4 de dezembro de 1827/2007, em Paris, França. Hugo define o artista moderno como uma fusão do grotesco e do sublime. Para Hugo o contraste entre o sublime e o grotesco era a potência criadora do modernismo: "A musa moderna sentirá que tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz" (HUGO, 2007, p. 26). Dessa forma o drama romântico, por coexistir com o grotesco, deveria caracterizar-­‐se pela mistura de gêneros, abandonar as fronteiras entre a comédia e a tragédia para produzir a síntese do homem moderno, cômico em meio à tragédia, o que aproxima-­‐se dos objetos estudados nesta tese. A aproximação de elementos orgânicos da natureza ao reino demoníaco, por transmutações, como se tivessem sido despertados para uma vida sinistra, também faz parte dos elementos ornamentais da estética grotesca, segundo Kayser. As plantas crescem com abundância premente e grandeza super dimensional, produzindo flores que terminam em caretas animalescas. Os animais rastejantes compõem-­‐se, por seu turno, de formas tipo vegetal. Até mesmo os entes humanos e


46 demoníacos se entrelaçam na vegetação luxuriante de um jângal maligno (KAYSER, 1986, p. 140).

Segundo Kayser, o grotesco reside na mistura com o incompatível: "Ao lado do grotesco mais louco surgem na vida os dramas mais horríveis; no riso contrafeito das máscaras mais obscenas choram por vezes os sofrimentos mais dolorosos" (KAYSER, 1986, p.117). Como na estética expressionista, que aproxima-­‐se do grotesco pelo contato com a imperfeição e com a deformação. Uma estética que suscita no espectador o terror de se observar ao espelho, relacionando-­‐se assim, não só com a angústia, como também com a morte libertadora. Como afirma Kayser, no caso do grotesco não se trata do medo da morte, porém da angústia de viver. Tanto no livro de Hilst, quanto na obra de Iberê, a morte é presença marcante. A imagem da morte grotesca, angustiante. A morte como um dos contextos principais do corpo, pois um corpo é aquele que nasce, cresce e morre. Apresentarei nos capítulos correspondentes a Hilst e a Iberê, como em suas obras a morte, a imagem do cadáver ou a angústia de viver na certeza da morte, articulam-­‐se com a construção da imagem do corpo grotesco. O corpo grotesco, o feio está sempre na iminência de outra possibilidade. A possibilidade de, ao lado do belo, do sublime, gerar um lindo contraste capaz de suscitar a mais potente sensação. O belo ao lado do belo é sempre monótono. Victor Hugo ao comparar o belo e o feio, em seu Prefácio de Cromwell, propõe um "sem cessar de novos aspectos": O que chamamos de feio, ao contrário, é um pormenor de um grande conjunto que nos escapa, e que se harmoniza, não com o homem, mas com toda a criação. É por isso que ele nos apresenta, sem cessar, aspectos novos, mas incompletos. (HUGO, 2007, p. 36)

Nota-­‐se que o conceito de grotesco de Bakhtin é um pensamento que está em movimento contínuo.


47 O corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está pronto ou acabado: está sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói outro corpo; além disso, esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele. (BAKHTIN, 1999, p. 277)

Esse corpo não cessa de se conectar a infinitas cadeias semióticas que o significam e ressignificam em diversas combinações. O corpo grotesco também é heterogêneo pois o grotesco caracteriza-­‐se pelo hibridismo. Tem-­‐se a junção de partes diferentes formando um único corpo. O grotesco é a aproximação dos inusitados, um encontro fortuito, uma colagem, uma assemblage onde diferentes se encontram formando novas conexões. Como em Cantos de Maldoror, que evidencia a experiência da metamorfose moderna. No autor de Cantos, as tranformações são urgentes e diretas surpreendendo até mesmo o pensamento [...] Lautréamont destrói uma forma para imediatamente criar outra lançando-­‐se num violento desejo de viver. (MORAES, 2002, p. 86)

Segundo o pensamento de Moraes, pode-­‐se afirmar que a metamorfose é uma das particularidades do grotesco. Como no conto "O Unicórnio" do livro de Hilda Hilst, onde o personagem principal transforma-­‐se em um unicórnio, ou no conto “Fluxo” quando o personagem do anão conversa com uma serpente e chega a ter até uma relação sexual com ela. O livro Fluxo-­‐floema apresenta diversas passagens onde a relação homem-­‐animal se dá de forma grotesca. Segundo Kayser (1986, p. 20), o grotesco é a transição dos corpos humanos para formas de animais e plantas, ou seja, uma metamorfose, onde há um entrelaçamento turbulento de objetos, plantas, ornamentos e corpos meio humanos meio animais. O grotesco para Kayser, apesar de parecer, como nas fábulas infantis, algo lúdico e alegre, leve e fantasioso, também é algo angustiante e sinistro:

em face de um mundo em que as ordenações de nossa realidade estavam suspensas, ou seja: a clara separação entre os domínios dos utensílios, das plantas, dos animais e dos homens, bem como da estática, da simetria, da ordem natural das grandezas. [...] O grotesco indica a ruptura de qualquer ordenação, a participação de um mundo diferente. (KAYSER, 1986, p. 20)


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Pode-­‐se perceber nas palavras de Kayser a formação de uma estética do fragmento, da reunião desordenada e violenta de partes distintas. Esse corpo híbrido, resultado de metamorfoses baseadas em fragmentos distintos, convoca a categoria do monstruoso, do monstro híbrido, como explica Kayser: "o monstruoso, constituído justamente da mistura dos domínios, assim como, concomitantemente, o desordenado e o desproporcional surgem como característica do grotesco." (KAYSER, 1986, p. 20) A história do corpo monstruoso caminha junto à modernidade e o interesse pelo diferente e pelo exótico. Nas famosas feiras populares monstros humanos eram exibidos como atrações principais, e movimentavam dinheiro. Crianças com microcefalia eram expostas ao lado de chipanzés, obesos como homens elefante, homens tronco, mulheres barbudas etc. O grotesco das aparências, a animalidade das funções corporais, a crueza sangrenta dos costumes, a barbárie da linguagem, ao passo que no palco do Egyptian Hall de Londres danças frenéticas e batalhas tribais se sucedem sem parar desde a primeira metade do século, na feira do Trono a mulher "antropófaga" tritura pedras e engole cobras. Só resta então a antropologia teratológica vulgarizada de Debay selar os seguintes termos a legitimidade do parentesco entre o animal, o monstro e o selvagem." (CORBIN, CORTINE, VIGARELLO, 2011, p. 253/258)

Segundo Corbin, Cortine e Vigarello, tais feiras eram mais um instrumento de poder utilizadas também como forma de controle. por trás das grades do zoológico humano ou nos cercados das aldeias indígenas das Exposições universais, o selvagem serve para ensinar a civilização, para lhe demonstrar os benefícios, ao mesmo tempo que funda esta hierarquia "natural" das raças, reclama pela expansão colonial. Por trás das vitrinas do necrotério, o cadáver que recebe a visita dominical dos basbaques reforça o medo do crime. Na penumbra do museu de moldes anatômicos de cera, os moldes de carnes devastadas pela sífilis hereditária inculcam o perigo da promiscuidade sexual, a prática da higiene e as virtudes da profilaxia. (CORBIN, CORTINE, VIGARELLO, 2011, p. 260)

O corpo monstruoso, o selvagem, o diferente, o disforme, o híbrido, tudo aquilo que foge à normatividade tornou-­‐se uma forma de resistência e uma oposição à


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tirania do bom gosto e das certezas banais da ciência. Num mundo onde a vida sofria tal ordem de ameaças e violências, não havia outra forma de afirmar a existência sensível senão recolocando o corpo humano em questão. É o que apresentarei no capítulo do conto "O Unicórnio", quando o personagem se metamorfoseia em um unicórnio e é levado para um jardim zoológico e fica exposto à população, sofrendo as mais violentas agressões físicas e verbais. Evidenciando assim, o preconceito ao diferente. A negação do antropocentrismo como forma de negação do establishment era uma das propostas de Breton e dos surrealistas. E nesse ponto Bataille alinhava-­‐se ao movimento. "É preciso que o homem passe com armas e bagagem para o lado do homem." Dizia Breton (MORAES, 2002, p. 88) "O ódio à autoridade do Estado deve ser fundamento da luta revolucionária." Bradava Bataille na revista Acéphale. A proposta era utilizar as armas do fascismo contra o fascismo. (SCHEIBE, 2013, p. 12) E foi sob acusação do humanismo e do antropocentrismo que Bataille atribuía a desgraça que o mundo se tornara. As guerras sangrentas, o assassínio e a mutilação dos corpos. "Foi em nome do humanismo que as mais graves usurpações foram cometidas e as mais belas ideias acabaram em matanças." (MORAES, 2002, p. 88) Essa era a proposta de Bataille quando ele veio com o seu acéfalo, o monstro sem cabeça, o monstro híbrido: "O acéfalo é justamente a força incondicionada do heterogêneo. A negação da cabeça é a negação da razão e do telos, do líder, de Deus, do capital e, em última instância, do eu". (SCHEIBE, 2013, p. 12) Com o acéfalo, Bataille propõe a teoria do informe em oposição violenta à exigência acadêmica que todas as coisas tenham forma e sentido, fazendo oposição à homogeneização e uniformização, enaltecendo o heterogêneo. Michel Leiris e Georges Bataille publicam no número 7 da revista Documents, de 1936 (MORAES, 2002, p. 198) os seguintes verbetes: Leiris, com o verbete Escarro: "O escarro é enfim, por sua inconsistência, seus contornos indefinidos, a imprecisão relativa à sua cor, sua umidade, o próprio símbolo do informe, do inverificável, do não-­‐hierarquizado." (LEIRIS, apud MORAES, 2002, p. 198) Bataille em sua nota: "Para que os homens acadêmicos ficassem contentes, seria preciso que o universo tomasse forma. [...] Em compensação dizer que o universo


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não se assemelha a nada e que ele é só informe equivale a dizer que o universo é algo como uma aranha ou um escarro." 10 Posto que toda forma vive e morre sem cessar de seus próprios acidentes precipitando o incessante jogo de deformação. O que pode-­‐se perceber aqui é a relação explícita entre a teoria do informe de Bataille e a experiência do abjeto. Na mesma Documents Michel Leiris desenvolve em um artigo aspectos monstruosos em órgãos diversos, como a boca por exemplo: a boca ocupa uma situação privilegiada, sendo o lugar da palavra, o orifício respiratório, o antro onde se sela o pacto do beijo; de outro, ela produz o cuspe, para de um só golpe cair ao último grau da escala orgânica com uma repugnante função de dejeção. O ato de cuspir rebaixa a boca -­‐ signo visível da inteligência -­‐ à categoria dos órgãos mais vergonhosos, aproximando o homem desses animais primitivos que têm uma só abertura para todas as suas necessidades. (LEIRIS, apud MORAES, 2002, p. 198)

Assim Leiris põe no mesmo patamar a boca, e fala palavras de amor, e escarra o informe, apresentando o princípio de inversão onde as contradições entre o ideal e o abjeto se confundem. Para Bataille as forças excremenciais, como forma de expressão humana. "Violação excessiva do pudor, excreção violenta do objeto sexual, projetado para longe ou suplicado no momento da ejaculação, interesse libidinoso pelo estado cadavérico, o vômito, a defecação..." 11 Tanto o livro de Hilst quanto as pinturas de Camargo estão repletos de passagens onde excrementos, fluídos corporais, vômito são evidenciados. Iberê Camargo produziu uma série de desenhos e pinturas baseada em um conto de sua autoria, onde o personagem revira uma fossa, repleta de fezes a procura de um relógio que acidentalmente caiu lá dentro. No livro de Hilst, em todos os contos aparecem a figura das vísceras, excrementos, cuspe e deformações corporais. É a presença do abjeto na obra destes dois artistas que demonstro a seguir.

10 11

MORAES, Marcelo Jacques de. Georges Bataille e as formações do abjeto. Santa Catarina: Revista outra travessia, n.5, 2005. Idem, p. 112.


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1.3. O CORPO ABJETO O abjeto parece ser filho do grotesco. Enquanto o grotesco tornou-­‐se uma prática do modernismo, o abjeto firmou-­‐se no pós-­‐moderno prosseguindo o pensamento batailleano. O abjeto é um complexo conceito, psicológico, filosófico e linguístico desenvolvido por diversos pensadores como Júlia Kristeva no texto Poderes do Horror, ensaio sobre a abjeção (1980/1982). No texto, a filósofa trata dos elementos impuros, ou impróprios à cena, obscenos. Kristeva trata de excrementos e humores corporais ou secreções, ou seja, elementos que ferem o senso de decência e higiene. Para Kristeva, o abjeto é aquilo do que devo me livrar, expurgar. Porém, esse elemento que expurgo é parte fundamental de mim. E tão próxima e íntima que produz o pânico. O abjeto questiona fronteiras do nosso corpo, põe em discussão o dentro e o fora. Segundo Hall Foster (2014), "a abjeção é uma condição na qual a posição de sujeito é perturbada, [...] daí sua atração sobre os artistas de vanguarda que querem perturbar esses ordenamentos do sujeito e da sociedade. (FOSTER, 2014, p.147)". Ou seja, o abjeto, como o informe e o grotesco, tem a alcunha da transgressão, da política e da resistência. Kristeva trata do abjeto, como um eu primordial que se expulsa. A abjeção, em si, é imoral, tenebrosa, oscilante, suspeita: um terror que se dissimula, uma raiva que sorri, uma paixão por um corpo que lhe troca ao invés de lhe aquecer, um devedor que lhe vende, um amigo que lhe apunhala... o abjeto é aquilo que não respeita os limites, os lugares, as regras. (KRISTEVA, 1982, p. 4)

Solange Ribeiro de Oliveira explica que: Quando explora esses elementos o artista esquece a dimensão vertical, tipicamente ilustrada pela catedral gótica, emblemática da ascensão espiritual. Em vez disso, privilegia a dimensão horizontal, associada ao homem enquanto ser animal, preso à terra e a processos asquerosos escamoteados no trato social, como a defecação e deteriorização do corpo (OLIVEIRA, 2012, p.98)


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O corpo abjeto se dá na horizontalidade, na proximidade com a terra e com o baixo. O baixo corporal e o subterrâneo das raízes. Por sua característica de multiplicidade, e distinções rizomáticas, o abjeto manifesta-­‐se em diferentes mídias, tanto nas artes plásticas quanto na literatura. A partir das décadas de 1980 e 1990 ocorreu uma grande quantidade de aspectos corporais nas artes, particularmente na categoria do abjeto, presentes nos trabalhos de muitos artistas e escritores. O abjeto tem proporcionado reflexões instigantes sobre o sentido da palavra "arte", bem antes do dito período contemporâneo, definido cronologicamente no início dos anos de 1960. O abjeto remonta às transgressões e desobediências dadaístas e surrealistas. Bataille foi importante enquanto figura central da revolta contra o modelo clássico e a imposição do bom gosto. Para Bataille o bom gosto é uma forma de poder e controle sobre as formas naturais do ser humano. O nojo é algo que é ensinado. Não é uma função natural, é uma forma de repressão. Segundo Bataille "formou-­‐se um domínio da imundice, da corrupção e da sexualidade." (2013, p. 82) Para ele, não é à toa que ensinamos com sacrifícios, muitas vezes até violentos, aos nossos filhos, a estranha aberração que é o nojo. "Acreditamos que uma dejeção nos repugna por causa do seu fedor, mas ele federia se não tivesse se tornado antes objeto de nosso nojo?" (BATAILLE, 2013, p. 82) Toda arte é fruto de seu tempo, e ela reflete tanto as suas tecnologias quanto as suas mazelas e prazeres. O abjeto é fruto de uma insatisfação diante de um mundo desigual e arbitrário. Artistas e escritores lançaram mão, e ainda lançam, do abjeto como forma de expressão artística, porém, com forte cunho político. E Bataille, foi um dos pensadores dessa revolta. Como explica Solange Ribeiro de Oliveira: Para Bataille, as formas materiais -­‐ com destaque para as do corpo humano -­‐ constituem um lugar privilegiado: nele repercutem os desastres periódicos que assolam a humanidade: cataclismos, irrupções de demências populares, rebeliões, matanças revolucionárias. Daí decorrem as sombras horríveis, as figuras horripilantes, com dentes que brotam diretamente do crânio, presentes em algumas telas de Picasso, ou ainda a aterrorizante feiúra de algumas figuras de Dali. Ao contrastá-­‐las com a harmonia da tradição clássica, Bataille, numa referência sombria à nossa época, afirma que essas formas da arte frequentemente representam o principal sintoma dos grandes transtornos nas sociedades humanas. (OLIVEIRA, 2012, p.99)


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Na literatura, o abjeto se manifesta sob a alcunha de texto coprofágico (OLIVEIRA, 2012, p.100), expressão que remete ao modo de alimentação de certos insetos e aves que se nutrem de fezes. Na literatura coprofágica, também abjeta, os escritores aludem ao desagradável, ao repelente, visando conduzir o leitor à rejeição de posturas gastas -­‐ literárias, sociais ou humanas. Hilda é uma escritora que transita entre o grotesco e o abjeto, como apresentarei no capítulo em que trato especificamente do livro. Na literatura que faz uso do abjeto, como explica Kristeva: O escritor, fascinado pelo abjeto, imaginando sua lógica, ali se projeta, introjeta, e perverte a língua – o estilo e o conteúdo – em consequência. Mas, por outro lado, como o sentimento de abjeção é, ao mesmo tempo, juiz e cúmplice do abjeto, assim também o é a literatura que o confronta. Deste modo, poder-­‐se-­‐ia dizer que, em tal literatura, realiza-­‐se um cruzamento das categorias dicotômicas do Puro e do Impuro, do Interdito e do Pecado, da Moral e do Imoral. (KRISTEVA, 1982, p. 15)

Segundo Julia Kristeva (1982, p. 16), a grande literatura moderna se desdobra sobre tal terreno: Dostoiévski, Lautréamont, Proust, Artaud, Kafka, Céline... Esses escritores, foram por assim dizer, a vanguarda bélica no confronto com o bom gosto. Segundo Mário Perniola (2010, p. 16) o gosto, ao contrário do desgosto, é uma espécie de senso comum. Ele diz que o gosto não é simplesmente um sentimento, não, o gosto é um julgamento. O gosto é como uma lei de harmonia, como uma regra disciplinadora da mente, como uma crença universalmente aceita, cuja obrigatoriedade não depende do fato de ser verdadeira, mas a necessidade de colocar uma barreira para a loucura e para a estupidez. (PERNIOLA, 2010, p. 19)

Para Perniola o abjeto é uma forma combativa à ditadura do bom gosto. O gosto estético é fruto de um populismo midiático, de uma imposição estética e excludente. Perniola ressalta que, diante de nossa condição violenta, quem invoca o bom gosto e a estética contra o horrível e abjeto presente, que o rodeia e aprisiona por todos os lados, apresenta-­‐se como uma "bela alma", sim, porém, perdida e impotente.


54 O fanatismo pela bela aparência, que é um efeito da influência do julgamento estético, é solidário com uma mentalidade espiritualista e idealista que não quer ver aquelas dimensões naturais do ser humano, que não podem ser reconduzidas à alma e à forma. Assim, são completamente removidos o homem subcutâneo, as massas sanguinolentas, os intestinos, as vísceras e tudo aquilo que floresce destas, assim como os excrementos, a urina, a saliva e o esperma. O idealismo estético leva o homem a sentir náusea nos confrontos consigo mesmo: aquilo que está embaixo da pele se torna uma coisa execrável e inconcebível, tal como a pesquisa científica sobre a natureza era para os teólogos uma infâmia contra Deus! O julgamento estético relega o homem a um mundo de sonho que considera o desgosto como fonte de infelicidade. (PERNIOLA, 2010, p. 20)

Segundo Hall Foster (2014), o culto da abjeção ao qual a arte abjeta está relacionada, esse fascínio pelo trauma, pela agressão e pela dor, que presenciamos hoje nas artes, expressa um cansaço da política da diferença, a política excludente e elitista, da insatisfação com o modelo textualista da cultura e um repúdio à visão convencionalista da realidade. Para tais artistas, a abjeção é uma forma de testemunho da verdade necessária contra o poder. O desespero ante a persistência, ante a crise da Aids, doença e morte invasivas, pobreza e crime sistêmicos, o bem estar social destruído, inclusive o contrato social rompido (pois de cima os ricos não participam da revolução e de baixo os pobres são largados na miséria). A articulação dessas diferentes forças é difícil; em conjunto no entanto, elas estimulam a preocupação contemporânea com o trauma e a abjeção. (FOSTER, 2014, p. 157)

Segundo Márcio Seligmann-­‐Silva Lembremos que o abjeto, como define o Houaiss, é o “que é desprezível, baixo, ignóbil” e deriva do latim abjectus, “‘atirado por terra, derribado, desprezível, vil, [...] rasteiro, baixo, abatido’”, sendo que o particípio passado do verbo abjecere significa “lançar, atirar, derribar, deitar abaixo, desprezar, rejeitar." (SELIGMANN-­‐SILVA, 2010, p. 211)

Perniola (2010, p. 21) chama a atenção para a proximidade entre a abjeção e o desgosto. O desgosto como forma de recusar o gosto pequeno-­‐burguês. O mergulho no subsolo do repugnante e do nojento, em contraponto ao senso estético pré-­‐ estabelecido pelo poder. "O desgosto é abjeção, desprezo e autodegradação, é a proximidade com o impuro. O desgosto toca o estômago antes de chegar ao cérebro", diz Perniola (2010, p. 21). Para o pensador italiano, o portador do desgosto são os artistas, os homens ativos e produtivos.


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Quem experimenta o impulso do desgosto são as cabeças mais puras, os pesquisadores da verdade, os artistas e os poetas, "os espíritos impacientes". Estes estão mais próximos do "animal de boa consciência" do que do "homem social" do julgamento estético. (PERNIOLA, 2010, p. 21)

Ainda hoje, o corpo continua sendo um tabu, um terreno estranho e desconhecido. O corpo estranho do homossexual, do transexual e de muitas outras categorias que vê-­‐se hoje, ainda está em deslocamento contínuo, em processo, buscando sua representação ainda em espaços que lhe são estranhos e hostis. A veneração ao objeto, que em muitas vezes é considerado abjeto e digno de desprezo, ganha outros contornos. O ânus, por exemplo, uma parte do corpo designada à excreção das fezes, também é exaltado como lugar de delícias e prazeres manifestos. No século XIX positivista, triunfam no campo da antropologia criminal demonstrações de que traços da mente criminosa estavam sempre associados a anomalias somáticas. Os antropólogos ligavam determinadas deficiências físicas ou desvios de condutas sociais à determinadas camadas sociais oprimidas pela má nutrição e outras doenças. Daí a encorajar o preconceito do qual quem é feio naturalmente é mau por natureza. Também passaram a tornar-­‐se feios e maus, na literatura popular, todos os excluídos que a sociedade não consegue integrar e controlar, como os pobres do subproletário, os dementes, as prostitutas, as ladras e os homossexuais. (ECO, 2014, p. 261) O homossexual no século XIX tornou-­‐se um personagem: um passado, uma história e uma infância, um caráter, uma forma de vida; uma morfologia também, com uma anatomia indiscreta e talvez uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é no total escapa à sua sexualidade. (FOCAULT, apud ECO, 2014, p. 262)

Esta abjeção específica da homossexualidade, segundo Freud em seu livro O mal estar da civilização (1930), é uma reação contra o erotismo anal, como explica Hall Foster: Freud imaginou um mito de origem envolvendo uma repressão análoga, que leva o homem a se erigir de quadrúpede para bípede. Essa mudança da postura, de acordo com ele, trouxe uma revolução nos sentidos: o olfato foi desprezado e a visão privilegiada, o anal reprimido e o genital enfatizado. O resto é literalmente história: com os genitais expostos o homem ressintonizou-­‐se a uma frequência sexual


56 contínua, não periódica, e aprendeu a ter vergonha, que o impeliu a procurar uma esposa, formar uma família, fundar uma civilização, chegar audaciosamente onde nenhum homem tinha chegado antes. Por mais heterossexista que seja, essa fábula desvairada não deixa de revelar como a civilização é concebida em termos normativos -­‐ não só como renúncia e sublimação geral dos instintos, mas como uma reação específica contra o erotismo anal que implica uma abjeção específica da homossexualidade. (FOSTER, 2014, p. 156)

Bataille sugere que os animais podem ser vistos como simples tubos de dois orifícios: ânus e boca. Segundo Bataille, os animais têm a capacidade de descarregar impulsos violentos que provém do interior do corpo, por uma ou por outra extremidade, ou seja, por onde encontrar menos resistência. Porém, no caso da espécie humana: a conquista da posição vertical teria engendrado uma acentuada resistência nas descargas da região inferior. Dessa forma, impulsos vitais obscuros se viram repentinamente transferidos para o rosto, que assumiu parte das funções de excreção até então reservadas à extremidade oposta: "os homens passaram a escarrar, tossir, bocejar, arrotar, assoar, espirrar, e a chorar muito mais do que os outros animais, tendo sobretudo adquirido a estranha faculdade de soluçar e de rir às gargalhadas (MORAES, 2002, p. 206)

Na figura humana esses dois polos, segundo Bataille, sofrem um intercambiamento em intensas relações de correspondências. Para Bataille o ser humano tem dois rostos: o rosto oral que é dado pela boca e o rosto sacral que é dado aos órgãos genitais. Assim como os dois rostos têm função excretora próprias das extremidades, ou seja, a boca pode cuspir, escarrar e vomitar e o ânus defecar, existe uma relação ambivalente. Nos diversos jogos de amor entre os seres humanos, assim como a boca está apta para exercer atividades contraditórias como falar, beijar e lamber, o mesmo pode acontecer com o ânus: como revelam as práticas eróticas, o caráter terminal do rosto formado pelos orifícios inferiores ganha às vezes um valor de atração. (MORAES, 2002, p. 206) Lautréamont numa passagem em Cantos de Maldoror revela notável sintonia com a ideia batailleana da correspondência entre os dois rostos. Lê-­‐se no Canto IV: Ride, mas chorai ao mesmo tempo. Se não fordes capazes de chorar pelos olhos, chorai pela boca. Se ainda for impossível, urinai; mas eu vos aviso que algum líquido


57 é necessário aqui para atenuar a secura que o riso produz, em seus flancos, nos traços fendidos do traseiro. (DUCASSE, 1986, p. 173)

Para Julia Kristeva o abjeto não está presente apenas na imundície e no refugo. O abjeto, principalmente, está relacionado aos afectos, ou seja, como o corpo é afetado pelo mundo. O abjeto relaciona-­‐se ao encontro de corpos, de como somos afetados por outros corpos e sofremos alterações e com essas ações nossa potência aumenta ou diminui. Não é, pois, a ausência de limpeza ou de saúde que torna abjeto, mas aquilo que perturba uma identidade, um sistema, uma ordem. Aquilo que não respeita os limites, os lugares, as regras. O intermediário, o ambíguo, o misto. O traidor, o mentiroso, o criminoso em sã consciência, o violador sem vergonha, o assassino que alega salvar... Todo crime, por assinalar a fragilidade da lei, é abjeto, mas o crime premeditado, o assassinato acobertado, a vingança hipócrita o são mais ainda porque redobram e aumentam essa exibição da fragilidade legal. Aquele que renuncia a moral não é abjeto – pode haver grandeza na amoralidade e mesmo no crime que ostenta sua falta de respeito à lei, revoltado, liberador e suicida. A abjeção, em si, é imoral, tenebrosa, oscilante, suspeita: um terror que se dissimula, uma raiva que sorri, uma paixão por um corpo que lhe troca ao invés de lhe aquecer, um devedor que lhe vende, um amigo que lhe apunhala... (KRISTEVA, 1982, p. 4)

Georges Bataille foi o pensador principal na articulação acerca do corpo. Todo o pensamento em torno da construção de uma ideia de corpo, seja pelo viés do fragmento, do grotesco, do monstro, do informe, do corpo morto, abjeto, o cadáver, o corpo obsceno, passa pelo pensamento de Bataille. Wesley Peres12 em seu artigo "Bataille o pensador do corpo", para a revista Cult (2013), afirma que o francês, mais do que ninguém, poderia ser nomeado como o pensador do corpo. Não à toa, suas ideias foram elencadas para se articular com a construção da imagem do corpo em Hilda Hilst e em Iberê Camargo. Bataille pensa o corpo como algo sempre excessivo. Segundo Peres, o corpo em Bataille apresenta-­‐se de forma fragmentada, pois a parte não tem menos importância do que o todo. Como já apresentei, para Bataille o corpo não adota uma postura estática e fechada, mas nutre perspectivas cambiantes. Assim, Bataille apresenta os múltiplos fragmentos do corpo, porém, que se fazem uno como corpo. Para Bataille, 12

Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/georges-bataille-o-pensador-do-corpo/


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cada ser é distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua morte e os acontecimentos de sua vida podem ter para os outros algum interesse, mas ele é o único interessado diretamente. Ele só nasce. Ele só morre. Entre um ser e outro, há um abismo. (BATAILLE, 2013, p. 36)

Porém, segundo Bataille, procuramos transgredir esse abismo nos apossando do corpo do outro, e a primeira transgressão é quando despimos o outro. Assim, a nudez faz com que os corpos se abram. Para Bataille o campo da atividade humana que envolve o erotismo é o campo dos gastos inúteis, das finalidades sem fins, ou daquilo que encontra um fim em si mesmo. Peres (2013) apresenta uma lista de exemplos batailleanos desses dispêndios inúteis: “o luxo, os enterros, as guerras, os cultos, as construções de monumentos suntuários, os jogos, os espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da finalidade genital reprodutora)”. Portanto, Bataille é o nervo central da construção da imagem do corpo em Fluxo-­‐ floema e nas pinturas de Iberê Camargo como apresentarei mais adiante, nas obras, a presença do erotismo dos corpos. Neste capítulo apontei os principais conceitos e pensamentos mais evidentes sobre o corpo nas obras de Iberê Camargo e de Hilda Hilst. Constatei a presença predominante do corpo fragmentado, do corpo grotesco e do corpo abjeto, tanto no livro como nas pinturas. Tais características, expostas a partir do corpo, de suas entranhas, de suas carnes, estão presentes nas obras desses dois artistas, e levantam interrogações acerca da construção da imagem do corpo na linguagem verbal e visual. Tanto o pintor como a escritora, se valem da imagem de um corpo político, que luta contra os limites sociais, naturais e metafísicos deste corpo que é constantemente maltratado, subjugado, deformado, mutilado, fragmentado e muitas vezes apresentado de forma horrenda. A seguir, identifico tais conceitos diretamente nas obras dos artistas desta tese.


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CAPÍTULO 2 -­‐ HILDA HILST -­‐ CORPO E ALMA

2.1. DA CRÍTICA Neste subcapítulo, apresento a produção crítica que foi realizada na época do lançamento do livro Fluxo-­‐floema. E também algumas feitas à posteriori. Os livros de Hilda Hilst não costumavam aparecer na mídia. Os críticos evitavam escrever sobre suas obras, talvez por insegurança de dialogarem com uma linguagem tão incomum para o que estava acontecendo na cena literária brasileira. Saliento que as críticas que apresento a seguir focam na questão do corpo na obra de Hilda Hilst. Grande parte dessa fortuna crítica deve-­‐se ao acervo que Hilda Hilst doou para a Universidade Federal de Campinas, UNICAMPI, que se encontra sob responsabilidade do Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulálio” -­‐ CEDAE, no qual tive acesso à recortes de jornal da época do lançamento do livro Fluxo-­‐ floema, pinturas e desenhos feitos por Hilda Hilst, fotografias etc. Alguns críticos como Anatol Rosenfeld, Leo Gilson Ribeiro e Jorge Coli produziram consideráveis textos sobre a escritora. Na apresentação que o crítico Rosenfeld faz de Fluxo-­‐floema (1970), ele enlaça os três gêneros praticados pela escritora: poesia, drama e narrativa. O crítico reforça o papel da poesia na relação com os outros dois gêneros literários. Quando Hilda Hilst escreveu Fluxo-­‐floema, já havia concluído seu trabalho poético e sua obra para o teatro. Portanto, é evidente que essas linguagens, poética e dramática, tenham influenciado seu trabalho narrativo. Segundo Albuquerque (2002), os três gêneros não se superam nem se subordinam, eles coexistem porque têm origem na mesma fonte. Como o próprio Rosenfeld explica: Na linguagem nobre e austera de sua poesia Hilda Hilst não poderia dizer toda gama do ente humano, tal como o concebe, nem seria capaz de, no palco, "despejar-­‐se" com a fúria e a glória do verbo, com a "merdafestança" da linguagem, sobretudo também com a esplêndida liberdade, com a inocência despudorada com que invade o poço e as vísceras do homem, purificando-­‐os com os "dedos lunares" para elevar o


60 escatológico ao escatológico, visto nesta obra mesmo as trevas e o "porco" -­‐ "sou porco com vontade de ter asas" diz Ruiska (ROSENFELD, 1970, p. 16)

Em outro momento, o crítico ressalta a coexistência dos gêneros literários no texto de Hilda Hilst: Eles [os gêneros literários] são épicos no seu fluxo narrativo, que às vezes parecem ter a objetividade de um protocolo, de um registro de fala jorrando, associativa, e transcrita do gravador; mas são, ao mesmo tempo, nas cinco partes -­‐ "Fluxo", "Osmo", "Unicórnio", "Lázaro" e "Floema" -­‐ a manifestação subjetiva, expressiva, torturada, amorosa, venenosa, ácida, humorística e licenciosa de um Eu lírico que extravasa avassaladoramente os seus "adentros", clamando com "garganta agônica", do "limbo do lamento", tateando e sangrando, em busca de transcendência e transfiguração... um Eu dividido e tripartido, múltiplo. (ROSENFELD, 1970, p.14-­‐15)

Alcir Pécora também apresenta a multiplicidade dos gêneros literários presente em Fluxo-­‐floema: Um dos aspectos mais recorrentes dos textos em prosa de Hilda Hilst é a anarquia dos gêneros que produz, como se fizesse deles exercícios de estilo. Melhor dizendo, os textos se constroem com base no emprego de matrizes canônicas de diferentes gêneros da tradição, como, por exemplo, os cantares bíblicos, a cantiga galaico-­‐ portuguesa, a canção petrarquista, a poesia mística espanhola, o idílio árcade, a novela epistolar libertina etc. (PÉCORA, 2010, p. 11)

Rosenfeld chama a atenção para a questão da presença do grotesco no livro de Hilst: Larvas e asas, porcos, aves, serpentes e unicórnios -­‐ tudo se funde na multiplicidade do homem: semelhante visão forçosamente resulta num universo em que ressalta o grotesco-­‐fantástico, o grotesco-­‐burlesco, o grotesco-­‐terrorífico e o grotesco-­‐obsceno, unidos nessa obra única da literatura brasileira. (ROSENFELD, 1970, p.16)

Neste trecho sobre o livro de Hilst, além da presença marcante dos diversos tipos de grotesco, chamo a atenção para a questão da multiplicidade levantada por Rosenfeld Um infinito fluxo imagético. A presença dos animais também é elemento recorrente em toda a obra de Hilda, como apresenta Rosenfeld. Hilda tinha um bestiário recorrente em seus textos. A relação humano/animal aparece como uma


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potencialidade da crueza humana. A forma mais elementar das ações animalescas do ser humano. O tema multívoco dos ratos, aliás, ressurge numa das peças (Aves da noite) e também na ficção narrativa, fato digno de nota por revelar a persistência dos motivos que se mantêm através da obra poética, dramática e narrativa de Hilda Hilst. (ROSENFELD, 1970, p.11)

O bestiário era uma prática de Láutreamont e dos surrealistas, que elegem as espécies mais selvagens e indomesticáveis do reino animal, como o orangotango, o caranguejo, o ornitorrinco, o hipopótamo ou o rinoceronte. O passado bestial do gênero humano tem extensão na fauna surreal e até mesmo na zoologia escatológica de Bataille. Já o bestiário hilstiano, como explica Eliane Robert Moraes: compõe-­‐se dos bichos mais próximos da espécie humana, como o cachorro, o porco, a vaca, a galinha, o cavalo ou o jumento. [...] Antes, a consciência da animalidade em Hilda Hilst provém do desejo de indagar a identidade entre o homem e o bicho na sua dimensão mais prosaica, opondo, à afinidade bestial, a "vida besta" que aproxima um do outro. (MORAES, 1999, p. 121)

A presença do grotesco, da animalidade, também é identificada por Jorge Coli no uso de palavras de baixo calão para identificar órgãos do baixo corporal: Subversão que permanece nos seus escritos mais admiráveis. O orgânico, as pulsões do desejo, a animalidade -­‐ e nisso entra sua identificação com os cães, amorosos e instintivos -­‐ o corpo, a carne, os ossos, as dores e os prazeres sempre foram, nela, profundamente vividos. Sua espiritualidade é a mais carnal, alma feita de carne e de sexo; nas obscenidades expostas revelam-­‐se intimidades universais. Ao escrever -­‐ ou dizer -­‐ boceta, cu, piroca, Hilda Hilst investia algo de sagrado, afastando qualquer humor sórdido. Este investimento sagrado, porém, não retirava dessas palavras a evidência obscena: é a obscenidade que as faz fortes. (COLI, 2014, p. 272)

Ribeiro também ressalta a questão da escatologia, a doutrina que disserta sobre as fezes e coisas abjetas, de um Deus imanente do nojo, do expelido.


62 Ela reúne as duas escatologias: a do Eskhatoslogos, a doutrina final dos tempos e a do Skatoslogos, a doutrina que disserta sobre as fezes, Deus imanente no nojo, no expelido, na humilhação da arrogância fátua de meros mortais, Deus palpitando na boca escancarada de vermes ou no deserto de afetividade em que os homens se trucidam, se traem, se negam e terminam com sua altissonante pantomima do Nada: a vida. (RIBEIRO, 1977, p. 6)

Interessante notar como as críticas de Ribeiro aproximam-­‐se dos escritos de Rosenfeld no que diz respeito à construção da imagem do corpo no texto hilstiano: Os textos em prosa de Hilda Hilst têm todos o ritmo vagaroso de sementes. Suas palavras, frases, conceitos germinam atemporalmente na retina e na percepção de quem os lê. Em todos há uma desapiedada visão do animalesco, do visceral agarrado como um molusco repelente a um altar incompreensível. Deus? Um sádico imperfeito que esboçou seres humanos para temê-­‐Lo e adorá-­‐Lo. A velhice que mineraliza aos poucos o corpo, dando à flacidez e às rugas o tom acobreado, metálico da lenta necrose orgânica. (RIBEIRO, 1977, p. 7)

Ribeiro, mais adiante, ressalta a questão do abjeto na obra de Hilda Hilst: Hilda Hilst arma um espelho polifacetado, prismático, da nossa condição sobre a Terra. Ela não se detém diante do excremento, do assassínio, do acoplamento com animais, das amarras do sentimentalismo nem da moral para pesquisar, freneticamente, a casca que recobre a ferida de se ser. (RIBEIRO, 1977, p. 8)

Ribeiro expõe a questão da angústia quando relacionada com a finitude da vida e a certeza da chegada iminente da morte: "Não será através de todas as palavras de uma língua que se exorcizará a angústia. O dicionário inteiro não abolirá o tempo, a morte, o apodrecimento da carne." (RIBEIRO, 1977, p. 8) Rubens da Cunha em seu artigo "A escrita hemorrágica de Hilda Hilst e o fracasso" (2012) diz: A escrita de Hilda é atravessada pelo saudosismo, por essa hierarquização em que a arte como culto está acima de qualquer outra forma de arte, porém se estabelece também num lamento contínuo, hemorragia não estanque, tentando sempre conter o incontível, triturar o Real intriturável, tendo que criar com os dejetos, com o sangue perdido, tentando suturar a ferida feita no corpo da utopia, no corpo da arte como um todo. Um dos inúmeros exemplos está na narrativa “Unicórnio” de Fluxo-­‐ floema, a híbrida, animalesca narradora diz: “É estranho mas aquilo tudo me parecia


63 limpeza da alma, agora me parece imundície. Era tudo vaidade. No fundo nós nos achávamos excepcionais, eu sei que sou diferente de muitos, todos aqueles que escrevem são diferentes de muitos, mas agora é preciso ser homem-­‐massa, senão não há salvação.” (Hilst 2003: p.151). A escrita de Hilda agiu como um Sísifo, previamente e conscientemente derrotado, mas imbuído de força suficiente para lamentar uma vez mais o fim do ideal, a ausência de sentido, tendo sempre “a boca expelindo ainda palavras-­‐agonia” (Hilst 2001: p.88), enquanto empurra a pedra-­‐ escrita montanha acima. (CUNHA, 2012, p. 7)

Na citação de Rubens da Cunha, percebe-­‐se a atmosfera que envolve a obra de Hilda Hilst e particularmente o livro Fluxo-­‐floema. A presença do grotesco como forma de construção dos personagens, a incerteza de uma salvação e a angústia da certeza de que "não há salvação”. Os termos usados por Cunha representam muito bem todo o universo onde se encontram os atores dos contos do livro. O abjeto, a criação com dejetos, a hemorragia não estanque, a ambiguidade presente no contexto das histórias "o que era limpeza agora é imundície." Nota-­‐se claramente o conceito de grotesco e de abjeto presente na criação hilstiana. Como por exemplo no conto "Floema" onde os personagens discorrem por entre vísceras, sangue e humores impulsionados por facas e cortes: "Além de tudo, do cansaço, do nojo, da fatia de carne que sou, todo exposto..." (HILST, 2003, p. 239) Ou ainda: "sou a perna de um, o braço do outro, o suor, a língua. O ombro." (HILST, 2003, p. 241) Ou no conto "O Unicórnio": "... há um movimento desusado nas minhas vísceras, nos meus neurônios um acúmulo de agudeza." (HILST, 2003, p. 210) Muitos outros exemplos confirmam a presença do abjeto, do grotesco e do corpo fragmentado no livro de Hilst, como apresentarei mais a diante. A seguir, apresento o livro Fluxo -­‐floema, evidenciando a construção da imagem do corpo nesta obra caracterizada por uma paisagem desolada, onde o sagrado e o diabólico, o sublime e o grotesco habitam concomitantemente desnorteando seus personagens desvalidos e entregues a própria sorte, num mundo onde Deus usa suas criações como cobaias em um laboratório qualquer repleto de terror e tremor.


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2.2. FLUXO-­‐FLOEMA: A IMAGEM DO CORPO ESTRANHO Fluxo-­‐floema é o primeiro livro em prosa de Hilda Hilst, que até então tinha se dedicado exclusivamente à poesia e ao teatro. Lançado primeiro em 1970, pela Editora Perspectiva, teve seu relançamento pela Editora Globo, em 2003. Na primeira edição temos um texto de abertura do crítico Anatol Rosenfeld que , além de grande conhecedor da obra de Hilda, era um amigo próximo. Na segunda edição, temos uma abertura não menos importante do professor, pesquisador e escritor Alcir Pécora. Aliás, a reedição da obra completa de Hilda Hilst, pela Editora Globo, teve na organização e plano de edição o próprio Pécora. O livro tem uma maneira peculiar de construção poética narrativa. O leitor desavisado sente uma certa estranheza na forma como Hilda constrói seu texto. Em primeiro lugar, pela pontuação incomum às regras gramaticais, onde muitas vezes é difícil identificar imediatamente quem fala e com quem falam os personagens no texto. Diversas vezes a autora abdica de travessões, dois pontos antes de uma fala e até, às vezes, de maiúsculas no início de uma frase. A obra impressiona pela junção de diversos gêneros literários em um único texto: a poesia, o diálogo dramático, a prosa narrativa ficcional, a paródia, a fábula e o texto bíblico. Os personagens de Fluxo-­‐floema transitam entre o sublime e o grotesco que é construído na narrativa, no momento em que Hilda cria situações antagônicas, colocando lado a lado palavras e situações de beleza, erudição e até palavras singelas, e situações de linguajar chulo, grotesco e violento, utilizando palavras de baixo calão. Isso provoca a sensação de incerteza e desconforto, construindo assim uma poética grotesca e desarmônica. Como por exemplo, no trecho do conto "Fluxo": As doces, primaveris, encantadoras manhãs do campo. As ervinhas, as graminhas, os carrapichos, o sol doirado, e os humanos cagando e mijando sobre as ervinhas, as graminhas, os carrapichos e o sol doirado (HILST, 2014, p. 20).


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Mais do que desnudar, Hilda Hilst disseca seus personagens expondo vísceras, ossos, corrente sanguínea, fluxos de humores. E assim se aproxima da estética do grotesco. No livro, a escritora lança mão de imagens grotescas que, alinhadas às tendências do século XX, se aproximam ou se igualam aos conceitos de grotesco de Wolfgang Kayser (1986) e Mikhail Bakhtin (1999). E também aproxima-­‐se dos conceitos de abjeto de Julia Kristeva (1982). Assim, em Fluxo-­‐floema destaca-­‐se a prosa poética dramática, onde a junção dos gêneros literários funciona como fluxo natural de ideias, um fluxo de consciência13, sem obstáculos e sem respeito a convenções pré-­‐estabelecidas. Como o próprio título Fluxo-­‐floema, que pode ser traduzido como a seiva a percorrer os vasos internos das plantas. Porém, para Alcir Pécora, Não se trata, contudo, de um "fluxo de consciência" usual, em que a narração ou o enunciado se apresenta como realista de pensamentos do narrador. O "fluxo" em Hilda é surpreendentemente dialógico, ou mesmo teatral: o que dispõe como pensamento do narrador não são discursos encaminhados como uma consciência solitária supostamente em ato ou em formação, mas como fragmentos descaradamente textuais, disseminados alternadamente entre diferentes personagens que irrompem, proliferam e disputam lugares incertos, instáveis, na cadeia discursiva. (PÉCORA, 2010, p.10)

No livro de Hilda Hilst, seus personagens-­‐narradores se veem imersos num fluxo de consciência fragmentado, em um espaço que se fundem uma profusão de gêneros textuais utilizados pela escritora como estratégias de construção narrativa. Essa junção dos gêneros literários amplia a potência da linguagem quando mostra esses personagens transitando entre a paródia, a poesia, o drama, a prosa, a fábula etc. Em Fluxo-­‐floema sua intermidialidade se funda na pluraridade de gêneros textuais. Como explica Solange Ribeiro Oliveira: 13 O conceito de “fluxo de consciência” foi cunhado por William James e se referia ao turbilhão de pensamentos na mente consciente, isto é, toda a gama de impressões, sensações, raciocínios que se desenrolam em nível superficial. Disponível em: https://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/1657679> Acesso: 16/11/2018


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Haroldo de Campos considera que o novo paradigma abre espaço para procedimentos que ele endossa: [...] Quanto à literatura, Campos acolhe a criação polifônica, a carnavalização dos gêneros, o estilhaçamento do tema e a relativização do tempo. (OLIVEIRA, 2012, p.131)

Isso se dá na obra de Hilst na forma de uma infinidade de gêneros. A escritora lança mão de estratégias de construção de linguagem, como trechos de discurso meta narrativo, solilóquios, simulacros de textos teatrais dramáticos no formato de pequenos diálogos com indicação de fala de personagens, registro coloquial de linguísticas regionais, palavras, expressões e citações de obras literárias estrangeiras no idioma de origem, anotações esparsas, poemas, cartas, perguntas dirigidas diretamente ao leitor, enfim um "manancial enciclopédico de discursos." (RODRIGUES, 2007, p.162) Ao utilizar a técnica do fluxo de consciência e a "anarquia dos gêneros" como parte criativa do seu corpo de linguagem, Hilst realiza uma colagem, um discurso fragmentado, vertiginoso e impreciso, que se assemelha a ousados experimentos artísticos e literários das vanguardas do início do século XX. Essa tendência ao fragmentário e à imprecisão também a insere na criação literária contemporânea. (RODRIGUES, 2007) Pode-­‐se afirmar que o caráter de multiplicidade e de fragmentação faz com que o livro não se apresente como obra fechada, estática, mas como que em processo. Isso se evidencia nas referências a outras obras e nas mensagens quase codificadas que remetem para além da estrutura da obra. Onde a utilização de diferentes signos, de naturezas bem distantes, são fortuitamente aproximados e ressignificados, formando assim um corpo poético único. Como a referência ao filme Morte em Veneza no conto "O Unicórnio": Você sabe, eu dizia para ele, é muito bonito quando dois amigos se querem bem. Nós falávamos da Morte em Veneza, que é belíssimo, você conhece? Lógico, mas nem tudo acaba como Morte em Veneza, tira da cabeça, acabam mesmo é abaixando as calças e aí vem o pedaço pior. (HILST, 2003, p. 149)


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Ou citando filósofos gregos: "... ele dava aulas, você compreende, Parmênides, Pitágoras. Aí é que está, o moço tinha logicidade, os gregos e a bunda, você não vê que é muito lógico? que estória." (HILST, 2003, p. 150) Ou citando o escritor Nikos Kazantzákis, que tanto a influenciou: O Nikos, assim para te dar um exemplo, escreveu que quando ele encontrava um mendigo na rua, tinha vontade de dizer: me dá seu tempo, me dá seu tempo. Só isso é que ele pensava quando encontrava um mendigo na rua? Às favas com teu Nikos. Você não compreende. (HILST, 2003, p. 151)

Assiste-­‐se em Fluxo-­‐floema a uma multiplicidade de fragmentos diversos como que extraídos de uma biblioteca. É possível observar na obra um hibridismo de linguagens que nos faz perceber as inúmeras referências a outros autores. Como na passagem: "Você sabe que o Proust fazia muitas maldades? ... Olha, o Proust era um pederasta. Pois é, era o Proust. O Guide também era um pederasta. Pois é, o Guide, o Genet. pois é, é o Genet." (HILST, 2003, p. 154) No livro a escritora mostra os seus inventários de elementos, que são continuamente rearranjados no decorrer dos enredos. Pode-­‐se perceber, pelos procedimentos de Hilst, uma busca incessante, uma batalha com a linguagem, uma maneira de dizer o que não tem palavras. "Porque o anão não teria surgido se o meu filho não tivesse morrido. Querem que a gente escreva com uma língua dessas. Surgido, morrido. Que porcaria." (HILST, 2003, p. 33) ou em outra passagem: Será que estão me entendendo? O difícil desse meu jeito é que as frases ficam sempre mais complicadas do que seria sensato, porque o sensato, o criterioso, seria dizer assim: a claraboia e o poço têm o mesmo eixo. Às vezes uso recursos extremos para me fazer entender em casos extremos. (HILST, 2003, p. 35)

Ou quando a escritora usa a poesia junto à prosa: ...vida que eu bebo a cada dia, fogo sobre mim de amor, eu alegria, fogo, sobrevida, eu cantiga. Já sei. Te lembras? Cantemos juntos: Ai como eu queria


68 te amar, aai como eu queria te amar sem o verso ai como eu queria reverso de mim mesmo te amar AAIIIIIIIII IIIIA Aicomoeuqueriateamarrrrrrrrrrrrr Respirando alegria. Vem, vamos descendo e cantando. (HILST, 2003, p. 49)

Pode-­‐se notar nesta passagem do conto "Fluxo" que, além da mistura genérica de prosa e poesia, a escritora também se preocupou com o corpo do texto. Percebe-­‐se um esmero com a diagramação, onde os versos do poema são dispostos de forma descendente e, simultaneamente, ao fim da poesia, o personagem Ruiska diz: vem, vamos descendo e cantando. Portanto, o livro de Hilst possui características intermidiáticas, quando apresenta em seu corpo poético um fenômeno híbrido de mídias diferentes. Esta relação de hibridismo ocorre quando Hilst se vale de uma profusão de gêneros: prosa, poesia, música e até receitas culinárias. Com isso ficam evidentes em Fluxo-­‐floema o conceito de intermidialidade, no que diz respeito à forma de composição dos fragmentos, caracterizada por uma grande polifonia semântica, ultrapassando os limites tradicionais da literatura e subvertendo a forma de se contar uma estória. Ao dialogar gêneros textuais em um mesmo corpo de linguagem, Hilst nos abre um leque intermidiático, ao considerarmos o gênero textual como uma mídia. Como explica Irina 0. Rajewsky em seu artigo "A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade”: Condições análogas informam, por exemplo, as discussões acerca das concepções de gêneros, para introduzir um parâmetro de comparação; todavia, diferente do que se deu nos questionamentos recentes sobre o conceito de intermidialidade, agora se confere um potencial heurístico às concepções de gêneros, bem como às de mesclagem de gêneros ou ao próprio ato de minar as fronteiras genéricas. Mais propriamente, os estudos literários esclarecem que -­‐ apesar da sua construtividade e variabilidade histórica -­‐ as convenções de gênero, tal qual as tradições discursivas, desempenham um papel importante no processo de atribuir sentido(s) aos textos literários. Isto se verifica tanto no decorrer da sua produção, quanto durante a sua recepção. (RAJEWSKY, 2012, p. 56)


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Essa multiplicidade genérica utilizada por Hilst também é uma característica comum na arte contemporânea, assim como o gosto dos artistas pela citação e pela exploração de grandes arquivos de imagens, como se fossem parte de uma grande biblioteca visual pessoal. A citação entre obras deu um novo dinamismo à prática da intermidialidade. Além da multiplicidade genérica, Hilst também se vale de estéticas específicas como a do grotesco e do abjeto, na construção de sua poética. É por meio do grotesco e do abjeto que a autora questiona a época atual da sociedade de massa, construída sobre um simulacro que nos causa a agonia e a angústia de viver em um real distorcido, e que destrói a capacidade de sermos originais. A reflexão sobre as atrocidades humanas chama a atenção pela força das imagens do corpo, trazidas por Hilst por meio de seus personagens. Hilda Hilst caracteriza seus personagens com imagens apresentadas na forma da fragmentação e da multiplicidade. Em Fluxo-­‐floema, a fragmentação do corpo aparece de forma grotesca e abjeta, trazendo à luz a sensação de fragilidade e o medo do abandono de seus personagens desvalidos. Vê-­‐se em Fluxo-­‐floema uma fragmentação onde a fratura da estrutura do corpo funciona como, segundo Deleuze e Guattari (1995), uma desterritorialização do uno, como uma linha de fuga à trama do caos contemporâneo. Como explica Eliane Robert Moraes: "diante da falta de sentido de qualquer valor absoluto, a atenção volta-­‐se para o detalhe, para o insignificante, para o momentâneo. Diante de um mundo em pedaços e do amontoado de ruínas que se tornaria a história." (MORAES, 2002, p. 57). Hilda vale-­‐se da ironia trágica, do uso de paródias, justaposições de elementos díspares, e principalmente do fluxo de consciência. Tais atitudes criativas, como explica Moraes, articulam os procedimentos de Hilda Hilst aos procedimentos modernos:

A arte moderna respondeu à trama do caos através de formas fraturadas, estruturas parodísticas, justaposições inesperadas, registros de fluxos de consciência e da atmosfera de ambiguidade e ironia trágica que caracterizam tantas obras do período. (MORAES, 2002, p. 57)


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Pode-­‐se observar em Fluxo-­‐floema a fragmentação do corpo, onde a fratura da estrutura do corpo funciona como, segundo Deleuze e Guattari (1995), uma desterritorialização do uno, como uma linha de fuga à trama do caos contemporâneo. Hilda vale-­‐se da ironia trágica, do uso de paródias, justaposições de elementos díspares, e principalmente do fluxo de consciência. Assim, é possível classificar os textos de Fluxo-­‐floema como textos híbridos construídos, a partir da mistura dos gêneros literários, onde a literatura de Hilst dialoga com grandes nomes da literatura e usa o grotesco para expor a imagem do corpo de seus personagens imersos na angústia humana. A presença do grotesco também aparece na afirmação da completude dos binômios como o amor-­‐ódio, vida-­‐ morte, grotesco-­‐sublime, feio-­‐belo, ser-­‐estar. A arte grotesca, representante das manifestações das crises profundas, é uma arte contrária aos padrões clássicos, que buscavam na mitologia as fontes para suas inspirações e representações. O grotesco é apresentado também como forma híbrida do homem com o animal ou várias partes de animais diferentes que formam um outro ser imaginário. Os personagens de Fluxo-­‐floema são representados por meio de rebaixamentos, em que a autora compara suas atitudes, feições e sensações às de um animal. Por meio do grotesco Hilst mostra as várias possibilidades de construção da imagem do corpo pela ótica do feio, do podre e asqueroso. Hilda nos apresenta personagens caracterizados no "baixo" e "repulsivo", transgredindo assim a imagem do belo e do bem acabado que se espera do mundo e das artes. O abjeto, na literatura e nas artes, funciona como algo político. Como uma subversão da beleza e dos interditos do excremento e de tudo que é considerado obsceno. Entretanto, como já apresentei em Kristeva (1982), o abjeto, além da ausência de limpeza, é também aquilo que não respeita os limites, os lugares e as regras. Segundo Kristeva, a abjeção em si é imoral, tenebrosa e suspeita, como um amigo que nos apunhala. O abjeto em Hilda Hilst funciona como um afronta, uma arma apontada para a face do leitor desavisado em sua zona de conforto. Isso prova o cunho político de Fluxo-­‐floema, como de toda a obra de Hilda Hilst. A escritora em momento algum faz concessões para agradar ou cativar o leitor. Pelo contrário, busca afetá-­‐lo de forma profunda e visceral. Embora ela não tenha produzido sua


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obra de forma panfletária, a escritora não era alheia aos problemas do Brasil e do mundo: Hilda Hilst não está engajada no sentido político do termo porque a sua escritura é uma subversão dentro do Infinito atemporal, que não se prende às contingências das mudanças de poder. Não que ela esteja alheia à miséria, à fome, à bota na cara dos totalitarismos de todos os matizes, mas a privação da liberdade está encaixada numa realidade plural e maior: a do homem e sua solidão nos siderais espaços mudos. (RIBEIRO, 1977, p. 8)

E Leo Gilson prossegue: Se a escritora se mantém num plano especulativo, não deixa porém de abordar frequentemente as injustiças sociais, a exploração que os poderosos exercem sobre os fracos, as prisões, as torturas sádicas, o estupro da liberdade, mas não se limita a essa constatação sociológica. (RIBEIRO, 1977, p. 8)

Hilda Hilst sempre tratou com escárnio a temática brasileira. Até quando se referia à língua brasileira, o idioma, fazia questão de se expressar pelo grotesco. Uma vez uma repórter perguntou para a escritora qual conselho daria a uma jovem escritora? "Escreva em inglês, ninguém lê em português." (HILST, 2014, p. 262) Ou no conto "Osmo": "a Mirtza era lituana, ela falava a minha língua também, a minha língua é uma língua de bosta, ninguém fala a minha língua." (HILST, 2003, p. 92) Segundo Alcir Pécora, Hilda trata o Brasil como o país da bandalheira, da corrupção e onde todos querem levar algum tipo de vantagem:

ela trata o Brasil como país bandalho por antonomásia: terra devastada onde o poder injusto e ilegítimo pactua com a venalidade e a ignorância por meio da celebração da malandragem e do triunfalismo nacional-­‐popular-­‐carnavalizante. (PÉCORA, 2010, p. 27)

A seguir, apresento separadamente cada uma das estórias do livro Fluxo-­‐floema, que são: "Fluxo", "Osmo", "Lázaro", "O Unicórnio" e "Floema".


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2.3. "FLUXO" -­‐ O CORPO GROTESCO "Fluxo" é a história de um escritor às voltas com os conflitos do mundo exterior e interior. Ruiska vive trancado dentro do seu escritório, preocupado com o texto que precisa escrever, urgente. Seu editor está a pressioná-­‐lo a escrever algo que todos entendam, e assim poderá ganhar muito dinheiro para tratar da doença do filho Rukah, que sofre de encefalite. Sua esposa, Ruisis tenta ajudá-­‐lo dando algumas ideias. Mas o velho Ruiska não sabe escrever coisas de fácil digestão, Ruiska só sabe escrever "coisas de dentro". Por isso, o escritor prefere ficar trancado dentro do seu escritório. Ruiska fecha o portão de ferro, abre o poço e a clarabóia, comunica-­‐se pelo interfone. "Agora estou livre, livre dentro do meu escritório" (HILST, 2003, p. 23). Essa imagem reflete a imagem do artista no atelier, a necessidade de se entregar à solidão do processo criativo. Remete também a um distanciamento social tão rico à produção, tanto de Hilst quanto de Ruiska. Remete à urgência de uma imersão no trabalho criativo. "Livre dentro do atelier!" O atelier do artista é uma metáfora da cabeça do artista, onde o criador pode viajar por mundos distantes e desconhecidos da memória criativa. O artista, tanto no pensamento, nos devaneios criativos, ou quando está dentro do atelier produzindo, vislumbra ou concebe o novo, o perigo, às vezes até o inatingível. Tanto Hilda Hilst, quanto o personagem Ruiska, querem dizer o indizível, o incognoscível o que não pode ser conhecido, o inominável. Como na passagem onde Ruiska conversa consigo: Olhe aqui Ruiska, você não veio ao mundo para escrever cavalhadas, você está se esquecendo do incognoscível. O incognoscível? É, velho Ruiska, não se faça de besta. Levanto-­‐me e encaro-­‐o. Digo: olhe aqui, o incognoscível é incogitável, o incognoscível é incomensurável, o incognoscível é inconsumível, é inconfessável. (HILST, 2003, p. 24)

Em "Fluxo", Ruiska, o escritor, carrega a imagem mitológica de Sísifo, que na procura da palavra indizível e que não pode ser conhecida (incognoscível) é obrigado a empurrar incansavelmente sua pedra montanha acima, dia após dia, por toda a eternidade. No conto "Fluxo", o sacrifício do escritor na busca da palavra tem uma forte correspondência com a própria vida de Hilda. O fato de Ruiska trancar o


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portão de ferro, abrir o poço e a clarabóia, e se sentir livre trancado, corresponde ao auto-­‐isolamento da escritora na Casa do Sol em 1965. Como a própria escritora afirma: O importante é que aprendi [com o isolamento na Casa do Sol] a necessidade decisiva que cada um de nós tem de meditar profundamente, sem mentiras, sem coação, sem censuras. É necessária a distância para se conhecer melhor o próximo, o outro. De perto como eu estava, era muito difícil. Não havia nada por inteiro e também não havia a mim por causa das invasões do cotidiano em sociedade...Quero dizer: devemos pensar -­‐ e repensar-­‐sobre nós mesmos, para tentarmos tolerar uns aos outros melhor. (HILST, 2013, p. 49)

Ruiska, sua mulher Ruisis e seu filho Rukah. Três personagens. Os personagens são um só e ao mesmo tempo três. O meu de dentro é turvo, o meu de dentro quer se contar inteiro, quer dizer que Ruisis, Ruiska, Rukah, são três coisas que se juntaram aqui com um propósito definido, elas caminham para algum lugar, elas são alguém, elas não podem estar aqui por nada, nem eu as colocaria aqui por nada, entende, anão? (HILST, 2003, p.37)

Ou também mais adiante Ruiska diz:

Eu sou três. Eu amo Ruisis e amo Ruiska, odeio Ruisis e odeio Ruiska, amodeio Rukah. (HILST, 2003, p.37)

Nos outros contos do livro também há a presença marcante do número 3 como forma de representar um eu lírico composto de vários eus. O conto "Osmo" é constituído dos personagens: Osmo, Mirtza e Kaysa. Em "O Unicórnio", há dois irmãos: o menino pederasta, meio homem e meio mulher, e a menina lésbica, também homem-­‐mulher, e o eu-­‐narrador transformado em unicórnio, homem-­‐ animal. Em "Lázaro", os três personagens: o próprio Lázaro, Rouah e Jesus. Koyo, Haydum e Kanah são os personagens de "Floema". O número três é presente não só no livro Fluxo-­‐floema, mas também em toda a construção poética de Hilst, lembrando que sua obra circula em torno dos três pilares: Amor, Deus e Morte -­‐ figuras fundamentais do conhecimento que


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interrogam a condição humana. Como também na tríade cristã: pai, filho e espírito santo. O conto "Fluxo" começa com a entrada rompante do narrador. Direta e incisiva, a intervenção do narrador obriga o leitor a tentar, de alguma forma, situar-­‐se em algum lugar familiar: "CALMA, CALMA, também tudo não é assim escuridão e morte. Calma." (HILST, 2003, p.19) Não é assim? Uma vez um menininho foi colher crisântemos perto da fonte, numa manhã de sol. Crisântemos? É, esses polpudos amarelos. Perto da fonte havia um rio escuro, dentro do rio havia um bicho medonho. Aí o menininho viu um crisântemo partido, falou ai, o pobrezinho está se quebrando todo, ai caiu dentro da fonte, ai vai andando pro rio, ai ai ai caiu no rio, eu vou rezar, ele vem até a margem, aí eu pego ele. Acontece que o bicho medonho estava espiando e pensou oi, o menininho vai pegar o crisântemo, oi que bom vai cair dentro da fonte, oi ainda não caiu, oi vem andando pela margem do rio, oi que bom vou matar minha fome, oi é agora, eu vou rezar e o menininho vem para a minha boca. Oi veio. Mastigo, mastigo. Mas pensa, se você é o bicho medonho, você só tem que esperar menininhos nas margens do rio e devorá-­‐los, se você é o crisântemo polpudo e amarelo, você só pode esperar para ser colhido, se você é o menininho, você tem sempre que ir a procura do crisântemo e correr o risco. De ser devorado. Oi ai. Não há salvação. (HILST, 2003, p. 19)

Pode-­‐se observar nesse trecho a abordagem da angústia de viver. Os personagens do livro sofrem não pelo medo da morte, mas pela angústia de viver na certeza da morte. Por essa razão, parece-­‐nos adequado para pensar a condição do personagem o conceito heideggeriano de ser para a morte. Para Heidegger (2012) a morte não é uma simples presença que ainda não se tornou realidade, mas uma iminência que constitui existencialmente o ser. A morte irrestrita, insuperável, certa, indeterminada. Para Heidegger a ideia da morte revela o modo mais originário e mais penetrante por encontrar-­‐se na angústia. O ser para a morte, portanto, é um ser em angústia. O angustiar-­‐se é condição para que se configure a consciência para um saber-­‐se mortal. Na obra de Hilst a estranheza também se dá pela abordagem dos temas relacionados à degradação do corpo humano e ao sentimento de abandono. É o que Wolfgang Kayser diz acerca do grotesco: a angústia de viver e não o medo da morte (KAYSER, 1986, p. 159).


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A narrativa, em forma de parábola infantil, causa um certo desconforto ao expor um menininho, indefeso, a um monstro medonho. Nisso o narrador nos apresenta a inevitabilidade da morte do menininho ante o monstro. "Não há salvação". O uso do personagem infantil também reforça a ideia de grotesco, pois tem o objetivo de chocar o leitor. "A infância é o símbolo da inocência, da simplicidade natural e da espontaneidade. O menininho de Hilst representa o estado anterior ao pecado, como na parábola do Reino dos Céus, a infância representa o estado prévio à obtenção do conhecimento". (CHEVALIER, 2016, p. 302). Na parábola do Reino dos Céus, após provarem do fruto proibido da árvore do conhecimento, Adão e Eva são expulsos do Paraíso por Deus e expostos a toda sorte de desgraças. Ou seja, antes da queda, Adão e Eva andavam pelo Paraíso despidos de roupas mas vestidos de graça. Após a queda ambos perderam a Graça Divina, passaram a sentir vergonha de seus corpos, tornaram-­‐se desgraçados, sem a graça de Deus. Assim, o bicho medonho da fábula introdutória do conto “Fluxo”, constitui a imagem da bestialidade, do perigo. Tal imagem representa a imagem da morte do corpo. Personificada por Tânatos, filho da Noite e irmão do Sono, na iconografia antiga, a morte é representada por um túmulo, um personagem armado com uma foice, uma divindade com um ser humano entre as mandíbulas, no caso aqui, o corpo do menininho que caiu na fonte. "A morte designa o fim absoluto de qualquer coisa de positivo: um ser humano, um animal, uma planta, uma amizade, uma aliança, a paz numa época. Não se fala na morte de uma tempestade, mas na morte de um dia belo". (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 621). Entretanto, há uma ambivalência na morte enquanto símbolo, pois sendo representante do aspecto perecível e destrutível da existência do corpo, ao mesmo tempo a morte é também a introdutora aos mundos desconhecidos, a morte é quem abre acesso a uma vida com o rito de passagem. Se a morte é filha da noite e irmã do sono ela possui, como sua mãe e seu irmão, o poder de regenerar. Mas isso não impede que o mistério da morte seja tradicionalmente sentido como angustiante e figurado com traços assustadores. Tal angústia é o que caracteriza os personagens do livro de Hilda Hilst. Imersos na angústia, não de morrer, mas na angústia de viver na iminência da morte,


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abandonado por um Deus cruel e sádico, pelo qual, e apenas através Dele, pode-­‐se conhecer o verdadeiro amor. Em "Fluxo", Hilda Hilst utiliza da escatologia, que é o tratado acerca dos excrementos, para causar repulsa. A imagem do corpo no conto, e também em todo o livro, é construída a partir de imagens grotescas que a escritora associa ao uso do conceito de abjeto, com um linguajar chulo, referências as entranhas corporais, fluidos corporais, excrementos, órgãos sexuais apresentados de forma agressiva e capaz de causar a repulsa ao invés de sedução. O abjeto é composto por todas as coisas que ameaçam a nossa sensação de limpeza. Diz respeito às coisas repugnantes, como o interior do corpo, fluídos corporais ou resíduos, e a imagem de vísceras e excrementos. Caracteriza uma fala grotesca quando esta se opõe ao ideal platônico de beleza. Eu queria ser filho de um tubo. No dia dos pais eu comprava uma fita vermelha, dava um laço no tubo e diria: meu tubo, você é bom porque você não me incomoda, você é bom porque é apenas um tubo e eu posso olhar para você bem descansado, eu posso urinar a minha urina cristalina dentro de ti e repetir como um possesso: meu tubo, meu querido tubo, eu posso até te enfiar lá dentro que você não vai dizer nada. (HILST, 2003, p. 20)

No trecho, o personagem fala de um tubo. Tal imagem remete à ideia de Bataille, quando o filósofo sugere: que os animais podem ser vistos como simples tubos de dois orifícios, o ânus e a boca, disso decorrendo sua capacidade de descarregar os impulsos violentos que provêm do interior do corpo indiferentemente numa ou noutra extremidade, como acontece de fato, onde encontram menor resistência. (MORAES, 202, p. 206)

De fato, a imagem do tubo aparecerá outras vezes como apresentarei mais adiante. Tanto a imagem do tubo, e seus dois orifícios, bem como a presença da urina, remetem ao conceito de abjeto, que associa-­‐se com tudo que é repulsivo e fascinante sobre os corpos, em particular aspectos da experiência corporal que inquietam, como os líquidos corporais excretados. O abjeto se apresenta de forma dual, ou seja,


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ele atrai e repele. O abjeto quando objeto de erotismo torna-­‐se duplamente abjeto, potencializa-­‐se. Haja visto muitas práticas sexuais que envolvem a urina e as fezes e o sado-­‐masoquismo. Neste caso o abjeto se transforma numa transgressão sexual. O sexo, que para muitos é um tabu, aqui torna-­‐se o tabu do tabu, um interdito. Que para alguns especialistas ou pessoas não afeitas, o indivíduo que sente prazer com fezes, urina, saliva, dor e outras práticas de parafilias, necessita de tratamento psicológico. A saliva também é um líquido corporal que tem por natureza um teor abjeto. Tanto quando apresentada sob forma mais passiva, como a baba que escorre pela boca, quanto quando é usada de forma agressiva, como o cuspe e o escarro. A saliva alheia é um fluído corporal que representa o nojo, mas também representa a afronta. A saliva, em forma de cuspe, ou seja, excretada por força agressiva, abjeta, designa o que agride e incomoda, perturba uma ordem estabelecida. No texto, o personagem Ruiska é constantemente coagido e subjugado pelo seu editor, "o cornudo". Nesta passagem, o editor pressiona Ruiska para que ele entregue o texto no dia seguinte: "Mostram a cara, assim é que eu gosto, me enfrentam, assim é que eu gosto, cospem algumas vezes na minha boca, assim que eu gosto. Gosto de enfrentar quem se mostra." (HILST, 2003, p. 23) e na sequência: "Ele me cospe no olho." (HILST, 2003, p. 24) O cuspe como forma de subjugação e também de humilhação. Segundo Chevalier e Gheerbrant, o cuspe é uma expressão única do ser humano: o único animal que adquiriu a capacidade de cuspir como uma forma de expressão grotesca. A saliva é uma secreção corporal muito significativa e dual que pode ser interpretada tanto de forma abjeta como espiritual. A saliva vai do sublime ao grotesco:

Saliva: símbolo de criatividade e da destruição. Jesus cura um cego com sua saliva(João, 9, 6) Jó fala de inimigos que cospem no seu rosto (Jó, 17, 6). A saliva apresenta-­‐se como uma secreção dotada de um poder mágico ou sobrenatural de duplo efeito: ela une ou dissolve, cura ou corrompe, aplaca ou ofende. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p.799)


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Entretanto, a saliva pode estar relacionada ao erotismo. O beijo na boca é uma troca de saliva. Algumas práticas de S&M (sadomasoquismo) tem o cuspe como forma de humilhação e excitação. Quando Ruiska diz que "cospem algumas vezes na minha boca, assim que eu gosto" isto pode ser associado a uma prática masoquista de excitação pela humilhação. E quando ele diz: "ele me cospe no olho", imediatamente relaciono a passagem ao livro de Bataille A história do olho (2003), onde o escritor faz uma analogia entre o olho e o ânus. Constata-­‐se assim uma carga de erotismo à cena de Hilda Hilst. Mais adiante, Ruiska narra mais uma dominação do editor sobre seu corpo: Encosto a cabeça no chão. Não porque tenha vontade, não, ele é que me obriga a encostar a cabeça no chão. Irriga tua cabeça, velho Ruiska, suga a vitalidade da terra, torna-­‐te terra, estende-­‐te no chão agora, abre os braços, abre os dedos, faz com que tudo se movimente dentro de ti, torce as tuas vísceras, expele o teu excremento. (HILST, 2003, p. 24)

Nessa passagem o personagem se mostra caído, jogado na terra. A imagem da terra, do chão de terra, é recorrente, como apresentarei, em todos os cinco contos do livro. A imagem do corpo de terra. A terra é um importante elemento grotesco corporal presente em Fluxo-­‐floema. A autora usa a imagem da terra, que é o símbolo do baixo, do grotesco e da morte. O oposto do divino céu, a terra. Para Bakhtin (1999), a terra é um elemento característico do corpo grotesco, a terra como imagem da morte, "do último abraço da nossa mãe terra", e o filósofo trata do tema da terra maternal e da morte como um retorno ao seu seio, a imagem da morte como renovação e fertilidade. A imagem do corpo de terra é apresentado em diversas partes do livro Fluxo-­‐ floema. A terra, que vai nos tragar certamente um dia, é elemento muito utilizado por Hilda em sua obra. Na verdade a temática da morte aparece com frequência. Ruiska em determinado momento diz: "quero fazer o possível para não morrer, a terra, a terra dentro da gente e sob a gente, isso da terra me exaspera." (HILST, 2003, p. 41) O mesmo Ruiska, ao lembrar do pai, louco na fazenda, falando com a terra, por entre os animais, em um tom bem autobiográfico remete à história de Hilda, que


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teve o pai acometido pela loucura, e morava em uma fazenda no interior de São Paulo. Aí tem-­‐se novamente a temática da terra: nem imaginas o que ele falava com a terra, ele falava: eu te amo de um jeito que ninguém sabe ao menos o trejeito, eu te amo inteira com tua escuridão, o teu vermelho, o teu diamante, teus amarelos, teu vermelho cristal, teu vermelho fundo, teu, tua. Depois ele arranhava a terra, se lavava de terra, depois me chamava: Ruiska, Ruiska menino! Eu saía e entrava, ele dizia de um jeito santo: come terra, filho Ruiska, esfrega a terra no dente, bobalhão, cheira essa que vai te comer, essa linda vermelha, essa que é mais você do que você, essa que é mais eu do que todos meus cantares, meus esgares, meus. (HILST, 2003, p. 46)

As vísceras também são elementos grotescos da imagem corporal criada por Hilst no conto. Segundo Bakhtin, essas imagens do corpo fazem parte da corrente poderosa do grotesco: corpo despedaçado, órgãos destacados do corpo [...] intestinos e tripas, bocas escancaradas, absorção, deglutição, beber e comer, necessidades naturais, excrementos urina, morte, parto, infância, velhice etc. Os corpos estão entrecruzados, misturados às coisas e ao mundo. (BAKHTIN, 1999, p. 282)

Neste momento do conto, o personagem escritor Ruiska, trancado dentro do seu escritório, está às voltas com o seu editor, que acaba de lhe cuspir no olho e na boca, e manda que ele escreva coisas fáceis, comerciais e vendáveis, ou seja, manda ele expelir seu excremento. O editor, também chamado por Ruiska de "cornudo", diz a ele que não escreva sobre o incognoscível. O incognoscível aqui é a erudição, são as "coisas de dentro", o sensível. No trecho do conto Hilda apresenta um corpo reprimido por forças externas, sendo subjugado e jogado à terra. A imagem do corpo abjeto se apresenta sob forma das vísceras e dos excrementos que Ruiska é forçado a expelir. Hilda se vale do abjeto e do grotesco para expor a violência e a dominação do homem sobre o homem e sobre os animais. Hoje, artistas e escritores empregam material abjeto como forma de resistência. O abjeto é um conceito cultural que se refere ao impulso de rejeitar o que ameaça o eu. Em Fluxo-­‐floema, Hilda Hilst utiliza o abjeto como instrumento de expressão contra as crueldades do ser humano, a desigualdade social, e a violência do Brasil. Hilda


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critica grotescamente as "bandalheiras" que caracterizam a sociedade, principalmente a forma como os governantes encaram a política brasileira. "Brasil, país bandalho!" -­‐ bradava Hilda em suas entrevistas. Hilda Hilst já se valia da estética do abjeto em 1970, o ano em que lançou Fluxo-­‐ floema. Provavelmente, pela grande influência que teve do pensamento de Georges Bataille, Lautréamont e os surrealistas que já haviam trabalhado com o grotesco em suas criações, anteriormente. Pois o grotesco é o pai do abjeto. Segundo Prazeres, o abjeto reintroduz a tradição do grotesco no campo das artes visuais e da literatura incorporando alienação, monstruosidade, através da exploração da identidade e ramificações do monstruoso. (PRAZERES, 2015, p. 11) Outra imagem no texto de Fluxo que também refere-­‐se ao corpo grotesco é a imagem hibrida de dois animais. Quando o "cornudo" pergunta a Ruiska quem é ele, "Quem é você, Ruiska? Hein?... Está bem, está bem, sou um porco com vontade de ter asas". (HILST, 2003, p. 24) Para Kayser, não é preciso fazer longas descrições sobre a maneira como o humano e o animalesco surgem fundidos no grotesco. O filósofo alemão ressalta a imagem do corpo grotesco na transição de corpos humanos para formas de animais e plantas onde se entrelaçam objetos, gavinhas, corpos meio homem meio animais. (KAYSER, 1986, p. 20). A imagem de Ruiska como um porco com asas refere-­‐se ao alto e baixo corporal. A imagem do porco, um animal que vive fuçando por entre excrementos e revirando a terra, representa o baixo, o sujo. As asas, em contrapartida, representam o alto, o divino, os anjos. Essa dualidade presente nesse ser onírico é característica marcante do uso do grotesco em "Fluxo". A imagem do porco será muito utilizada pela escritora ao longo dos cinco contos. O porco é um dos muitos animais que fazem parte do bestiário hilstiano. Seja para nomear Deus, Jesus, o escritor. O porco em "Fluxo" relaciona-­‐se com a imagem de um corpo abjeto, que vive por entre a imundície fuçando e sempre olhando para baixo. A imagem grotesca do porco nos chama a atenção para nossa mais profunda animalidade.


81 O porco é geralmente o símbolo das tendências obscuras, sob todas as suas formas, da ignorância, da gula, da luxúria e do egoísmo. Pois, escreve São Clemente de Alexandria citando Heráclito, o porco tira o seu prazer da lama e do esterco. É a razão de ordem espiritual da interdição da carne de porco especialmente no Islã [...] Para os quiguirzes, ele é um símbolo, não somente da perversidade e da sujeira, mas também da maldade. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2016, p. 734)

Na imagem contraditória do porco com asas, temos a presença do grotesco e do sublime. O porco representa o que de mais baixo e sujo, e as asas, que representam a elevação, o voo, os anjos. Pode-­‐se reconhecer uma beleza estética juntamente com uma repulsa, há uma atração e uma aversão, e essa ambiguidade aparece como forma de transgressão, pois a sensação de estranho surge quando se subverte aproximando elementos que não são familiares entre si. Como é o caso das asas nos porcos. As asas, segundo Chevalier e Gheerbrant: São, antes de mais nada, o símbolo do alçar voo, do alijamento de um peso (leveza espiritual, alívio), de desmaterialização, de libertação -­‐ seja de alma ou de espírito -­‐, de passagem ao corpo sutil. [...] Na Bíblia, são símbolos constantes da espiritualidade, ou da espiritualização, dos seres que as possuem, quer sejam representados por figuras humanas, quer tenham forma animal. Dizem respeito à divindade e a tudo que dela pode se aproximar após uma transfiguração. [...] Fala-­‐se das asas de Deus na Santa Escritura. Elas designam seu poder, sua beatitude e sua incorruptibilidade. [...] Portanto, as asas exprimirão geralmente uma elevação ao sublime, um impulso para transcender a condição humana. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2016, p. 90-­‐91)

Assim, o hibridismo corporal "porco com asas" é uma característica evidente da presença do corpo grotesco em "Fluxo". Aliás, os animais estão muito presentes em todos os contos desse livro. O bestiário é um livro em que, na Idade Média, se reuniam descrições e histórias de animais, reais ou imaginários, geralmente com ilustrações. Hilda se vale de espécies mais próximos do ser humano, como o cachorro, o porco, a vaca, a galinha o rato ou o jumento. Animais domesticados e mais sujeitos à existência humana. Hilda era muito próxima dos animais, era famosa por chegar a ter cem cachorros em seu canil na Casa do Sol. Em suas entrevistas a escritora sempre mencionava a presença dos animais em sua obra e em sua vida: JC: O que seria possível dizer das relações entre "animalidade" e "humanidade"?


82 HH: Eu acho que são coisas tão diferentes, tão completamente diferentes! Eu adoro bichos: cachorros, gatos, cavalos, vacas. Acho que os animais são puros, não têm consciência. Já o homem não: é safado. (HILST, 2013, p. 202)

Principalmente os cachorros: CLB: Em português, todos sabemos o que significa "fazer uma cachorrada" com alguém. Na sua opinião -­‐ abalizada, pois poucas pessoas se dariam ao trabalho de criar noventa cães, é bastante conhecida a sua afeição por esses animais. Como se explicaria essa carga semântica negativa em relação aos cachorros, que alguém disse tratar-­‐se do melhor amigo do homem? HH: É porque o homem não tem a compreensão do sacana que ele é. Coitados dos cachorros. Está completamente errado, não é? O homem não presta; já o cão é um ser maravilhoso. O cavalo, a vaca, o boi, todos eles. Eu sempre tive um amor desesperado pelos animais. Tenho muita pena dos animais, por eles serem tão mal compreendidos. Eu tenho tudo a ver com o animal. (HILST, 2013, p. 203)

O porco também tem lugar de destaque: Vocês viram, eu tenho ali um retrato de uma moça beijando um porco; eu adoro porcos. (HILST, 2013, p. 203)

No conto "Fluxo" a escritora recorre à imagem do cão para representar o homem abandonado, frágil, subjugado e agredido pela sociedade. Hilda utiliza essa relação humano/animal como forma de potencializar a crueza humana, no trecho em que Ruiska conta que, ao tentar salvar um cão da carrocinha, os funcionários olhavam atravessado para ele e diziam: O cachorro é pra matar, seu, esse aí então tá todo sarnento, olha o pus escorrendo, olha a casca feridosa da ferida. (HILST, 2003, p. 41)

Também elementos do abjeto como a violência, doenças, casca de ferida, pus, são elencados a fim de causar um efeito traumático no leitor, originário do confronto com o que repulsa.


83 O abjecto é composto por todas as coisas que ameaçam a nossa sensação de limpeza. Diz respeito às coisas repugnantes, como o interior do corpo, fluídos corporais ou resíduos. (PRAZERES, 2015, p. 15)

Outra imagem grotesca presente em "Fluxo", relacionada ao bestiário hilstiano, é a presença de sexo com animais. No conto, o leitor é apresentado à relação sexual entre um anão e uma serpente. Tanto a figura do anão como a da serpente são figuras do universo grotesco. Um anão com uma serpente introduzida no ânus e delirando de prazer é, no mínimo, uma cena abjeta. Proponho uma leitura da cena: E... enrabou-­‐me. Hein? Pois foi. Fiquei preso no covil e o rabo de prata entrava na minha víscera, estufava, olha, cheguei a dar dez gritos de prazer, pela alegria de ter o teu rabo na minha caverninha, mas agora devo seguir o amigo lá de cima, deixa-­‐me partir, gozei esplendorosamente, obrigadinha. E a serpente nada. Não saía? Pelo contrário, mais entrava. Fiquei assim alguns dias, comi minhocas, cascudinhos que não sei bem o nome, e de vez em quando eu olhava para trás pra ver até onde eu estava metido, quero dizer, até onde ela se metia em mim, e quando eu olhava ela silvava redonda de alegria, até que inventei de meter o meu próprio rabo, esse ocre que vês, naquela gargantinha, foi o que me valeu, Ruiska, enquanto ela tossia eu tossia também e num espasmo medonho desligamo-­‐nos, espera Ruiska, ainda não acabei. Fui saindo de costas, obrigadinha, e depois corri, mas a maldita atrás, não queria por nada me largar, chamava-­‐me de irmãozinho, dizia coisas, Ruiska, nem posso repetir o que a maldita dizia, houve um momento que ela se inteiriçou, pensei é agora, vem como lança e me estoura, mas não, abriu-­‐se prodigiosa, em leque, te lembras daquele mexedor de champanhe que a mulher do editor trazia na bolsinha? Não era lima, anão? Que nada, uma pequena vara, um botão na ponta e a peludinha apertava e do outro lado saía uma vassourinha. Pois a serpente também, mas que vassoura homem, aí é que eu entendi porque gritei dez vezes, entendeste por certo, quando o rabo entrava ela abria a vassoura na minha víscera e chacoalhava. E depois? Senhora minha, eu disse, pela minha barba, deixa-­‐me seguir caminho, não posso perder meu velho amigo, e ela se aproximava, fazia caras, homem, que caras, apertava os olhinhos, de repente não sei quem foi que me ajudou. O quê? Caiu fulminada. Não. Verdade Ruiska, a um palmo de mim, silvou, retesou-­‐se inteirinha, desabou esfarinhada. Que sorte, anão. Pois foi. (HILST, 2003, p. 60-­‐61)

O sexo entre humanos e animais aparece em várias obras de Hilda Hilst. No livro Contos d'escárnio, textos grotescos (1990) há uma cena de sexo entre um homem e uma macaca (p. 42), no Caderno rosa de Lori Lamby (1990) uma jovem que tem relações sexuais de várias maneiras, com um jumento, para citar duas cenas da obra de Hilda. A escritora usa tal recurso como forma de expor um interdito, que é a zoofilia ou bestialidade, de maneira bem suave e beirando a normalidade. Tal conteúdo funciona como um trauma para o leitor desavisado, causando-­‐lhe um


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intenso incômodo. O sexo com animais é considerado em nossa sociedade como um tipo de aberração e desvio psíquico. Em seu livro A Vida Sexual (1901-­‐1933) o neurologista português Egas Moniz (1874-­‐1955) constrói noções de sexualidade normal e patológica, num discurso construído a partir da interseção entre diferentes campos do conhecimento, tais como a psiquiatria e a psicanálise. Segundo Moniz, a bestialidade é a perversão sexual que consiste "na preferência que os indivíduos dos dois sexos dão aos animais para a saciação dos desejos genésicos." (MONIZ, 2009, p. 563) E prossegue:

A bestialidade tem quase sempre uma origem psico-­‐patológica, auxiliada por uma notável hiperestesia sexual. Indivíduos há que fazem descer o seu carácter moral até o último grau pelos excessos da libertinagem e que se dão à prática deste vício como uma necessidade imperiosa da sua satisfação genésica. Encontra-­‐se nos dois sexos e por vezes é o único processo que pode sexualmente satisfazer os doentes que se entregam a tão repugnantes práticas. (MONIZ, 2009, p. 564)

Chamada à sua época de puta, bruxa, louca, Hilda Hilst, em narrativas de questionamento da realidade e dos limites do eu, na exibição de parcelas do humano vedadas à circulação, lança-­‐nos alguns vislumbres sobre o papel ético dos escritores frente aos muros e véus que nos restringem. Segundo Prazeres (2015), essas parcelas vedadas ou veladas à circulação é o que denomina-­‐se o obsceno, do latim ob skene, ou seja, fora da cena. No teatro grego, era o que deveria ser encenado atrás do palco, longe das vistas dos espectadores. Eles ouviam mas não viam. Sabiam que existia mas não era mostrado. A obscenidade é uma categoria cultural e reside no olhar do observador. Hilda emprega a obscenidade como maneira transgressiva. Como explica Bruna Prazeres: A obscenidade tem sido empregada em práticas de representação como um potente instrumento de transgressão e resistência contra normas sociais e hierarquias dominantes, regimes de disciplina opressiva e controle. De um modo geral, o obsceno significa algo que ofende ou provoca porque desafia as normas aceitáveis da decência, do civilizado. (PRAZERES, 2015, p. 32)


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E prossegue: "A obscenidade é aplicada aos horrores da vida quotidiana como a pobreza, guerra, homicídio… pode-­‐se dizer que a obscenidade conota o excesso, violência e transgressão." (Idem) Segundo Leo Gilson Ribeiro:

Hilda Hilst também indagava a si mesma se a História não tinha sentido em seu fúnebre desfile de guerras, massacres, inquisições, discriminação dos judeus, dos negros, dos índios, dos homossexuais, em guerra aberta contra tudo que fosse "diferente". Como explicar que Jesus Cristo e Gandhi pregaram a mansuetude, a paz, o amor ao próximo e foram assassinados? Porque uma figura como São Francisco de Assis não instaurara uma fé na humanidade capaz de levá-­‐la ao amor e sempre apenas rumo ao egoísmo e a barbárie? E previa um final apocalíptico para a espécie humana porque o homem perdera sua alma. (RIBEIRO, 1999, p. 87-­‐88)

No conto "Fluxo", o estranhamento causado pelo texto toma grandes proporções quando Ruisis, a mulher de Ruiska, o avisa que seu filho Rukah havia morrido. (HILST, 2003, p.28): "Morreu? Tão depressa?" As palavras insensíveis soam agressivas ao leitor acostumado com a comoção da morte por parte de familiares tão próximos, e tais palavras causam repulsa no leitor. Os laços de carne me chateiam. São laços rubros, sumarentos, são laços feitos de gordura, de náusea, de rubéola, de mijo, são laços que não se desatam, laços gordos de carne. O galo está cantando, o carneiro está balindo, a vaca está mugindo, Ruisis está chorando e meu filho está deitado mudo no seu pequeno caixão, no centro do pátio de pedras perfeitas. (HILST, 2003, p. 28)

Neste trecho pode-­‐se observar a aproximação de opostos como forma de caracterizar o grotesco. Tem-­‐se lado-­‐a-­‐lado palavras abjetas como excrescências, mijo, nomes de doenças infecciosas, e animais domésticos postos a emitirem cada um o seu som característico como numa imagem de presépio de Natal às avessas, um presépio de velório. A imagem de uma criança no caixão evento que desloca a expectativa do existir, também caracteriza-­‐se por uma imagem grotesca. A imagem do cadáver, por si, já caracteriza uma imagem abjeta. A imagem do cadáver de uma criança ultrapassa esse grau de abjeção. A cena se passa no pátio interno da casa de Ruiska. Que claramente remete à Casa do Sol, onde vivia Hilda Hilst. "Rukah está


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deitado no seu minúsculo caixão doirado. Castiçais de bronze, de prata e de lata. No centro do pátio de pedras perfeitas. Que harmonia." (HILST, 2003, p. 28)

Fig. 1014 -­‐ Casa do Sol, Campinas, SP. Na figura 10, pode-­‐se observar o pátio da Casa do Sol, com seu calçamento de pedras e o poço no centro, onde Hilda Hilst viveu de 1965 até a sua morte. No conto "Fluxo" , o personagem Ruiska, que também é escritor, refere-­‐se ao "pátio de pedras perfeitas" e ao poço diversas vezes além da passagem do velório de Rukah, seu filho. Como neste trecho em que o editor cobra-­‐lhe o texto: Amanhã eu pego o primeiro capítulo, tá? Engulo o pirulito. Ele me olha e diz: você engoliu o pirulito. Eu digo: não faz mal, capitão, o uc é uma saída pra tudo. Está bem. Ele sai peidando no meu belíssimo pátio de pedras perfeitas e grita: amanhã hei? Sorrio. (HILST, 2003, p. 21.

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Fig. 10: Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/component/content/article.html?id=1387:prodigio-da-colombia


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Ou na passagem, quando Ruiska expulsa sua mulher Ruisis do seu escritório:

Pois é, dou três gritos e ponho minha mulher para fora do escritório. Ela está chorando agora, está chorando sentada no meu belíssimo pátio de pedras perfeitas. fecho a porta de aço do meu escritório. (HILST, 2003, p. 22)

A imagem do poço, de importante presença no conto, tem significante representatividade no universo grotesco, segundo Bakhtin, é preciso sublinhar que o "poço", o "ventre de vaca", e a "adega" são correspondentes da "grande boca aberta". Na topografia grotesca, a boca corresponde às entranhas, ao "útero"; ao lado da imagem erótica do "buraco", a entrada dos Infernos é representada com a boca bem aberta de Satã ("a goela do inferno"). O poço é a imagem folclórica corrente das entranhas da mãe. [...] Assim, já nessa passagem, a terra e seus orifícios tem também um sentido grotesco e corporal (BAKHTIN, 1999, p. 288).

Ou também em: "Aí esfrego as pálpebras, a minha mulher entra no escritório, digo tome cuidado com o poço, ela toma..." (HILST, 2003, p. 21) É duro, é duro ser constantemente invadido, nem com a porta de aço não adianta, eles se fazem, se materializam. Ora, ora, Ruiska, você abre uma clarabóia, abre um poço, e não quer que ninguém apareça? Vamos, você vai gostar de mim, eu sou um anão. Alguma coisa a ver com estrelas anãs branquinhas e negras? Não Ruiska, nada disso, apenas uma coincidência, não fique fazendo ilações, relações, libações. Hi, o anão é um letrado, meu Deus. Posso olhar para você? Claro, ele disse. HO HO HO GLU GLU GLU, eu não pude me conter, ele parece uma pera, não, um abacate, a cabeça eu quero dizer. De onde você vem, hein? Do intestino, da cloaca do universo, do cone sombrio da lua. E veio fazer o quê? Agora ele ri: gli, gli, gli. (HILST, 2003, p. 35)

Nessa passagem, a imagem do corpo é representada pela figura do anão, que também representa a consciência de Ruiska. Hoje, ativistas e instituições lutam pelos direitos democráticos dos corpos na sociedade, e defendem a igualdade de direitos aos obesos, aos deficientes físicos, aos cadeirantes, aos cegos, àqueles com Síndrome de Down e também aos portadores de nanismo, vulgarmente conhecidos como anões. A atriz e estilista Carina Casuscelli, 34 anos, não é anã, mas trabalha


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pela democracia dos corpos na moda com o teatro de inclusão15. Ela afirma que anões que trabalham com entretenimento só fazem pastelão, trabalhos de comédia. É raro vermos anões em uma novela, em filmes, capas de revista, como comunicadores ou falando sobre assuntos sérios, diz ela. Em 2017, a atriz Juliana Caldas, que é portadora de nanismo, interpretou uma personagem em uma novela da emissora Globo, onde viveu a personagem Estela. Em um fato inédito na TV brasileira, a personagem anã não era um personagem humorístico. Na trama, Estela é rejeitada pela mãe por ser anã, entretanto é uma menina forte, romântica, inteligente e que ama a família16. A associação da imagem do anão ao grotesco e ao burlesco, remonta ao século XV. Segundo Kayser, na literatura e na pintura, a figura do anão é associada ao cômico ou, mais precisamente, ao cru, baixo, burlesco, ou então ao mau gosto (KAYSER, 1986, p.14). A imagem do anão, relacionada ao corpo grotesco, aparece de forma inquietante e desconcertante nos quadros de Velásquez e Goya, assim como nos de Bosch e Brueghel, colecionados já no século XVI. Kayser atribui aos espanhóis e ingleses essa criação da imagem burlesca do anão. Em uma visita ao Museu do Prado pode-­‐se vivenciar essa imagem associada ao grotesco logo nas primeiras salas dedicadas a Velásquez:

com seus quadros de aleijados, monstros e anões da corte, que não obstante, tratavam o rei de "senhor primo". Ou entramos na sala onde está uma das obras-­‐ primas de Velásquez, intitulada Las Meninas: um grupo de graciosas senhorinhas do paço, com a infanta no meio, -­‐ um quadro de donaire e encanto juvenis, e pintado de tal forma que se acredita ouvir o roçagar da seda dos vestidos. A este encanto e graça acresce a dignidade e solenidade da majestade; pois num espelho, motivo tão caro a Velásquez, reflete-­‐se o par real, que não está sentado dentro, mas fora do ambiente que a tela apresenta. Na mesma sala, porém, chocante e enorme, em primeiro plano, à direita, e em contraste agudo com a graça, surge o assustador: duas senhorinhas da corte, aleijadas e disformes, e o contraste torna-­‐se tanto mais agudo, quanto não se trata do feio e inatural vistos como algo inteiramente distinto, mas como parte desta corte (KAYSER, 1986, p.14).

15

Disponível em: https://delas.ig.com.br/comportamento/2013-05-06/anoes-enfrentam-preconceitos-na-busca-por-empregotradicional.html> Acesso: 09/11/2018. 16 Disponível em: https://gshow.globo.com/novelas/o-outro-lado-do-paraiso/noticia/juliana-caldas-estreia-em-o-outro-lado-doparaiso.ghtml> Acesso: 09/01/2018.


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Segundo Kayser, o anão é considerado um elemento grotesco por excelência por representar um homem com características físicas diferentes das características dos padrões de beleza e normalidade estabelecidos. Segundo Chevalier e Geerbrant (CHEVALIER, GEERBRANT, 2016, p. 49), para os germanos os anões eram considerados gênios da terra e do solo, oriundos dos vermes que roíam o cadáver do gigante Ymir. Os anões estão ligados às grutas e às cavernas (coincidentemente ou não, a palavra "grotesco" vem de grotta que quer dizer gruta) onde escondem suas oficinas de ferreiros. Vindos do mundo subterrâneo ao qual permanecem ligados, simbolizam as forças obscuras que existem em nós e em geral têm aparências monstruosas. Por sua liberdade de linguagem e de gestos, junto aos reis, damas e grandes desse mundo, personificam as manifestações incontroladas do inconsciente. Por tudo isso, fixou-­‐se no inconsciente coletivo a imagem grotesca e burlesca dos corpos das pessoas portadoras de nanismo. No conto de Hilst, é exatamente assim que se comporta o anão: como a consciência grotesca de Ruiska. O anão de "Fluxo" é Rukah, o filho morto de Ruiska, que retorna do poço como verdadeira encarnação do grotesco. Hilda Hilst se vale dessa imagem grotesca estereotipada do anão e a usa de forma abjeta a fim de chocar o leitor. A escritora usa os próprios preconceitos como forma de choque no leitor e assim causar-­‐lhe certa sensação de desconforto e repulsa. Em outros momentos isto também acontece no livro, quando no conto "O Unicórnio", o personagem relaciona o homossexualismo à maldade e outros exemplos que apresentarei mais adiante. Perniola afirma que o abjeto leva o ser humano a sentir náuseas nos confrontos consigo mesmo. Aquilo que faz parte dele torna-­‐se uma coisa execrável e inconcebível. (PERNIOLA, 2010, p. 20) Segundo Kayser, o grotesco adquire outras proporções quando colocado ao lado do sublime. No texto da passagem de "Fluxo", a figura do anão é colocada ao lado de palavras eruditas e singelas e bem formuladas como estrelas branquinhas, ilações, relações e libações, mas de repente aparecem palavras como intestino, cloaca e sombrio. O escritor francês Victor Hugo (1802-­‐1885), em seu Prefácio de Cromwell


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(1827), destaca o emprego do grotesco junto ao sublime nas artes, como meio de contraste e potência de sensações: O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-­‐se necessidade de descansar de tudo, até do belo. Parece, ao contrário, que o grotesco é um tempo de parada, um tempo de comparação, um ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e mais excitada (HUGO, 2007, p. 33)

Em "Fluxo" os personagens apresentam-­‐se de forma angustiada diante da vida massacrante, em um mundo hostil abandonado por Deus, e entregues à própria sorte e ao sofrimento humano. Como o mundo revela sua segurança instável, o homem se vê exposto, sozinho e ameaçado pelo outro. Ruiska é a representação do homem na busca incessante pela essência da vida, em escrever sobre a natureza do ser, em oposição ao mundo externo e opressor. É o dentro e o fora. O de dentro que Ruiska diz precisar escrever sobre, e o de fora interpretado pelo editor "cornudo" que lhe "cospe na boca" e esbofeteia-­‐lhe a face e que espera que ele escreva sobre coisas de fácil digestão para um público limitado intelectualmente, porém bastante rentável comercialmente. Como na passagem: Meu filho, não seja assim, fale um pouco comigo, eu quero tanto que você fale comigo, você vê, meu filho, eu preciso escrever, eu só sei escrever as coisas de dentro, e essas coisas de dentro são complicadíssimas mas são... são as coisas de dentro. E aí vem o cornudo e diz: como é que é, meu velho, anda logo, não começa a fantasiar, não começa a escrever o de dentro das planícies que isso não interessa nada, você agora vai ficar riquinho e obedecer, não invente problemas. (HILST, 2003, p. 20)

O de dentro, o seu escritório perfeito, com seu poço e sua clarabóia e sua porta de aço, e o de fora, os manifestantes querendo lhe matar, a mulher do "cornudo" toda de amarelinho lixando as unhas no lindo sofá de couro preto de Ruiska. cruzou as perninhas peludas e agora palpita: todos nós queremos te ajudar. A vaca. Oh, pois não, peludinha, vocês tem me ajudado muito, isso é verdade, médicos etc. A vaca. É para teu bem que te pedimos novelinhas amenas, novelinhas para ler no bonde, no carro, no avião, no módulo, na cápsula. Agora ela tirou uma lima de ouro do bolso e começou a limar as unhas. Eu digo: pare de limar as unhas no meu lindo sofá de couro preto. Oh, Ruiska, porque você é assim? E continua. Eu digo: pare. Ela diz: você é antissocial, é burguesinho besta. Muito bem, abro a braguilha e começo a me masturbar. Ninguém se mexe. Sorriem obliquamente. Guardo a coisa. Levanto-­‐ me. Grito: bando de inúteis, corja porca, até que inventei uma bela sonoridade,


91 muito bem, corja porca, mas essa gente não entende nada, eu poderia ter dito creme de leite, caju, caguei, anu, são uns analfabetos. (HILST, 2003, p.31)

Nesta passagem, Hilst recorre ao grotesco e ao abjeto para expressar o sentimento de angústia vivido por Ruiska sob a pressão do mercado de trabalho, as falsas aparências que o ser humano está mergulhado, num mundo onde o ter é sem sombra de dúvida muito mais importante do que o ser. Ruiska preocupado em escrever coisas do "de dentro" e sendo pressionado em escrever sobre o de fora. A imagem dos pêlos nas pernas da mulher do editor causa certo erotismo à cena, as pernas cruzadas, limando as unhas. Porém, erotismo e repugnância fundem-­‐se aos sentimentos de Ruiska. O bestiário é usado como forma de agressividade: vaca, porca, corja porca. Os interditos sexuais também ilustram a transgressão ao sistema quando Ruiska abre a braguilha e masturba-­‐se em público. Porém, o estranhamento é causado quando ninguém se mexe diante da cena e "sorriem obliquamente". A imagem grotesca nessa passagem é claramente utilizada como forma de recusa à exploração do homem sobre o homem, a exploração do capital e a recusa ao controle de dominação intelectual e criativo por parte dos donos dos meios de produção, no caso aqui do editor. O abjeto aqui, a masturbação em público, não é mostrada como forma de obtenção de prazer solitário e sim como forma de agressão, de ejaculação como um cuspe agressivo. A masturbação em público surge como representação do obsceno, aquilo que deveria ficar fora da cena, e segundo Prazeres: "Relaciona-­‐se o obsceno com o abjecto que ameaça o sistema cultural e social, onde há dissolução da fronteira com o outro, do interior e exterior e do limite que separa o que é permitido." (PRAZERES, 2015, p. 14) No conto “Fluxo”, o grotesco e o belo se misturam. Como neste trecho: Velho louco Ruiska, diz aquele teu poema. Digo: Reses, ruídos vãos vertigem sobre as pastagens ai que dor, que dor tamanha de ter plumagens, de ser bifronte ai que reveses, que solidões


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ai minha garganta de antanho minha garganta de estanho garganta de barbatanas humana ai que triste garganta agônica. (HILST, 2003, p. 40)

No poema, Ruiska fala dos animais (rês: qualquer quadrúpede usado na alimentação humana), da dor de ter plumagens, referentes às suas asas, mas a imagem da garganta é a imagem grotesca como explica Bakhtin:

a boca escancarada tem também um papel importante na construção do corpo grotesco. Ela está, naturalmente, ligada ao "baixo" corporal topográfico: a boca é a porta aberta que conduz ao baixo, aos infernos corporais. A imagem da absorção e da deglutição, imagem ambivalente muito antiga da morte e da destruição, está ligada à grande boca escancarada. (BAKHTIN, 1999, p. 284)

A boca pode apresentar aspectos monstruosos, ainda que se apresente bela quando fechada, se mostra horrível em seu interior. Bataille afirma que a boca sofre de violenta discórdia ao reunir numa só cavidade um aspecto alto e outro baixo. Na medida em que a linguagem e o cuspe provém da mesma fonte, a boca concentra em si o princípio de inversão que precipita o incessante trabalho das contradições entre o ideal e o abjeto. (MORAES, 2002, p. 199)

Portanto, a imagem da boca escancarada, da garganta agônica, presente em "Fluxo", representa a imagem do corpo grotesco e do corpo abjeto. A imagem do corpo envelhecido, da decrepitude corporal também faz parte do universo abjeto grotesco. Os personagens Ruiska e sua mulher Ruisis se descrevem relatando o envelhecimento de cada um. Ruiska fala da mulher: ah, Ruisis vai envelhecendo, tem olhinhos estreitos, olhinhos caídos, tristes olhinhos de velha, meio remelentos, pobrezinha, e quando ela chora, sim, porque de vez em quando ela chora quando se lembra das caganeiras terníssimas de Rukah ... Quando ela chora, a lágrima não cai como cai na jovenzinha que chora, não, quando Ruisis chora, a lágrima fica boiando cheia de sal, de espessura dentro do olho, não nas bordas. ... Na borda fica matéria branco-­‐amarelada, no canto do olho também, as


93 pálpebras ficam vermelhinhas e enrugadas, é, Ruisis envelhece rapidissimamente. Rejuvenesço. (HILST, 2003, p. 43)

E ela descreve o corpo do marido: O corpo de Ruiska é como um cipó sugando uma árvore que não sei, o corpo de Ruiska é seco, estala, é seco-­‐marrom, ai Ruiska sem aurora, afogado nas paredonas do escritório, subjugado pelos fantasmas do de dentro, pobre Ruiska, que foi meu. ... Está velho sim, eu digo que está moço, está velho, uma fundura de olhos, um vazio de carnes. (HILST, 2003, p. 46)

Pode-­‐se notar que a imagem do corpo descrita por ambos revela corpos desgastados, envelhecidos, cansados. A imagem do corpo de Ruiska se fundindo com a planta cipó é a imagem do grotesco quanto ao hibridismo das formas se metamorfoseando. Hilst, persegue a questão da finitude do corpo e a velhice é um tema recorrente em toda a sua trajetória literária. A velhice como um prelúdio da morte. A escritora, quando se referia às pintas que apareceram em suas mãos, "Quando se está com aquelas manchas nas mãos, que aparecem com os anos e que eu chamo de as flores do sepulcro". (HILST, 2013, p. 119) No conto, a desesperança, a falta de Deus, o sentimento de abandono levam os homens ao desespero. A sensação insuportável de viver sem a presença de Deus gera a insegurança e realça a agressividade inata no homem. Hilst apresenta, na narrativa de "Fluxo", que viver é profundamente doloroso e ainda assim o homem tem que aceitar ser crucificado dia após dia, tendo suas vísceras arrancadas como forma de expressar a angústia e as incertezas diante da morte certa. Como o mito de Prometeu, e como se o mundo, lá fora do portão de aço, fosse para o homem o abutre que come o fígado. A agressividade humana que habita a face da terra faz com que a todas as intempéries de um viver vazio se perpetue no trágico destino de Prometeu. Ao final do conto, Ruiska e o anão se deparam com uma manifestação, e o anão adverte: "Agora fica quieto, há uma passeata, não vês? São os príncipes do mundo, a juventude, os que vão fazer." (HILST, 2003, p. 65) Os jovens abordam Ruiska de maneira violenta. Querem matá-­‐lo quando souberam que ele é um escritor:


94 Senhores, eis aqui, um nada, um merda nesse tempo de luta, enquanto nos despimos, enquanto caminhamos pelas ruas carregando no peito um grito enorme, enquanto nos matam a cada dia, um merda escreve sobre o que o angustia, e é por causa desses merdas , desses subjetivos do baralho, desses que lutam pela própria tripa, essa tripa de vidro delicada, que nós estamos aqui mas chega, chega, morte à palavra. (HILST, 2003, p. 66)

Em seguida, aparece a polícia, dispersando. Quando os soldados descobrem que Ruiska é um escritor logo o tratam e o classificam de subversivo, contra a ordem e o progresso. Também o espancam e o prendem. "Ai capitão, me larga, me ajuda anão, dos dois lados me matam, UIIIII." (HILST, 2003, p. 67) É a imagem do corpo sob dominação violenta. Fluxo-­‐floema foi escrito em um momento da história do Brasil em que passávamos por uma violenta ditadura militar, pessoas foram torturadas, mortas e desaparecidas. Hilst usa sua arte como forma de pensamento e busca a transformação do ser humano. Nos anos de 1966 a 1969 a escritora se dedicou a escrever todo o seu Teatro. São oito textos teatrais finalizados nesses quatro anos, que compõem a produção da escritora nas artes dramáticas. Hilda precisava de um contato mais direto com seu público. Numa época obscura da nossa vida política, a escritora buscava despertar esse público com suas palavras. Como explica Renata Pallottini: Seu trabalho [no teatro] visto em conjunto, dá-­‐nos o retrato de uma situação injusta, de um mundo feito de homens submetidos à força , de um mundo ameaçado por um poder absoluto e despersonalizante, poder que se defende fazendo emudecer as vozes dos artistas e dos poetas. Seus heróis rebeldes são esmagados pela força, seus jovens inquietos são calados. (PALLOTTINI, 2000, p.181)

O seu grito de revolta dramático, assim como sua poesia, transmutaram-­‐se e contaminaram sua prosa. Fluxo-­‐floema, como já mencionei, é uma obra híbrida , com corpo de texto escrito em prosa, em tom poético, e que se dirige sempre para uma plateia. Porém, esse grito de revolta de Hilda Hilst não tem um caráter panfletário. Tanto a direita quanto a esquerda são culpados: "me ajuda anão, dos dois lados me matam, UIIIII." (HILST, 2003, p. 67) Em uma entrevista, nas palavras da escritora:


95 e você vê quem é que resolve os problemas do mundo, entende? São os homens comuns, entende? É muito difícil você ver no governo, dentro dos poderes e tudo mais, intelectuais sérios que de repente resolvessem fazer uma série de disposições para modificar realmente a essência da estrutura. Eu não sou nem marxista, nem stalinista, nada, quer dizer, eu não sou... de todas as estruturas totalitárias eu tenho nojo, eu acho as esquerdas, as direitas a mesma esterqueira, você entende? (HILST, 2013, p. 83)

O corpo político que Hilda apresenta é o da transformação do eu. Em uma entrevista Hilda explica essa transformação: Uma transformação ética que leva ao político: a linguagem e a sintaxe passam a ser intrinsecamente atos políticos de não pactuação com o que nos circunda e que tenta nos enredar com seu embuste, a sua mentira ardilosamente sedutora e bem armada. (HILST, 2013, p. 83)

E prossegue: O que existe é que eu escrevo movida por uma compulsão ética, a meu ver a única importante para qualquer escritor: a de não pactuar. Para mim, não transigir com o que nos é imposto como mentira circundante é uma atitude visceral, da alma, do coração, da mente do escritor. O escritor é o que diz: "Não", "Não participo do engodo armado para ludibriar as pessoas". (Idem)

Ao final, o anão indaga Ruiska: Ruiska, o que é que procuras? Deus? E tu pensas que Ele se fará aqui, na tua página? No teu caminhar de louco? No silêncio da tua vaidade? Sim, no teu caminhar de louco, em ti todo fragmentado, abjeto. Ele se fará na vontade de quebrar o equilíbrio, de te estilhaçares, Ele se fará no riso dos outros, nesses que sorriem apiedados quando te descobrem {...} mostra tua anca, teus artelhos, tuas canelas peludas, teu peito encovado, teu riso frouxo, mostra tudo de ti [...] estás sozinho como um porco que vai ser sangrado, estás sozinho como um boi que vai ser comido, sabes como é o boi? Abrem a veia, deixam-­‐no sangrar, enquanto isso todos conversam, amam, tu és um boi, Ruiska, e te imaginas homem, pedes todos os dias que te deem as mãos, suplicas, procuras o Deus, Ele está aí mesmo no teu sangue, na tua natureza de porco, nesse chão escuro por onde escorrem os teus humores, no teu olho revirado, ai, acalma-­‐te, preserva-­‐te, estás em emoção, [...] o teu caminho terá um só destino, a morte, ela sim é grandiloquente, ela é rainha, chega a qualquer hora, oh, não te exaltes, recebe-­‐a, tens mais ossos que carnes? (HILST, 2003, p. 70-­‐71)


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"Fluxo" é um conto que trata da morte. Desde sua abertura, onde um monstro horrendo devora um menininho, passando por um funeral infantil, até o final. Todo o conto questiona a finitude dos corpos, a finitude da criatividade, dos relacionamentos e das instituições e termina afirmando que não adianta: não há salvação. Constata-­‐se que vivemos na angústia de uma morte certeira e iminente. E nesse nosso caminhar, somos obrigados muitas vezes a fazer coisas que não queremos, seja pelo dinheiro, seja por imposição ou censura. Mas é necessário, sempre que possível, trancar a porta de aço, abrir o poço e a claraboia para que possamos fazer o que realmente precisamos: as coisas de dentro.

2.4. "OSMO": DECIFRA MEU CORPO OU EU TE DEVORO "Osmo" é o título do segundo conto do livro Fluxo-­‐floema. São três personagens: Osmo, Mirtza e Kaysa. É o conto mais curto, direto e brutal do livro (apesar de que a brutalidade está presente em todos os contos). Hilda expõe toda a agressividade e desespero que o homem revela na busca do outro. Osmo, o personagem narrador, tenta, dentro da escuridão onde vive, não enlouquecer, e busca uma luz, uma explicação para si mesmo e sua relação com a mãe e com as mulheres. Osmo, narra em um tom autobiográfico, direcionado ao leitor, sua vida "bizarra". Não se impressionem. Não sou simplesmente asqueroso ou tolo, podem crer. Deve haver alguma coisa de admirável em tudo isso que sou. Bem, vou começar. É assim: eu gostaria realmente de lhes contar a minha estória, gostaria mesmo, é uma estória muito surpreendente, cheia de altos e baixos, uma estória curta, meio difícil de entender, surpreendente, isso é verdade, muito surpreendente, porque não é a cada dia que vocês vão encontrar alguém tão lúcido como eu, ah, não vão, e por isso é que eu acho que seria interessante lhes contar a minha estória. Estou pensando se devo ou não devo. O meu medo é que vocês não sejam dignos de ouvi-­‐la, por favor, não se zanguem, isso de dignidade é mesmo uma besteira, lógico que há gente que se importa com essas coisas de honra e dignidade, eu não, nunca me importei. (HILST, 2003, p. 75-­‐76)

No conto, o personagem Osmo busca um lugar no mundo onde caiba seu corpo. Seu corpo "limpo", dependente de uma higiene pessoal para se sentir homem,


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opondo-­‐se a "sujeira" do mundo em referência ao comportamento humano: sua agressividade, seus pecados e a descrença diante da vida. Para Leandra Alves dos Santos (2006, p.65), em "Osmo" Hilda Hilst mostra a pulsão de morte, a agressividade inata no ser humano como uma maneira de buscar a compreensão dos opostos para o entendimento do homem. Essa agressividade está adormecida no homem devido ao processo de repressão, podendo, a qualquer instante, se manifestar, de várias formas, em qualquer um de nós, e em qualquer situação, como ocorre em Osmo. (SANTOS, 2006, p. 65)

"Osmo" é a mais agressiva das cinco narrativas de Fluxo-­‐floema, onde o narrador apresenta um mundo escatológico e violento, utilizando-­‐se de palavras chulas e incoerentes, expressando, em um fluxo contínuo, as amarguras de viver. Em um ritmo vertiginoso Osmo vai se apresentando, e o que de início parecia um pouco de pudor e dignidade, vai se tornando abjeção e agressividade. Em sua narrativa Osmo parece provocar o leitor tentando intimidá-­‐lo e chocá-­‐lo com sua forma narrativa grotesca. Em uma carta escrita por Caio Fernando de Abreu, amigo íntimo de Hilda, o escritor comenta a leitura de livro Fluxo-­‐floema. No trecho, Abreu cita especificamente o conto "Osmo": Aí, quando a minha preocupação com o excesso de humor estava no auge, começaram a aparecer no texto os "elementos perturbadores": a estória do Cruzeiro do Sul (ninguém vai desconfiar jamais que você viu MESMO aquilo), o "grande ato", a lâmina, os pontos rosados. E imediatamente o texto vai da dimensão puramente humorística para ganhar em angústia, em desespero. A coisa cresce. O tom rosado do início passa para um violáceo cada vez mais denso, até explodir no negror completo, no macabro [...]. (ABREU, 1999, p. 21)

Osmo apresenta-­‐se como um narcisista que, ao descrever o seu corpo, não utiliza nenhum elemento escatológico ou grotesco. Ao contrário, usa o belo para se descrever: Abro o chuveiro. Está frio ainda. Estou nu, com o sabonete na mão, e espero. Agora está quente. Ótimo. [...] Começo lavando bem as axilas, agora esfrego o peito, o meu peito é liso e macio, na verdade eu sou um homem bem constituído, tenho um metro


98 e noventa, tenho ótimos dentes, um pouco amarelados, mas ótimos, quase não tenho barriga, um pouco, como todo mundo da minha idade, eu ainda não lhes disse a minha idade, acho que eu existo desde sempre, mas afinal, o que importa? Agora as coxas. As coxas são excelentes porque eu fazia todos os dias cem metros na butterfly, vocês imaginam como isso me deixou com um peito deste tamanho. Ah, sim, eu estava falando das coxas, pois é, são excelentes. Há mulheres que dizem que as minhas coxas são fortes, sei lá, uma porção de besteiras, ou melhor, não são besteiras o que elas dizem, as minhas coxas são excelentes realmente, mas acho que vocês não estão interessados, ou estão? Se não estão, paro de contar, mas se estão, posso acrescentar que além de fortes, têm uma penugem aloirada... (HILST, 2003, p. 78-­‐79)

O que Osmo deixa transparecer neste relato do seu corpo é o narcisismo, uma valorização do próprio corpo como algo perfeito e sublime. O problema de Osmo começa com o desencanto com o amor materno, quando sua mãe saía para dançar e o deixava abandonado em casa. Os sentimentos agressivos de Osmo são fruto do estilo de vida desregrado da mãe. Bem, vou explicar: a minha mãezinha não me aguentava porque ela era louca para dançar, dançar, dançar, isso mesmo, eu espero que vocês saibam o que é dançar, antes era ficar andando pelo salão, a dois, é assim que eu ainda danço, agora é ficar sozinho se rebolando, tanto faz, a gente sempre está sozinho ainda que esteja à dois, a três, dançando ou, enfim, a gente sempre está sozinho. A minha mãezinha dançava a dois. Mas não é exatamente isso que eu quero contar, aliás nem sei se é bom-­‐tom ficar falando assim da mãezinha da gente mas vocês hão de convir que eu não falei nada de ofensivo, apenas disse que ela gostava de dançar. Isso parece ser o gosto de quase todas as mulheres isso de dançar. Pelo menos as que eu conheci. Todas gostavam muito de dançar. Ainda gostam. Não sei porquê. (HILST, 2003, p. 76)

O fato de Kaysa ter-­‐lhe pedido para levá-­‐la para dançar o faz se lembrar de sua relação com a mãe, quando ela saia para dançar e o deixava abandonado em casa, e isso é o que faz despertar seu lado mais cruel e perverso. A solidão nos relacionamentos é muitas vezes representada pela dança, em que mesmo estando a dois se está só. O que Osmo sente é que ele foi abandonado pela mãe, trocado por outros homens. O personagem dá cusparadas nos cantos da casa como se quisesse expelir o que o aflige na memória que tem da infância: a mãe preferir dançar a ficar com o filho. Osmo é um solitário colocado em situação angustiante e absurda. Em fluxo aflitivo, que não permite a pausa e o silêncio, o mundo surge estranho, incoerente, desfocado. As atitudes são grosseiras, apresentando desilusão e amargura. O protagonista-­‐


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narrador aparece como um louco a desafiar o sentido da vida e as verdades estabelecidas. Por isso Osmo odeia as mulheres que lembram sua mãe. É o complexo de Édipo às avessas. Pode-­‐se notar o desprezo do personagem pelas questões femininas das mulheres que o circundam. Como na passagem: as mulheres inventam sempre esse negócio de dançar e o convite vem invariavelmente quando você está cansado, pelo menos comigo acontece assim, então você está cansado e resolve pegar a sua metafísica e de repente ela telefona, angustiada, absurda: faz um favor pra mim, tá? O quê? Vamos dançar. De início, dá aquele mal estar medonho, lógico, por que eu estou deitado na minha cama, estou tomando nota das coisas mais importantes. (HILST, 2003, p. 77)

Para Osmo, as mulheres são inferiores à sua metafísica egocêntrica. Em seu egocentrismo o personagem relaciona sua maldade com a maldade de Deus. Quando Osmo está lendo um livro e sublinha o trecho: "Deus tira o bem, do mal que acontece. Por isso, o universo é mais belo contendo o mal como um canto." (HILST, 2003, p. 78)

Ou seja, mais uma vez Hilst nos coloca nas mãos de um Deus cruel, que só pode mostrar o bem diante de um mal acontecido, um Deus bem humano. Um Deus que se mostra bondoso e misericordioso diante de uma desgraça criada por ele mesmo. Como um tirano benevolente. Em certa passagem, Osmo narra um acesso de fúria que teve pelo fato de sua mãe não defendê-­‐lo: Uma vez tive um acesso de fúria quando a minha mãezinha que adorava dançar me disse que alguém lhe dissera o seguinte ao meu respeito: o seu filho, dona, tem alguma coisa que não vai bem. Aí quebrei todos os cristais, dei mil cusparadas nos tapetes que também eram persas, as mulheres tem manias dos tapetes persas, depois o que elas fazem mesmo em cima desses tapetes é foder, não tenho nada com isso, mas além das cusparadas, mijei nos tapetes persas da minha mãezinha, e disse: espera que eu ainda vou dar uma cagadinha, e depois, você, mãe, manda de presente o tapete pro cara que disse esse negócio de mim, aliás, você, mãe, você deveria ter feito na hora o que eu estou fazendo agora, mas eu sei mãe, você não tem presença de espírito, não é? E como você gosta muito do seu filhinho, do seu filhinho que fica sozinho porque não tem com quem ficar quando você vai dançar, então, como você gosta muito de mim, sua vaca, você não respondeu nada, não é? E também fez aquelas caras de mãe sofrida, e abaixou a cabeça e esticou a boca ameaçando choro, não é? E aí o homem convidou você para dançar, não foi mãe? (HILST, 2003, p. 89)


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Nesta passagem, vê-­‐se que a escritora se valeu dos contrastes para ressaltar o grotesco. Pode-­‐se notar a aproximação de cristais e tapetes persas a mijo, escarro e fezes. Tais elementos orgânicos de excreção são característicos da arte abjeta. Outro elemento do grotesco nesta passagem é quando Osmo xinga sua mãe de vaca. Tal expressão, quando referenciada à própria mãe, causa certo asco no leitor pelo fato de certos tratamentos serem inaceitáveis no convívio social estabelecido. Outro fator que chama à atenção é a ambiguidade com relação à palavra dançar. Aqui pode-­‐se entender como uma metáfora do sexo, a dança do acasalamento, a ciranda do sexo. Interessante notar também que quando as mulheres de Osmo o chamam para dançar, o desfecho é sempre o sexo porém ele as mata, ou seja, a palavra dançar também pode ser lida da maneira figurada da gíria dançar, que quer dizer: se dar mal. Uma figura de características grotescas, presente na tragédia de Édipo Rei, é a figura da esfinge. Conta-­‐se que havia uma esfinge no deserto que fazia uma charada para todos aqueles que tentassem atravessá-­‐lo. Todos que falharam foram devorados. Apenas Édipo conseguiu desvendar a charada. Na Grécia existiam leoas aladas com cabeças de mulher, enigmáticas e cruéis, espécie de monstros temíveis, símbolo da feminilidade pervertida. Seria o símbolo da devassidão e da dominação perversa, e a esfinge grega designava a vaidade tirânica e destrutiva (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p.389). Segundo Kayser, "A mistura do animalesco e do humano, o monstruoso, é a característica mais importante do grotesco, e já transparece no primeiro documento de língua alemã.” (KAYSER, 1986, p. 24). A esfinge é uma parte do nosso lado bestial representada pela combinação de diversos animais e do homem. A esfinge é o ego de Osmo. O deserto onde habita a esfinge representa a individualidade, o egoísmo e a solidão. É o mundo onde vivemos, hostil, e aterrorizante, e seco onde a água não chega. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p.389) Enquanto Osmo está afundado em sua individualidade, seu ego se sobressai e o questiona. Dessa forma, vê-­‐se um homem em processo de regressão, nutrindo sua própria bestialidade.


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A imagem do corpo das mulheres de Osmo, Mirtza e Kaysa, é descrita de forma pejorativa. Osmo fala da limpeza do corpo de Mirtza: "Coitada da Mirtza, ela não era exatamente um peixe de tão limpa, não era, enfim ela já está morta e quando as pessoas estão mortas não convém ficar falando muito sobre elas." (HILST, 2003, p. 81) Ou no trecho: "A Mirtza era estranha, além de ser um pouco sujinha, a Mirtza era uma ladra. Mirtza roubava e vendia moldes de alta costura." (HILST, 2003, p. 83) Podemos notar a descrição do corpo de Mirtza no trecho: E numa dessas viagens encontrei a Mirtza. Olhei para Mirtza, a Mirtza era branca, muito branca, aliás, ela parecia essas gringonas de hospital, as pernas grossas, o cabelo crespo aloirado e toda branca. (HILST, 2003, p. 91)

A presença de elementos da estética do abjeto se evidencia na fala de Osmo, quando ele narra sua relação sexual com Mirtza. Os odores do suor de Mirtza, a pele branca e gorda sendo lambida por Osmo e comparada ao gosto azedo da coalhada, o cheiro da terra, fluídos corporais, são elementos do abjeto que, postos ao lado de uma narração de uma relação sexual, podem causar estranhamento ao leitor desafeito: E quando a festa acabou, já muito tarde, a Mirtza quis passear no bosque de bétulas. O bosque de bétulas. Esperem um pouco, era muito tarde. Mas quero dizer é que já estava amanhecendo. O cheiro ingênuo daquele chão verde misturado à terra e o cheiro branco e acre da nuca de Mirtza. Beijei os braços gordos e minha boca deslizava sobre a pele de Mirtza, os meu olhos olhavam os poros delicados, olhavam sem ver, olhavam a totalidade daquela pele, e passei a língua, e era como se eu passasse a língua sobre a superfície cremosa da coalhada, e ela ria, a garganta cor-­‐ de-­‐rosa, os dentes minúsculos, as axilas suadas. Deitei-­‐a. Deitei-­‐a, e fiquei de pé olhando-­‐a. Eu não sabia o que olhava, nem por que olhava, sim evidente, olhava uma mulher deitada na terra, uma mulher que se chamava Mirtza, que tinha a pele muito branca, as mãozinhas gordas que muitas vezes seguravam meu pênis com um gesto ovalado, como se meu pênis fosse um novelo de lã. (HILST, 2003, p. 94)

No trecho, identifico elementos picturais. A imagem do corpo de Mirtza deitada na terra e a descrição das partes do corpo se dão de forma pictural, ou seja, de forma plástica, com elementos da pintura ou de um filme, como cores e cheiros. Na intermidialidade é o que se denomina iconotexto. Como explica Márcia Arbex: "é a presença de uma imagem visual convocada pelo texto e não somente a utilização de


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uma imagem visível para ilustração ou como ponto de partida criativo." (ARBEX, 2013, p.73) E esse iconotexto, segundo Arbex, é evidenciado pelos marcadores de picturalidade, que é o que contribui para a impregnação pictural no texto. Como o amanhacer, o chão verde misturado ao ocre da terra, a pele branca, os braços gordos, a garganta cor-­‐de-­‐rosa, e a cena da mulher deitada na terra vista de cima, da visão de Osmo de pé. Osmo está de pé, Mirtza deitada na terra, em uma floresta de bétulas, o dia amanhecendo. Osmo então, começa a pensar no ex marido de Mirtza: "E agora penso: que fim será que levou o ex marido de Mirtza, um enfermeiro inglês paralítico que morava na Austrália?" (HILST, 2003, p. 95) A imagem do ex marido em uma cadeira de rodas excitando Osmo, é mais uma das estratégias da escritora em tratar da temática do diferente de forma abjeta afim de causar repulsa. Pois sabe-­‐se que a sexualidade do deficiente é tratada como um tabu na sociedade hipócrita e excludente: "Por que me vem uma vontade enorme de meter quando penso nessas coordenadas de Mirtza?" (HILST, 2003, p. 95) E num delírio, Osmo imagina imagens grotescas da fusão do corpo de Mirtza e do seu ex marido paralítico: Ele deve estar numa cadeira de rodas. Ele deve ter as pernas brancas. E daí? Daí, Mirtza e o marido se fundem, umas pernas brancas, uma imobilidade masculino-­‐ feminina à espera. Mirtza diz: bem, eu vou me levantar. Comprimo o meu pé direito contra o seu tornozelo, ela deita-­‐se novamente e sorri: vem, Osmo. Espere. (HILST, 2003, p. 95)

Nas relações de Osmo com as mulheres ele se sente superior a elas. E as descrições das mulheres acontecem sempre de forma pejorativa. Kaysa, a segunda personagem do conto "Osmo", também é representada como uma mulher vulgar, que se preocupava com tapetes, pratarias e danceterias. A sua sensualidade irritava Osmo: "A Kaysa deve estar a essa hora no portão, ela é demais impaciente, e deve estar toda de preto, com aqueles decotes que me chateiam um pouco." (HILST, 2003, p. 84) E prossegue: "Pronto ela está lá. Eu não disse? O decote é imenso, mas está


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bem, está bem." (HILST, 2003, p. 86) e: "sou um homem muito lúcido, mas a presença e a fala de Kaysa me incomodam." (HILST, 2003, p. 87) A presença da temática do ânus e da homossexualidade também é marcante no conto. Osmo discorre sobre o ânus, a princípio de forma recatada e formal. Em seguida se torna abjeto e vulgar. Bem, não é por pudores estilísticos que não falo o... Sim, talvez seja por um certo pudor, porque agora nas reticências eu deveria ter escrito cu e não escrevi, quem sabe deveria ter escrito ânus, mas ânus dá sempre a ideia de que a gente tem alguma coisa nele, não sei explicar muito bem, mas é sempre o médico que pergunta: o senhor tem fístulas no ânus? (HILST, 2003, p. 82)

Em seguida: Eu tenho o ânus muito estreito e cada vez que é preciso ir ao banheiro, é pudor sim, mas logo mais perderei, vocês vão ver, cada vez que é preciso, como eu ia dizendo, eu não consigo. Não consigo ir ao banheiro, e isso é uma chatice e dá fístulas no ânus. Então fui ao médico e ele me enfiou o dedo lá dentro, o dedo dele, lógico, não sei qual dedo, acho que não importa, mas na hora de sair, quero dizer, na hora que ele deveria tirar o dedo, ele não conseguiu porque eu sou assim, muito tenso, e apertei e não conseguia relaxar. Foi muito desagradável e o médico achou que era preciso fazer uma ligeira intervenção cirúrgica, não naquela hora, eu já tinha conseguido relaxar, mas posteriormente. Achei besteira e não fiz coisa alguma porque pensei: antes um ânus apertado do que ficar se cagando por aí. Viram como consegui? (HILST, 2003, p. 82)

A temática anal é presente no pensamento batailleano, onde o filósofo francês relaciona tal órgão a nossa animalidade. Foi quando o ser humano adquiriu sua verticalidade e assim transformou-­‐se de quadrúpede para bípede, o olfato foi desprezado e a visão privilegiada, o anal reprimido e o genital, enfatizado. Na arte contemporânea, a temática anal aparece, como na obra de Hilst, na forma traumática de choque no leitor. Objetivando assim, uma reversão simbólica da repressão do anal e do olfativo. Essa forma de apresentação do corpo abjeto tem como objetivo também uma "reversão simbólica da visualidade fálica do corpo ereto como modelo fundamental da pintura e da escultura tradicionais -­‐ a figura humana como sujeito e estrutura de representação na arte ocidental." (FOSTER, 2014, p.152)


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Os movimentos LGBT pela igualdade de direitos de gênero ainda encontram muito preconceito, e muito pouco se conseguiu mudar culturalmente quanto à aceitação da diversidade sexual. A provocação realizada através da exposição do corpo erótico anal de forma abjeta, na arte e na literatura, a partir do século XX, funciona como um estímulo traumático para atingir o expectador/leitor para as questões normativas das sexualidades. Hilda Hilst aborda o tema da homossexualidade, tanto no conto "Osmo" como em todas as outras passagens do livro, de forma irônica e grotesca, prática recorrente da arte contemporânea. Como explica Hal Foster: Na arte contemporânea, a provocação erótico-­‐anal costuma ser autoconsciente e até paródica de si mesma: não só põe à prova a autoridade repressora do anal da cultura tradicional museológica, mas também ridiculariza o narcisismo erótico anal do artista rebelde de vanguarda. (FOSTER, 2014, p. 153)

Osmo, ao descrever o seu empregado, se vale de palavras e chavões homofóbicos. Trata de uma diferença de classes onde o empregado mora na casa do patrão em um compartimento isolado da casa. Em seguida o personagem-­‐narrador levanta a questão do ânus, de forma chula, apenas como um órgão excretor. Tal posição, é muitas vezes usadas por argumentos homofóbicos: "cu é para sair e não para entrar." Mas, Osmo admite já ter tentado praticar sexo anal, como mulher, ele frisa, para ver como era. Insinuando assim, sua possível homossexualidade: O José é meu empregado. Ótimo aliás. A única coisa é que o José é pederasta, já sei vocês estão dizendo: iii... que falta de imaginação, um empregado pederasta. Pois é, mas eu sou muito honesto quando resolvo contar no duro uma coisa, e a verdade é essa mesmo: o José é um pederasta. Discreto. Eu sei que ele recebe meninos no quarto mas finjo que não sei, afinal não tenho nada com isso, não sou eu que vou ser enrabado. Nunca mais vou falar do José. Aliás posso ter todos os defeitos mas esse negócio de cu nunca me entusiasmou. Todo mundo que fala de cu vira santo. Uma vez tentei esse negócio. Numa mulher, assim só pra ver, afinal falavam tanto. Mas não acertei. De jeito nenhum. Não sei se era porque a mulher rebolava muito. Mas o fato é que não acertei. Acho que foi melhor. Não me explico bem, foi melhor não ter acertado. Afinal isso de cu é para sair e não para entrar. (HILST, 2003, p. 85)

Hilst amplifica sua abjeção na fala de Osmo, quando trata da homossexualidade infantil. Como o fez também ao relatar as aventuras sexuais de uma menininha de oito anos em O caderno rosa de Lori Lamby.


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Esse mesmo médico que queria me fazer uma intervenção me contou uma estória horrível. Não sei bem a propósito de quê. Ah , naturalmente. Ele me contou que um menininho foi consultá-­‐lo. Escondido dos pais. Consulta aqui, consulta lá, e daí ele viu que o ânus do menininho estava em estado lastimável. Era urgente operá-­‐lo e tudo o mais. Deu uma grande confusão mas depois de seis meses o menininho estava novo, quero dizer, com ânus de platina, tudo direitinho, e ele, o médico disse para o menininho: meu filho, nunca mais tenha relações anais. Nem mais uma vezinha doutor? Os menininhos dessa geração tem a mania de cu. Ninguém explica. (HILST, 2003, p. 85)

Osmo, de forma abjeta e preconceituosa, tenta teorizar sobre a homossexualidade. No trecho a seguir, pode-­‐se notar a relação da fala de Osmo com a explicação de Foster quanto a questão da ironia ao abordar de forma ridícula o erotismo anal. Dizem que é a busca do pai, mas vão procurar o pai tão lá no fundo? Não sei, dizem que é a falta de amor e mil estórias mas ninguém ainda me explicou direito por que esse negócio de dar o cu é tão moderno. Dizem também que todo sujeito sensível e delicado é pederasta porque a sociedade atual é toda de agressão etc., e o cara acaba dando o cu por delicadeza e carência de afeto. (HILST, 2003, p. 86)

Imerso em seu ego, Osmo comete as mais cruéis barbaridades contra as mulheres até cometer o feminicídio, "o grande ato" (HILST, 2003, p. 96). O feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. As suas motivações mais usuais são o ódio, o desprezo. É a última instância de controle da mulher pelo homem, por meio da violência sexual associada ao assassinato. Para Lourdes Bandeira, socióloga, pesquisadora e professora da Universidade de Brasília: O feminicídio representa a última etapa de um contínuo de violência que leva à morte. Seu caráter violento evidencia a predominância de relações de gênero hierárquicas e desiguais. Precedido por outros eventos, tais como abusos físicos e psicológicos, que tentam submeter as mulheres a uma lógica de dominação masculina e a um padrão cultural de subordinação que foi aprendido ao longo de gerações.17

Em Osmo, há claramente esse jogo de poder, a animalidade do mais forte dominando o mais fraco. Homem e mulher, mãe e filho, marido e esposa, são jeitos 17

Disponível em: < http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/violencias/feminicidio/> Acesso em: 29/06/2017.


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de ser característicos do ser humano, papéis controlados na sociedade pelo dominador, o mais forte, e pelo dominado, o mais fraco. Dois lados, dois opostos. Osmo narra como cometeu o "grande ato", que é como ele chama o assassinato. Pode-­‐se notar a frieza de um psicopata ao relatar como assassinou Mirtza e Kaysa, cada uma em momentos diferentes, após ambas o convidarem para dançar. Aí me deitei sobre ela, encostei as minhas coxas naquelas coxas de Mirtza e do meu enfermeiro, e meti meu pênis, meu pênis reto como o tronco da bétula, e não meti simplesmente, meti com furor, com nojo também, e assim que terminei, cometi o grande ato. E depois do grande ato peguei o corpo de Mirtza, levantei-­‐o acima dos meus ombros e o sol bateu nas coxas de Mirtza, suave, um sol suave, um sol perfeito para depois do grande ato. Agora não vou dizer tudo o que fiz. Ou digo? Gosto mais de dizer o que penso porque o que a gente faz são atos comuns, colocar o corpo de Mirtza apoiado num tronco de bétula, arrumar a calça, a minha calça, arrumar a minha camisa azul-­‐clarinha (ou clarinho, ainda não sei), andar vagarosamente, olhar para todos os lados e não ver ninguém, agora uns passos mais apressados, um pequeno canto me comoveu, um canto de pássaro me comoveu, isto é, me fez respirar à larga, estiquei a boca, um pouco assim quando a gente faz quando quer mostrar os dentes quando alguém pergunta se são brancos ou amarelos, os meus são amarelos, eu já lhes disse, não sei porque estiquei a boca assim, e depois sorri, e depois assoviei. (HILST, 2003, p. 96)

Para narrar a morte de Mirtza, Hilda Hilst utiliza do incompatível, dos opostos, do contraste entre o canto dos pássaros e o corpo de Mirtza estrangulado, encostado em uma árvore. Segundo Victor Hugo, "a poesia verdadeira, a poesia completa está na harmonia dos contrários" (HUGO, 2007, p. 11). Como o sol batendo nas coxas de Mirtza, um sol suave e perfeito, um canto de pássaro, um assovio em oposição ao pênis reto como um tronco de bétula, a "metida" com furor e nojo e o assassinato. Osmo abandona o corpo de Mirtza encostado em um tronco na floresta de bétulas. Não sente nada, só prazer, nenhum remorso. A fim de causar mais impacto no leitor, mais uma vez Hilst se vale da ironia do personagem, quando Osmo fala do cheiro do corpo de Mirtza que não era muito chegada a tomar banho: Eu poderia ter jogado o corpo de Mirtza no lago, mas não, o corpo de Mirtza não era amigo de muita água, aquele corpo tinha seu próprio cheiro, um cheiro singular e não era lícito despojá-­‐lo daquele cheiro-­‐perfume-­‐singular, cada corpo tem o seu lugar, cada corpo pertence a um lugar, o meu ainda não sei. (HILST, 2003, p. 97)


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Para cometer o "grande ato" com Kaysa, Osmo narra imagens que vêm à sua mente como numa edição de um filme. Osmo descreve imagens que se confundem entre as coisas de Kaysa e as coisas de sua mãe: Kaysa mulher, mulher que tem tapetes persas, e agora dou duas cusparadas e pergunto: você dançava e fornicava com o Hanzi nos teus tapetes persas, hein, Kaysa? Ha, ha, ha, Osmo, como você é engraçado. Sim, eu sou muito engraçado, eu sou bizarro. Pare. Vem, vem fornicar na terra. O meu peito parece um fole, ela está encantada, ela também parece um fole, um fole encantado, resfolegando debaixo do meu corpo, Kaysa, tapetes persas vasos chineses aquarelas russas leninismo-­‐ marxismo (oh, que estimulante!) Hanzi guardião de riquezas, oh, como as mulheres têm coordenadas absurdas, como tudo é absurdo, e como tudo que é absurdo me dá vontade de meter [...] E agora os meus polegares de aço junto ao seu pescoço, o pescoço delicioso de Kaysa, ah, que ternura rouca explode dessa garganta, que ternura, que ternura. A lua sobre a garganta de Kaysa, o corpo eu vou deixar aqui sob os ramos, que lua, que lua. (HILST, 2003, p. 104)

A imagem do corpo em "Osmo" é a imagem da violência, do assassinato. Tem-­‐se no conto, a imagem do corpo fragmentado quando a autora concentra-­‐se em partes do corpo para descrever um todo. A garganta, as axilas, as coxas, os polegares de aço etc. Aparece também a imagem do cadáver, como uma boneca inanimada. Segundo Bataille, o interdito do assassinato é um aspecto particular do interdito global da violência. Para o filósofo, o interdito, ou seja, o tabu, se opõe ao desejo de tocar os mortos. Em presença do cadáver, o horror é imediato, inevitável e é, por assim dizer, impossível resistir a ele. [...] a violência é sempre causa da morte: ela pôde atuar por efeito mágico, mas há sempre um responsável, há sempre assassinato. (BATAILLE, 2013, p. 71)

Osmo rompeu com este interdito pois a morte e o assassinato não causam a ele nenhuma repulsa ou horror. Osmo é um doente, um psicopata. Mirtza abandonada encostada no tronco da bétula, Kaysa abandonada sob os ramos. O sepultamento do cadáver, segundo Bataille, desde os tempos mais remotos da civilização, é prática para com aqueles que, quando vivos, eram nossos companheiros e, vítima da violência, morto, devemos preservá-­‐lo de outras violências. "A inumação significou sem dúvida, desde os primeiros tempos, por parte daqueles que sepultaram, o


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desejo que tinham de preservar os mortos da voracidade dos animais." (BATAILLE, 2013, p. 70) Não Osmo. Ele despreza, descarta os corpos e não sente nada, ou melhor, sente prazer. Após abandonar o corpo de Kaysa, Osmo parte: Ligo a chave do meu carro depressa, abro todos os vidros e com esse vento batendo na minha cara eu estou pensando: talvez eu deva contar a história da morte da minha mãezinha, aquele fogo na casa, aquele fogo na cara e tudo o mais, não, ainda não vou falar sobre o fogo, foi bonito sim, depois eu falo mais detalhadamente, essa história sim é que daria um best-­‐seller, todas as estórias de mãe dão best-­‐sellers, e querem saber? Amanhã, se ninguém me chamar para dançar, eu vou começar a escrevê-­‐la. (HILST, 2003, p. 105)

Segundo Kristeva, todo crime, por assinalar a fragilidade da lei, é abjeto, mas o crime premeditado, o assassinato acobertado, a vingança hipócrita, é mais ainda porque redobra e aumenta essa exibição da fragilidade legal. "Osmo", como "Fluxo" é um conto que trata da morte, da morte abjeta. Porém, não de uma morte natural ou de uma morte vinda pelo tempo ou pela doença, e que gera a decreptude corporal. A morte em "Osmo" é o assassinato. É a morte premeditada e covarde sem direito a defesa, por motivo fútil ou por puro prazer.

2.5. "LÁZARO": O CORPO REENCARNADO Em "Lázaro", Hilda Hilst subverte a indagação acerca da morte e do sagrado a partir da apropriação de símbolos da tradição cristã, e através do rebaixamento do divino ao expor uma visão cética e desolada dos homens diante do mundo e da vida. Os três temas centrais hilstianos também se fazem presentes: o Amor, de Lázaro por Jesus; Deus, onipresente mas ausente, deixando Lázaro na dúvida de sua existência; e a morte, do próprio Lázaro que é ressuscitado, e assim gerando dúvida sobre ter sido mesmo uma dádiva ter voltado do mundo dos mortos e viver na angústia de ser obrigado a existir em um mundo violento e abandonado por Deus. Hilst faz uma paródia da fábula bíblica disposta no Evangelho de São João, reapresentando, à sua maneira, a miraculosa ressurreição de Lázaro e o pranto das


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irmãs Marta e Maria na cidade de Betânia. "Estava, porém, enfermo um certo Lázaro, de Betânia, aldeia de Maria e de sua irmã Marta." (JOÃO, 10, cap.11, p. 208) Lázaro se encontra deitado em sua cama: "De repente vejo Marta. Ela põe as duas mãos sobre a boca. Ainda vejo a cabeça de Maria na beira da cama. A cabeça cheia de cabelos escuros na beira da cama. Foi a última coisa que eu vi: a cabeça de Maria." (HILST, 2003, p. 112) A visão da cabeça de Maria apresenta a construção de um corpo fragmentado. Como a visão que Lázaro tem do próprio corpo, configura-­‐se fragmentada como uma imagem cubista, ou seja, o objeto pode ser visto por ângulos diferentes: "Vejo de cima, dos lados, de frente, vejo de um jeito que nunca vi. Jeito de ver de um morto." (HILST, 2003, p. 113) Hilst reelabora a escritura sagrada, dando voz e corpo ao Lázaro morto, quando encerrado na gruta. O medo de não ver mais o sol, não mais sentir a água e o vento no rosto, não pisar na terra apavora o narrador-­‐personagem. A narrativa se apresenta sob um ponto de vista bastante peculiar: o do próprio ressuscitado. Logo nas primeiras linhas nota-­‐se que Lázaro está morto e que sua narrativa é construída a partir de um estado de pós-­‐morte, uma visão de fora do corpo. "O meu corpo enfaixado" (HILST, 2003, p. 111) são as primeiras palavras do personagem, que prossegue relatando como sua irmã, Marta, cuidou do seu corpo: Primeiro ela tirou minha roupa. E tirar a roupa de um morto é colocar outra. Depois lavou-­‐me. Depois escolheu as essências. São todas muito dispendiosas, mas eu fui encharcado de essências. Não, ela não tirou as vísceras, não pensem nisso, não é isso que eu quero dizer. Ela embebeu as faixas nas essências. É isso que eu quero dizer. E depois ela enfaixou-­‐me, os gestos amplos, pausados, indubitáveis, indubitáveis sim, o gesto de quem está fiando. Fiando uma roca sem tempo. Observei-­‐a desde o início... esperem um pouco, como é que se pode explicar esse tipo de coisa... estou pensando... acho que é melhor dizer assim: observei-­‐a, logo depois de passar por essa coisa que chamam de morte (HILST, 2003, p. 111-­‐112).

A primeira imagem do corpo que aparece no conto é a imagem do cadáver. Segundo Umberto Eco (2014), na literatura e na arte o tema do triunfo da morte aparecem no século XII com os Vers de la mort, de Hélinand de Froidmont, "onde estão as belas mulheres, as esplêndidas cidades de outrora? Tudo desapareceu". (ECO, 2014, p. 62)


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Acompanho o meu corpo, atravesso as ruas humildes da minha aldeia, as mulheres falam em segredo à minha passagem: é Lázaro, amigo de Jesus. E morreu. É Lázaro, que adoeceu de repente, ninguém sabe porquê. Eu sei porquê. Eu sei agora que depois de ter visto o Homem, o meu sangue e minha carne não resistiram. (HILST, 2003, p. 115)

No trecho, Lázaro narra a procissão de seu funeral. O cortejo fúnebre, em algumas culturas, é tido como a maior homenagem realizada para um ente querido. A população da sua aldeia comenta enquanto seu corpo segue carregado rumo à sepultura: Chegamos. Tenho medo. Um pequeno vestíbulo. Depois, a rocha. Dentro da rocha, um lugar para o meu corpo. Olho pela última vez a claridade da minha aldeia. (HILST, 2003, p. 115)

E prossegue: "O meu corpo foi depositado no seu lugar." (HILST, 2003, p. 116) Os meus amigos recuam. Olham-­‐me em silêncio. Inútil tentar qualquer gesto. Não me veem. Grito três vezes: Marta! Marta! Marta! não me ouve. Rolam a pedra. Fecham a entrada. Tudo está terminado. É verdade. Tudo está terminado. (HILST, 2003, p. 116)

Aqui temos a imagem do corpo sepultado. O lugar do corpo morto. A morte escrita na literatura. Com base nesse modelo nasce uma literatura na qual está presente o Triunfo da Morte, que vence toda a vaidade humana, o tempo e a fama (ECO, 2014, p. 62). Eco afirma que o poder da igreja sempre se valeu da imagem da morte como forma de controle Tanto a pregação quanto as imagens exibidas em locais sacros eram destinadas a lembrar a iminência e a inevitabilidade da morte, além de cultivar o terror das penas infernais criadas pelo cristianismo. O trecho a seguir, de Sebastião Paoli (1684-­‐1751) sob o título Sermões quaresmais, relata toda a abjeção que é possível caber em uma descrição de um estado de decomposição de um cadáver: Assim que este corpo, bem composto, todavia, e bem organizado, estiver fechado no sepulcro, mudado de cor ficará pardacento e morto, mas de um certo palor e de uma certa lividez que dão náusea e dão medo. Mas escurece depois da cabeça aos pés[...] Então, no rosto, no peito e no ventre, começa estranhamente a inchar; sobre esse


111 inchaço estomacal nasce um mofo fétido e untoso, sórdido argumento da corrupção próxima [...] (ECO, 2014, p. 65).

Estes Sermões quaresmais prosseguem detalhadamente descrevendo lábios pútridos, vísceras laceradas, vermes e toda sorte de imundice e de podridão. Segundo Hall Foster, há uma certa bipolaridade entre o êxtase e o abjeto quando observada como uma crítica social. (FOSTER, 2014, p. 156). Porém, a abjeção aparece como um instrumento de poder e de controle. Eco sugere que na antiguidade a vida era muito mais breve, morria-­‐se muito mais rápido, a humanidade vivia em guerras constantes, a morte era um ente presente na mesa, sentada ao lado. Na pós-­‐modernidade a morte já não é tão aparente, apesar de certeira. Segundo Humberto Eco: em nossos dias, quando, vendendo modelos de juventude e formosura, fazemos todos os esforços para esquecê-­‐la, ocultá-­‐la, relegá-­‐la aos cemitérios, nomeá-­‐la apenas através de perífrases ou exorcizá-­‐la reduzindo-­‐a a um simples elemento de espetáculo, graças ao qual é possível esquecer a própria morte para divertir-­‐se com a dos outros. (ECO, 2014, p. 62).

Hoje, vivemos numa sociedade onde tudo se quer rápido, límpido, perfeito e efêmero. Um simulacro de perfeição criado pelo sistema captalista. Em contrapartida, artistas aderem ao abjeto como forma de contestar o simulacro estabelecido pelo poder. Hoje, vê-­‐se um fascínio pela abjeção como forma de insatisfação com o modelo perfeccionista e vazio vigente, e assim, usa-­‐se a estética do abjeto para se mobilizar contra um mundo fantasioso oferecido pelo consumismo. A arte contemporânea é problematizada, segundo Foster, pelo desespero ante a persistência da crise da Aids, doença e morte invasivas, pobreza e crime sistêmicos, o bem-­‐estar social destruído, inclusive o contrato social rompido (pois de cima os ricos não participam da revolução e de baixo os pobres são largados na miséria). A articulação dessas diferentes forças é difícil; em conjunto, no entanto, elas estimulam a preocupação contemporânea com o trauma e a abjeção. Uma das consequências é que para muitos na cultura contemporânea a verdade reside no sujeito traumático ou abjeto, no corpo enfermo ou deteriorado. Esse corpo, com certeza, constitui a base probatória de importantes testemunhos da verdade, de testemunhos necessários contra o poder. [...] Se existe um sujeito na história para o culto de abjeção, este não é o trabalhador nem a mulher nem a pessoa de cor, mas o cadáver. (FOSTER, 2014, p. 157)


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O cadáver como símbolo de um sujeito aniquilado pelo poder. O cadáver da mulher, do trabalhador, do negro, do índio, do mulçumano, de todas as minorias esmagadas. E Foster indaga: seria a abjeção uma recusa do poder, seu estratagema, ou sua reinvenção? Segundo Julia Kristeva: O cadáver – visto sem Deus e fora da ciência – é o cúmulo da abjeção. É a morte infestando a vida. Abjeto. Ele é um rejeitado do qual não dá para se separar, do qual não dá para se proteger como se faria com um objeto. Estranheza imaginária e ameaça real, ele nos chama e acaba por nos devorar. (KRISTEVA, 1982, p. 11)

Georges Bataille (2013) explica essa ameaça real do cadáver, como o grau máximo da abjeção: Ela constitui até um perigo mágico, capaz de agir por "contágio" a partir do cadáver. Muitas vezes a ideia de "contágio" se liga à decomposição do cadáver, em que se vê uma força temível, agressiva. A desordem que é, biologicamente, a podridão por vir, que, assim como o cadáver fresco, é imagem do destino, carrega em si uma ameaça. Não cremos mais na magia contagiosa, mas quem de nós poderia dizer que não empalideceria à visão de um cadáver repleto de vermes? (BATAILLE, 2013, p. 70)

Depois que o corpo de Lázaro foi depositado na sepultura, ele continua a pensar e sentir. Parece que a morte só se consuma para os vivos. Para os mortos, pelo que parece no conto, os corpos continuam movendo-­‐se. Dentro de sua sepultura, Lázaro se encolhe de medo. Então, ele conhece Rouah. Numa aparição, aquele que se diz irmão gêmeo de Jesus, vindo dos infernos. Tu está preparado, Lázaro? É teu esse corpo? Há alguns anos lutas com ele, não é? Apressa-­‐te. Chegou a hora. De repente vejo Rouah: tosco, os olhos acesos, o andar vacilante, as pernas curtas, parecia cego, apesar dos olhos acesos, as mãos compridas, afiladas, glabras, eram absurdas aquelas mãos naquele corpo, todo ele era absurdo, inexistente, nauseante. [...] Rouah senta-­‐se. Abre as pernas. Seu sexo é peludo e volumoso. Coça-­‐se estrebucha, sem que eu saiba por quê. Abre a boca amarela e diz com a voz tranquila: Lázaro, acostuma-­‐te comigo [...] Rouah coloca os pés escuros sobre a cabeça. Vejo nitidamente que os pés de Rouah são pés minúsculos, talvez por isso ele tem o andar vacilante. Ele abre a boca, a boca vazia e amarela, fica de pé num salto, olha ao redor, depois deita-­‐se e começa a lamber-­‐se. Uma língua achatada e lenta. (HILST, 2003, p. 117)


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Temos aqui, uma descrição pictural do personagem Rouah. Pode-­‐se observar uma descrição minuciosa do corpo grotesco do personagem. A escritora se vale de elementos do cinema e da pintura como cores e movimentos. Ao descrever o cheiro do ambiente, Hilst utiliza o procedimento do contraponto, que é um procedimento do grotesco. Lázaro, em sua memória, lembra do cheiro de sua casa perfumada e do carinho das irmãs para com ele: "o cheiro da casa. O cheiro de Marta. Sento-­‐me. Ela trás água. Lava-­‐me os pés. Desfaz o trançado dos cabelos. Enxuga-­‐me. Depois, a toalha de linho embebida em perfume: nas minhas costas, no meu peito, no meu rosto, na minha nuca." (HILST, 2003, p. 118) Mas dentro da sepultura o cheiro é outro:

Agora sinto o cheiro da minha própria carne, um cheiro gordo entupindo minha boca, um cheiro viscoso, preto e marrom. Rouah também o sente, porque parou de lamber-­‐se, levantou a cabeça, os buracos de seu focinho se distendem, se comprimem [...] levantou novamente a cabeça num gesto vaidoso de lobo, pôs-­‐se em pé aproximou-­‐se do meu corpo enfaixado. (HILST, 2003, p. 118)

No trecho, Hilda Hilst confronta o cheiro da casa, o cheiro de Marta e o cheiro da toalha de linho embebida em perfume, com o cheiro da carne putrefata de um morto. Nota-­‐se que a escritora utilizou elementos sinestésicos para ressaltar o abjeto do cheiro da carne morta: Hilda mistura olfato com visão, ou seja, um cheiro com cor. Um cheiro marrom, cheiro gordo, cheiro viscoso. A sinestesia é um recurso de relação subjetiva que se estabelece espontaneamente entre uma percepção e outra que pertença ao domínio de um sentido diferente (p. ex., um perfume que evoca uma cor, um som que evoca uma imagem etc.). No caso, a união de sentidos serve para potencializar o efeito abjeto da cena. Outros elementos do grotesco também são elencados na cena como, por exemplo, a fusão do corpo de Rouah com partes do corpo de animais, focinho de porco, gesto de lobo. Ao ressuscitar, sair da sepultura e voltar à vida em sua aldeia, Lázaro é indagado pelos moradores que o perguntam se ele viu mesmo o corpo de Rouah. Uma pessoa lhe pergunta se ele viu uma claridade ao redor de Rouah e Lázaro responde:


114 Não. Ele é todo repulsivo e obsceno? Sim. Todo? Não: as mãos tem muita coisa dos humanos: compridas, afiladas, glabras. São iguais às tuas mãos? Não: a minha mão é escura, sombreada de pelos. É verdade que as tuas mãos completariam o corpo de Rouah? (HILST, 2003, p. 120)

No diálogo, Lázaro percebe a ligação do corpo grotesco de Rouah com o seu próprio corpo. Um fragmento do corpo de Lázaro completaria o corpo de Rouah. Isso pode significar que o mal está em nós, seres humanos, e é este nosso mal que completaria o corpo do demônio. Ou seja, o mal só está completo, com a mão dos humanos. Pode-­‐se perceber a presença do corpo fragmentado quando a escritora ressalta uma parte do corpo, no caso as mãos de Lázaro, como parte de um todo, o corpo de Rouah. Vemos aqui uma reunião de fragmentos corporais a fim de ressaltar a imagem do corpo grotesco. Como apresentei nos procedimentos de Rodin. Tem-­‐se aqui, a figura do monstro feito de partes. Em "Lázaro" características abjetas estão presente em sua narrativa. O grotesco também se faz presente através de descrições angustiantes e sinistras. Como o próprio corpo morto de Lázaro, quase putrefato, assume incomum via de acesso ao entendimento da morte e também abre para a representação do cadáver abjeto. Como explica Eliane Robert Moraes: As formas de decomposição aqui descritas remetem inexoravelmente à degradação dos corpos mortos: nessas imagens o homem se vê confrontado com sua condição de matéria, perecível e reciclável, cuja evidência maior se manifesta no aspecto definitivo do cadáver. Descoberta insustentável que também desperta o ser humano para a irrevogável condição de objeto que ele é, que pode vir a ser, e que seguramente será. (MORAES, 2002, p.126)

Nos trechos a seguir, temos a população da aldeia onde Lázaro vive, depois de morto, e também vivia antes de morrer, com desejo irreprimível de saber e conhecer mais sobre a morte: Então tenho diante de mim um ressuscitado, porque estavas morto, não é? Ou não estavas? Sim, estavas morto, eu te vi, eras amarelo, tinha os lábios roxos, oh, por favor, me diz, me diz como é lá embaixo. (HILST, 2003, p. 121)


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E em outro momento: Se estamos dizendo que Lázaro estava morto é porque estava. Até fedia. Fedia? Isso é mentira, estava enfaixado, e se o nardo é fedor para você, não temos nada com isso. [...] ele fedia, sim, [...] Sua irmã Maria estava junto à cama. Ajoelhada. Quieta. A outra chorava muito alto, levantando os braços. Ele estava tão amarelo que metia medo, ao redor da boca um círculo arroxeado, o morto mais morto que já vi. (HILST, 2003, p. 122-­‐123)

Nos trechos acima, podemos perceber um alto grau de picturalidade nas descrições construídas por Hilda. O uso das cores, o amarelo, o roxo, para representar o cadáver de Lázaro em seu corpo enfaixado. Temos uma imagem que podemos afirmar ser esteticamente expressionista, e as cores complementares, roxo e amarelo, impactam a cena. As personagens femininas, Maria e Marta, uma ajoelhada à beira da cama onde se encontra o irmão morto, e a outra chorando muito alto com os braços levantados. Podemos também, nesta composição dos corpos das duas mulheres, perceber um acentuado grau de picturalidade, onde as posições corporais pretendem exprimir sentimentos extremos. Na cena do conto acima, onde vemos as irmãs de Lázaro, observando as ideias de Le Brun (2008), temos uma irmã ajoelhada junto da cama, venerando o corpo do irmão morto. Segundo Le Brun: "Na veneração, o corpo se curva ainda mais do que na estima, braços e mãos estão praticamente colados, os joelhos tocam o chão e todas as outras partes do corpo assinalam um respeito profundo." ( LE BRUM, 2008, p. 86) A outra irmã apresenta-­‐se de forma diferente, num arrebatamento escandalosamente ruidoso. A imagem do corpo humano, quando for representar a paixão do arrebatamento, segundo Le Brun, "pode mostrar o corpo inclinado para trás, os braços erguidos e as mãos espalmadas." (LE BRUM, 2008, p. 86) A imagem do corpo em "Lázaro" é a imagem do morto, do corpo enquanto cadáver. "sinto o cheiro da minha própria carne, um cheiro gordo entupindo minha boca, um cheiro viscoso, preto e marrom" (HILST, 2003, p. 34). O Lázaro de Hilst, mesmo depois de ressuscitado, carrega consigo a consciência dolorosa da morte que não


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pode ser evitada e nem superada. Mesmo com sua (re)encarnação, Lázaro traz entranhado em sua pele o odor da morte, que perfume algum é capaz de lavar. A imagem da ressurreição de Lázaro é um tema recorrente na expressão artística ao longo da história humana. A iconografia da parábola bíblica "A ressurreição de Lázaro" vem desde as mais antigas pinturas -­‐ muitas foram estabelecidas na pintura bizantina e também representadas por Giotto e Duccio, pelo menos. Algumas imagens datam de cerca de 550 d.C. e tal representação comporta sempre a imagem do Cristo com o braço estendido para a esquerda, em direção à Lázaro; Lázaro de pé, diante de uma gruta, enrolado em faixas; e um personagem secundário que tapa o nariz por causa do mau cheiro. Temos diante dos nossos olhos, apesar da temática da re-­‐vida, a presença da morte, do corpo macilento, corroído pela decomposição.

Fig. 1118 -­‐ Giotto, A ressurreição de Lázaro, 1304 Fig. 1219-­‐ Juan de Flandes, A ressureição de Lázaro, 1519. Óleo sobre tábua de madeira de pinus, 110 x 84 cm

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Fig. 11: Disponível em: < www.lacomunicazione.it >

Fig. 12: Disponível em: < https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/resurreccion-de-lazaro/ccb0e223-16b1-47ed-9c041cb8c44c43bc?searchid=05a59f6b-492b-9f52-6ba9-0400614a511d >


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Na história da pintura, a representação de certos temas relacionados ao feio e ao grotesco é uma recorrência. Nas imagens da parábola de Lázaro pode-­‐se notar que, até o início do modernismo, as representações do grotesco eram muito tímidas. As pinturas e as poesias da antiguidade, até o fim do classicismo, tinham compromisso com o belo. Por mais grotesco, cruel e abjeto que fossem as imagens a serem representadas, estas deveriam seguir os preceitos do belo e da contemplação. Como afirmou Victor Hugo (2007, p.30): "o grotesco antigo é tímido, procura sempre esconder-­‐se. Sente-­‐se que não está no seu terreno, porque não está na sua natureza. Dissimula-­‐se o mais que pode." Como nas pinturas Renascentistas da representação da história de Lázaro, não sentimos horror, nem nojo e nem desconforto ao vermos Lázaro sair ressuscitado de sua sepultura. A morte na antiguidade é antes horrenda por seus atributos do que por seus traços. Em Chevalier e Gheerbrant, a morte enquanto símbolo: é o aspecto perecível e destrutível da existência. Ela indica aquilo que desaparece na evolução irreversível das coisas: ela está ligada ao simbolismo da terra. Mas é também a introdutora dos mundos desconhecidos dos Infernos ou dos Paraísos; o que revela a sua ambivalência, como a da terra, e a aproxima, de certa forma, dos ritos de passagem. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 621)

Como na passagem a seguir, onde pode-­‐se perceber a ligação da simbologia ambivalente da terra com o sangue e os joelhos: eu me ponho de joelhos, não lavro mais a terra, só ando no caminho para poder sangrar os meus joelhos, para que todos repitam até o dia de Vossa glória: Lázaro tinha os joelhos de sangue, o seu sangue era vermelho e grosso e empapava a terra. (HILST, 2003, p. 122)

Lázaro, ao retornar à vida, passa a ter uma existência de tormento. O tormento de viver duas vezes na angústia da morte certa. Nesta passagem, também podemos perceber o alto grau dos índices de picturalidade: os joelhos, o sangue vermelho e a terra empapada de sangue. Segundo Chevalier e Gheerbrant: "O sangue é universalmente considerado o veículo da vida. Sangue é vida, se diz biblicamente. Às vezes, é até visto como o princípio de geração. Segundo uma tradição caldéia, é o


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sangue divino que, misturado à terra, deu a vida aos seres." (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 621) Os joelhos de sangue representam as chagas de Jesus, o corpo sacrificado. Ao dizer que "não lavro mais a terra", Lázaro fecunda a terra com o seu próprio sangue. Lázaro dá sua vida, seu sangue à terra. Temos aqui, mais uma vez, a imagem simbólica da terra devoradora. Se o sangue é vida, em certos povos é considerado o veículo da alma, o que explicaria, segundo Chevalier e Gheerbrant, "os ritos dos sacrifícios, durante os quais todo o cuidado era tomado para que o sangue da vítima não se derramasse no chão." (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 621) Aqui, Lázaro fecunda a terra com sua alma, seu sacrifício. Para Bataille: É geralmente próprio ao sacrifício fazer concordar a vida e a morte, dar à morte o jorro da vida, à vida o peso, a vertigem e a abertura da morte. É a vida misturada com a morte, mas nele, no mesmo instante, a morte é signo de vida, abertura ao ilimitado. (BATAILLE, 2013, p.115)

A questão do corpo morto, e do renascimento, é presente em diversas iconografias utilizadas por Hilda Hilst em "Lázaro". A construção da imagem corporal no conto atravessa os três eixos centrais da obra hilstiana: o amor, a morte e Deus. O amor, presente na relação entre Lázaro e suas irmãs, o amor de Lázaro para com Jesus, a morte de Lázaro e a crucificação de Jesus, e a imagem de Deus, representada por um ser que abandona seus filhos em um mundo violento. Em determinada passagem do conto, Lázaro descreve a imagem do corpo de Jesus. Percebe-­‐se que a escritora utiliza-­‐se de uma imagem estereotipada do filho de Deus: Eu não me canso de observá-­‐Lo: seus cabelos brilhantes são lisos até a altura das orelhas, depois esparramam-­‐se encaracolados pelos ombros, sua barba espessa é cheia de fios amarelos, queimados de sol. Lázaro, por que me olhas tanto? Porque és belo. (HILST, 2003, p. 125)

Mais uma vez, o contraste do sublime e do grotesco é utilizado pela escritora ao colocar lado a lado a imagem bela de Jesus e a imagem grotesca de Judas: "Chama-­‐se Judas, o Iscariote. O amor desse homem é diferente do meu amor: é um amor de mandíbulas cerradas, de olhar oblíquo, de desespero escuro." (HILST, 2003, p. 127)


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Pode-­‐se notar que a descrição da beleza de Jesus passa por uma descrição puramente física, enquanto a descrição de Judas passa por uma descrição das paixões, ou seja, uma descrição da alma refletida no corpo. Em uma passagem de Xenofonte (c.430-­‐355 a.C.) em seu texto "Memoráveis" (séc. IV a.C.), o filósofo narra a conversa de Sócrates com o pintor Parrásio: E então, imitais o caráter da alma, o mais persuasivo, doce, amável, querido e desejável? Ou isso não é imitável? Ó Sócrates, perguntava Parrásio, como seria imitável o que não tem proporção, nem cor, nem nada do que há pouco mencionaste -­‐ o que em suma, não é visível? Mas o homem não olha para os outros de forma amistosa ou hostil? Parece-­‐me que sim, disse. E isso não pode se imitar nos olhos? Certamente, respondeu Parecem-­‐te semelhantes as faces dos que se importam as dos que não se importam com as alegrias e tristezas dos amigos? Por Zeus, é claro que não, disse, com as alegrias ficam radiantes, com as tristezas, sombrias. Portanto, não é possível produzir semelhanças dessas coisas? Certamente, disse ele. Além disso, também a magnificência e a liberdade, a humildade e o servilhismo, a prudência e a sensatez, a insolência e a vulgaridade, transparecem nas faces e nas atitudes dos homens, quer estejam parados ou em movimento. É verdade, disse. Então, essas coisas não são também imitáveis? Com certeza, disse. (XENOFONTE, 2008, p.16-­‐17)

No trecho de Xenofonte, pode-­‐se notar como Hilst descreveu o corpo de Judas Iscariote através de paixões que não têm forma nem cor, como o "amor de mandíbulas cerradas" e o amor de "olhar obliquo de desespero escuro". A descrição do corpo belo de Jesus passa por uma imagem mais retiniana e descritiva, de forma naturalista, e a descrição de Judas é mais psicológica, uma descrição das paixões da alma, refletidas nas partes do corpo. Ou seja, como explica Vitor Hugo: "o belo é um, o feio é mil". O feio é, sem dúvida, muito mais passível de interpretações. O feio é relativo e cultural, o belo é normativo. À representação de tais expressões e sentimentos, na literatura como na pintura é necessário uma atenção especial, diferentemente da representação do belo. Leonardo da Vinci (1452-­‐1517), no texto "A fisionomia e as expressões dos afetos: de como um bom pintor tem de pintar


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duas coisas: o homem e sua mente.", em seu Tratado da pintura (1490-­‐1517) explica que: O bom pintor tem de pintar duas coisas principais, isto é, o homem e o estado de sua mente. O primeiro é fácil, o segundo é difícil, porque se deve representar com gestos e movimentos dos membros; e isto pode ser aprendido com os mudos, que o fazem melhor que qualquer outra espécie de homem. [...] ( VINCI, 2008, p. 43)

O abade Jean-­‐Baptiste Du Bos (1670-­‐1742) em suas Reflexões críticas sobre a poesia e a pintura (1719), também aborda a temática dos gestos, os quais deviam significar algo inteligível, gestos que deviam falar. Segundo Du Bos, os gestos significativos são de duas espécies: uns naturais e outros artificiais. Os gestos naturais são aqueles que fazemos enquanto estamos falando, gesticulando, dando ênfase à nossa oração. Para Du Bos, o gesto natural é muito difícil de ser compreendido sem o acompanhamento da fala. A não ser quando o gesto natural signifique uma afecção como uma dor de cabeça ou uma impaciência, mas segundo Du Bos o gesto natural não basta, nesse caso, para que se conheçam as circunstâncias dessa afecção. As afecções, segundo Spinoza (2009), são o corpo sendo afetado pelo mundo. São dessas afecções que nascem os afetos, que podem ser afetos de alegria ou de tristeza. Hilda Hilst trabalha com as palavras, não de forma descritiva naturalista. A escritora se vale, muitas vezes, dos afectos para compor sua narrativa. No trecho a seguir: Estou debaixo desse céu absurdo, arrasto-­‐me, caminho de joelhos, beijo a terra, a terra escura e profunda. Apoio-­‐me na figueira, tateio as artérias grossas desse tronco, essa aspereza, essa vida digna, esse existir calado. (HILST, 2003, p. 129)

Podemos notar novamente a presença da terra, do corpo que se arrasta sobre ela, beija a terra, escura e profunda como relação ao túmulo, às profundezas infernais. Neste trecho também se repete a ação de caminhar de joelhos, sobre a terra. O sangue grosso e vermelho que empapa a terra. O caminhar de joelhos tem uma relação de submissão e de resignação sob o céu absurdo. A imagem dos joelhos aparece com frequência em "Lázaro", segundo Chevalier e Gheerbrant:


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Os bambaras chamam ao joelho nó do bastão da cabeça. E veem nele a sede do poder político. Identificam-­‐se, nisso, com numerosas tradições antigas, que fazem do joelho a sede principal da força do corpo... o símbolo da autoridade do homem e do seu poder social. Donde o sentido das expressões: dobrar o joelho = fazer ato de humildade; fazer dobrar os joelhos = impor a vontade à alguém ou matá-­‐lo; ajoelhar-­‐se diante de alguém = fazer ato de vassalagem, adorar; no joelho dos deuses = em seu poder; tocar os joelhos = pedir proteção. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 518)

Os joelhos em "Lázaro", representam a sua servidão e adoração a Deus. Um Deus representado aqui por um céu absurdo. Outra imagem que aparece em todos os contos de Fluxo-­‐floema é a imagem da figueira. A imagem da figueira, como já disse, é um elemento do biografismo, ou seja, está diretamente ligado à vida pessoal de Hilda Hilst. Em sua Casa do Sol existe uma imponente figueira no quintal e essa figueira aparece, não só em Fluxo-­‐floema, como ao longo de sua obra. A árvore majestosa é um dos símbolos do misticismo da casa.

Fig. 1320-­‐ Foto do quintal da Casa do Sol, ao centro, a figueira. Frame do filme Hilda Hilst pede contato de Gabriela Greeb, filmado na Casa do Sol. 2018.

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Fig. 13: Disponível em: http://www.planocritico.com/critica-hilda-hilst-pede-contato/


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No trecho do conto (HILST, 2003, p. 129), Lázaro se apoia ao tronco da figueira como se ela tivesse uma força espiritual, e tateia suas artérias fazendo uma alusão ao título do livro, Fluxo-­‐floema: floema são as artérias por onde passam o fluxo de seiva no interior do caule das plantas. A imagem da figueira aparece também no conto "Fluxo" quando Ruisis se lembra de quando subiam a colina (a imagem da colina também é recorrente em todos os contos) e sentavam debaixo da árvore: “... ah como era bonito lá, o tronco, a distorçura da árvore, eu debaixo da árvore, eu debaixo de toda aquela nervura, ...” (HILST, 2003, p. 46) Também aparece no conto "O Unicornio", quando dois personagens conversam sobre uma menina lésbica: "Quando ela me falava de sexo debaixo da figueira, eu começava a rir inevitavelmente." (HILST, 2003 p. 145) Ou quando a escritora fala da figueira indiretamente como no conto "Floema": “ sou sempre o de baixo, que seiva é para sugar? Quem é que suga aquilo que não vê?” (HILST, 2003, p. 230) Na passagem de "Lázaro" (HILST, 2003, p. 131) "Deito-­‐me na terra", novamente o motivo da terra como simbologia do rebaixamento. No trecho Lázaro é traído e sofre agressões e exílio por ter sido escolhido por Jesus. Temos aqui, a imagem do corpo vítima do ciúme e da inveja, atacado por ser diferente. Deito-­‐me na terra. [...] Sou agarrado com extrema violência. [...] E recebo golpes na cabeça, no ventre, no peito. [...] Acordo com o ruído do mar. [...] Estou sozinho num barco. Um barco sem vela, sem leme, sem remos. [...] tenho feridas no corpo, ainda sinto aquelas mãos pesadas golpeando-­‐me. (HILST, 2003, p. 131)

A imagem acima é característica do abjeto segundo Kristeva: O abjeto está relacionado com a perversão. O sentimento de abjeção que eu experimento está ancorado no super-­‐eu. O abjeto é perverso porque não abandona nem assume um interdito, uma regra, uma lei; mas distorce-­‐os, extravia-­‐os, corrompe-­‐os; serve-­‐se deles, usa-­‐os, para melhor negá-­‐los. Mata em nome da vida: é o déspota progressista; vive ao serviço da morte: é o traficante geneticista; realimenta o sofrimento do outro para seu próprio bem: é o cínico (e o psicanalista); estabelece seu poder narcísico fingindo expor seus abismos: é o artista que exerce sua arte como


123 um “negócio”... A corrupção é sua figura mais conhecida, mais evidente. Ela é a figura socializada do abjeto. (KRISTEVA, 1982, p. 25)

A abjeção é a violência contra os corpos diferentes, a violência por intransigência. Lázaro, ao indagar ao frei que o recebeu, o por quê de tanta violência o frei o adverte que é inútil questionar à multidão enfurecida pelo ódio cego. O frei Benvenuto tenta mostrar a Lázaro que é inevitável a angústia de viver até a morte e conviver com "o rosto duro e cruel dos humanos." (HILST, 2003, p. 138) e expõe: o que quero dizer é que nenhum cristão morria simplesmente. Morriam cuspidos, pisados, arrancavam-­‐lhes os olhos, a língua. Lembro-­‐me de um cristão que carregava o crucifixo e gritava como tu: está vivo! Ele está vivo! Sabes o que fizeram? Pregaram-­‐lhe o crucifixo na carne delicada do peito e urraram: se Ele está vivo por que alimenta o ódio, o grito e a solidão dentro de cada um de nós? [...] O sangue do homem salpicava-­‐lhes as caras e o coitado só repetia essa palavra: a cruz! A cruz! Aí foram tomados de fúria: ouviram? O porco quer nos legar a cruz! Como se não nos bastasse a vida! E pisotearam-­‐no até a morte. Muitos morreram de uma forma mais cruel do que essa. (HILST, 2003, p. 139)

Ao final do conto “Lázaro” temos um corte brusco na narrativa, marcado por um espaço em branco. Abaixo desse espaço encontram-­‐se apenas três linhas, e Lázaro não é mais o narrador: "Lázaro grita. Um grito avassalador. Um rugido. Arregala os olhos e vê Marta. Ela está de pé, junto à cama. As duas mãos sobre a boca." (HILST, 2003, p.140) Temos aqui um corte, característico de um corte de edição de vídeo, onde temos o que se chama de fade to white, um corte para o fundo branco, um silêncio. A imagem de Marta com as mãos sobre a boca remete ao início do texto, quando Lázaro relatava de que forma se dera sua morte, e sugere que ele talvez tenha apenas adormecido e tido um sonho absurdo, ou até que tenha de fato morrido, vivenciado todas as experiências que são relatadas ao longo da narrativa, e então voltado à vida, em sua própria casa. O sentido fica suspenso e o leitor escolhe uma das versões apresentadas.


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2.6. O UNICÓRNIO: O CORPO BESTIAL Em "O Unicórnio", há os dois irmãos: o menino pederasta, meio homem e meio mulher, e a menina lésbica, também homem-­‐mulher, e o eu-­‐narrador, o único feminino presente no livro todo, transformado em unicórnio, homem-­‐animal. O Unicórnio atuando como bicho, comendo verduras e frutas podres, causando estranheza e nojo, apresentando características grotescas e abjetas. No conto, Hilst procura mostrar com essa metáfora, como é visto o homem: que é homo e ainda assim não deixou ser animal. A escritora apresenta esse homem primata por meio de um rebaixamento do humano quando o retrata atuando como um bicho, um ser irracional. Segundo Santos, Em "O Unicórnio", com uma linguagem narrativa trespassada de poesia, a autora critica o homem, suas crenças e injustiças, e lembra que “o homem é o lobo do homem”, pois ele mesmo cria suas regras, seu mundo, de acordo com suas conveniências, utilizando-­‐se dos veículos de informação para nos fazer acreditar naquilo que é melhor para um determinado momento político e econômico, denunciando o trabalho ideológico. (SANTOS, 2006, p. 22)

No início do conto, o eu-­‐narrador relata a outro personagem as características físicas e psicológicas da menina lésbica e do menino pederasta, contrapondo um certo erotismo com baixos corporais de forma grotesca:

Eles eram malignos. Ela amava as mulheres. Mas isso não tem importância e talvez não dê malignidade a ninguém. Dizem que todos os pervertidos sexuais tem mal caráter. Dizem, eu sei. Você acredita? Acredito sim. No aspecto físico ela era uma adolescente sem espinhas, E ele? Espere, quero falar mais dela. Muito bem, espinhas então. Isso não é tudo. Quando ela falava de sexo, debaixo da figueira, eu começava a rir inevitavelmente. Que coisa saberia do sexo aquela adolescente tão limpinha? E depois, veja bem se era possível levar a sério: ela usava uma calcinha onde havia um gato pintado. Quê? juro. Você viu a calcinha? A calcinha foi pendurada certa vez num prego do banheiro: você jura que eu estou vendo um gato pintado na tua calcinha? Ela sorriu. Mas o gato teria por certo uma finalidade. Que finalidade pode ter um gato pintado numa calcinha? É, moça, não sei, essas coisas são complicadas. Podem ser ingênuas e engraçadas para você e muito eficientes, assim, no plano erótico, para o outro. (HILST, 2003, p. 146)


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Novamente a temática do interdito aparece em cena. A sexualidade da adolescente colocada em contraponto com a ingenuidade. Um gato pintado numa calcinha pode muito bem, como diz a outra personagem que conversa com o eu-­‐ narrador, ser muito eficiente no plano erótico. A imagem da gata já é um símbolo que caracteriza o órgão sexual feminino de forma erótica -­‐ pussycat. O grotesco aparece justamente nesse desconforto que a autora nos impõe ao presenciar essa dubiedade entre a inocência e o erotismo de uma adolescente. Outro incômodo grotesco imposto pela escritora, na voz do personagem eu-­‐narrador, é a questão da homofobia. O fato da menina amar outras mulheres ao lado de perversão sexual e da fala: "Dizem que todos os pervertidos sexuais tem mal caráter. Dizem, eu sei. Você acredita? Acredito sim." Mais uma vez a escritora se vale de um um elemento politicamente incorreto, que é a homofobia, para confrontar e incomodar o leitor desavisado. A representação do corpo em "O Unicórnio" é sempre feita por meio da degradação. Este homem(mulher)animal é a parte anormal propícia à representação do bizarro que, aliado às palavras chulas e descrições grotescas, faz crítica às mazelas da sociedade, derrubando crenças e valores. É o que explica Leandra Alves dos Santos: "Como forma de acentuar o incongruente no contemporâneo, os personagens

sofrem

rebaixamentos,

desarticulando

toda

a

trama

do

convencionalismo tomado pelo belo e sublime." (SANTOS, 2006, p.88) a mãe era uma possessiva gorda. (HILST, 2003, p. 146)

Ou: O irmão também. Vi que ele amava os homens. A irmã era lésbica e o irmão pederasta? (HILST, 2003, p. 147)

Ou: O pai é um esquizofrênico, a mãe, uma possessiva gorda, o pai é louco, o pai é louco. Você sabe que o meu pai também era louco? Ah, é. (HILST, 2003, p. 148)


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E também em: Nós achávamos que a maior parte da humanidade era estrume, lixo, merda. São todos uns merdas. (HILST, 2003, p. 149)

Pode-­‐se notar que as descrições dos personagens passam sempre pelo rebaixamento ridículo, por meio da degradação. Hilda se vale de elementos do grotesco quando mostra a mãe caracterizada pela glutonice, por sua alimentação desregrada, tornando seu corpo disforme, seu ventre enorme; o irmão-­‐pederasta é retratado, segundo a eu-­‐narradora, pela falta de consciência moral, por manter relações sexuais com outros homens, e ele é caracterizado pelas partes do baixo corporal e pela frivolidade com a qual trata seu corpo. Preocupado com as roupas e com a aparência, o perfume, Hilda faz uma crítica ao mundo da aparência e da superficialidade e do preconceito sexual. O irmão-­‐pederasta era professor de filosofia: Ele gostava de boas roupas, era estranho. Por quê? Um filósofo não pode gostar de boas roupas? Não, não pode, eu não levo a sério esses filósofos com blasers de âncoras douradas. Lixo. [...] Os pederastas se cuidam minuciosamente. Isso é sempre um perigo para todos. Por quê? (HILST, 2003, p. 151)

No conto "O Unicórnio" Hilda Hilst destrói a crença na inocência infantil expondo a agressividade das crianças, o fingimento e o lado mau da tenra idade. A agressividade não é exclusividade dos adultos, ela aparece também na falta de compreensão das crianças e em sua sinceridade cruel. Com isso a escritora busca mostrar a agressividade inata do homem: As crianças são de uma crueldade nojenta. "As crianças são nojentas. [...]. A época é de violência, de assassinato, de crianças delinquentes, de sexo." (HILST, 2003, p. 153) Também nesta passagem, nota-­‐se mais uma vez a estratégia desconcertante da autora ao aproximar opostos gerando uma sensação traumática no leitor: criança e crueldade. As crianças têm por habitam o imaginário coletivo como algo puro, livre das maldades do adulto. Hilst ao aproximar as crianças e à crueldade, gera um desconforto e um sentimento grotesco.


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Hilst ressalta a agressividade do ser humano pelo fato de não admitir o diferente. No trecho a seguir a intolerância é apresentada de forma grotesca expondo vísceras e extrema violência com cuspe, faca e revólver. De forma abjeta a eu-­‐narradora associa a personalidade de cada um à sua opção sexual. A escritora se vale do baixo corporal, a imagem do corpo sexual não normativo, a homofobia como forma de choque e desconforto a fim de atingir o leitor pelo asco: Você associa a maldade com a pederastia? Eu associo a pederastia com um defeito físico e o defeito físico com a maldade. Todas as pessoas com um defeito físico são más. A desconfiança que elas têm dos outros... Você não ficaria desconfiada de todos se tivesse o coração exposto e não por dentro da caixa torácica? A qualquer momento alguém podia te comer o coração. [...] Os cães podem me comer o coração, eu vou matar esses cães, eu vou mata-­‐los. Você tem um revólver? Uma faca? Um veneno? Tenho a mim mesma de coração exposto, eu mesma sou uma agressão, avanço em direção a eles, cuspo na cara deles, cago em cima deles, cago nessa humanidade inteira, essa humanidade de coração engolido, cheia de proteção (HILST, 2003, p. 155)

Termos chulos e abjetos vão dando forma a construção da imagem do corpo em "O Unicórnio", mostrando um corpo humano sofrido pela opressão e pela intolerância. A presença dos cães também aparece como índice grotesco ao mostrar o bestiário hilstiano. Aqui, mais uma vez, o biografismo, a imagem dos cães: Hilda chegou a ter 100 cães em sua casa. Os animais em Fluxo-­‐floema representam a animalidade do ser humano. O homem e o animal se aproximam, não só na questão da violência, mas também na inocência de um ser abandonado por Deus e entregue à própria sorte neste mundo cruel, caminhando para a morte e vivendo sua decrepitude progressiva, dia após dia. Eu tinha pensado em escrever a estória de um homem muito simples, um homem que nunca havia visto o mar, nem conhecido uma mulher. Ele era um carpinteiro. Ele não entendia o mundo, não entendia. E ele se apaixonou por uma mulher que sabia tudo sobre o mundo. A mulher fez uma porcaria com ele. [...] Ele começou a correr e chegou até a colina mais alta da cidade. Já era noite. Ele deitou-­‐se sobre a terra, respirou e de manhã encontraram o corpo e vários cães ao redor. Os cães estavam comendo o corpo? Não, os cães não entendiam como era possível que um cão não tivesse pelos, nem corpo de cão. Depois os cães se deitaram em cima dele e ficaram ali até que o corpo apodrecesse. (HILST, 2003, p. 156)


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Podemos perceber também a recorrente imagem da terra, do corpo terra, do corpo horizontal, caído, submisso à sua condição de corpo perene e frágil. A imagem do corpo podre, do cadáver em decomposição, como em "Lázaro" aparece como forma caracteristicamente abjeta. O cadáver como forma suprema da abjeção, sem Deus e sem ciência, nulo. Segundo Kristeva (1982), é a morte infestando a vida. A representação familiar é alvo de crítica no conto "O Unicórnio". Todos os atores são representados de forma grotesca: o pai é louco, motivo de preconceito e vergonha; a mãe gorda possessiva, caracterizada pela glutonice e deformidades adiposas e os filhos fogem aos padrões estabelecidos pela sociedade por causa da sexualidade que escapa aos padrões heteronormativos esperados. A escritora busca o caos ao inverter as hierarquias, embaralhar os sexos a fim de mostrar resistência a um controle imposto pelo sistema. Olha, eles disseram que meu companheiro fez propostas indecentes para a empregadinha deles. Eles disseram que o companheiro falou assim para a empregadinha: você não quer foder comigo? A minha mulher é uma velha porca. A empregadinha usava um gorro de tricô na cabeça e se masturbava todos os dias quando via o rosto do meu companheiro, e dava gritinhos quando ele aparecia para visitar os dois irmãos. A mãe dos dois irmãos dava a bunda pela empregadinha. (HILST, 2003, p. 156)

Na passagem, Hilst usa uma série de elementos grotescos e abjetos como o termo "empregadinha" para rebaixar o cargo de doméstica. É um termo quase escravocrata que deriva do período do Brasil colonial. Ainda hoje temos pessoas que trabalham em "casas de família", servindo, trabalhando duro, a troco de um salário mínimo. Outro fator que descende do período escravocrata brasileiro é a recorrência de relações sexuais entre o patrão e seus filhos com as empregadas. Hilst descreve a cena com uso de palavras de baixo calão para designar o ato sexual e tornar mais abjeta a relação descrita. A descrição da mulher pelo marido, também se faz de forma grotesca, nivelando por baixezas o corpo da mulher: "velha porca". A escritora trabalha, aqui também, no contraponto entre o grotesco e o sublime, ao colocar ao lado desta narrativa completamente abjeta uma descrição poética.


129 Eu estou deitada na minha cama. Ao meu lado, uma moça magrinha de ombros curvados. Ela diz um poema em voz baixa: se eu pudesse trocar esse meu corpo por um corpo de lobo/ se eu pudesse ser mais voraz/ se eu pudesse ter garras como estiletes/ se eu soubesse de um só caminho de sangue como um lobo. (HILST, 2003, p. 167)

Na descrição desta cena, Hilst inclusive se vale da linguagem e da forma de um poema, dando mais lirismo ao lado do grotesco. Este é o caos da linguagem, proposto o tempo todo por Hilda Hilst: ao mesmo tempo em que fala da masturbação da empregadinha com gorro na cabeça, da mulher que é uma velha porca, da proposta do marido: "você não quer foder comigo?" Hilst fala de uma moça magrinha deitada na cama, como uma linda ninfa declamando um belo poema metafísico que fala do corpo de um lobo. Em Hilda Hilst é assim: "é metafísica ou putaria das grossas." (HILST, 1990, p. 76) O conto traz a temática do abandono, do desamparo, da busca de um lugar no mundo e do medo da morte. O grotesco se revela, dentre muitas outras evidências, por meio do corpo de uma mulher preso ao corpo de um animal, um unicórnio, causando repulsa e estranheza. Recuo e meu traseiro bate na janela, inclino-­‐me para examinar minhas patas mas neste instante fico encalacrado porque alguma coisa que existe na minha cabeça enganchou-­‐se na parede. Meu Deus, um corno. Eu tenho um corno. Sou um unicórnio. (HILST, 2003, p.185)

A imagem do corpo transgressor ao antropocentrismo que, pelo hibridismo, se apresenta de forma caricatural à imagem humana e ao seu papel na sociedade de simulacros e simulações, que vive sob máscaras, exigidas para interpretar papéis. No conto, a autora critica o absurdo da maneira como os humanos vivem em uma sociedade tendo que repetir, rotineiramente, as mesmas atitudes, de forma autômata. É a imagem do homem-­‐besta, preso à sua jaula mundo. Para Santos, A tortura sofrida pelo eu-­‐unicórnio lembra a manifestação da crueldade do homem no momento da crucificação de Cristo, uma crueldade liderada pelos homens em posição de comando e poder, uma situação que parece despertar no homem a necessidade de agredir o outro de forma irracional, pautada apenas em seu instinto de morte. (SANTOS, 2006, p. 22)


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É o que comenta Umberto Eco (2014, p.49) acerca da feiura e do grotesco para representar o martírio e a dor, ao citar Hegel em sua Estética: "não se pode representar o Cristo flagelado, coroado de espinhos, crucificado, agonizante, nas formas da beleza grega." Na sua Estética II, Hegel (1770-­‐1831) destaca a potência do feio na representação do martírio: Os inimigos... quando se contrapõe a Deus, o condenam, o escarnecem, o martirizam, o crucificam, são representados como internamente maldosos, e a representação da maldade interna e da hostilidade para com Deus comporta, no exterior, feiura, rudeza, barbárie, raiva e deformação da figura. Por todos estes aspectos, o não belo se apresenta aqui, diversamente do que acontece na beleza clássica. (HEGEL apud ECO, 2014, p. 54)

A maldade e a violência praticada contra o diferente, representada no martírio de Cristo, é o que Hilst apresenta no trecho de "O Unicórnio" quando o personagem-­‐ narrador, após sofrer uma metamorfose e transformar-­‐se em um unicórnio, é então preso e mandado para o zoológico, onde fica encarcerado em uma minúscula cela imunda sofrendo os mais terríveis abusos: O zelador do parque afastou-­‐se. Não durmo há vários dias. No início fui tratado com bondade: duas vezes, pela manhã e à tardezinha, jogavam verduras e restos de fruta no meu quadrado. Agora, na parte da manhã, me atiram alfaces podres e um maço de brócoli e tudo isso é muito difícil de engolir. Hoje é Domingo, o sol está batendo nas minhas patas, estou muito triste porque hoje exatamente faz dois anos que estou aqui, e me lembro como estava quando cheguei, como eu tinha esperança de conquistar o amor dos que me vissem. Fiz o possível para agradar as pessoas – naturalmente dentro dos meus parcos recursos – mas sei agora que não compreendem os meus gestos. As visitas estão rareando. Nesses dois anos vi, uma vez, a superintendente e os conselheiros-­‐chefes. É preciso dizer antes de tudo que os perdoei. Eles estavam acompanhados daquela empregadinha que usava o gorro de tricô na cabeça e creio que o irmão-­‐pederasta-­‐conselheiro-­‐chefe casou-­‐se com ela, porque pude ver a aliança na mão esquerda. Eles pararam perto de mim e eu quis dizer que eles eram feitos um para o outro, e para expressar-­‐me -­‐ sempre dentro dos meus parcos recursos -­‐ coloquei o meu traseiro entre as grades do meu quadrado e bem à frente do casal, dando a entender com esse gesto, o seguinte: assim como as duas partes do meu traseiro se completam necessariamente, não podem separar-­‐se, assim também vocês dois só poderiam acabar se entendendo muito bem. Fiz isso na melhor das intenções. Mas não fui compreendido. Sabem o que eles fizeram? Espremeram um cigarro acesso no meu ânus. Estrebuchei de dor aquela tarde inteira. (HILST, 2003, p. 195-­‐196)


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A maldade humana, a intolerância para com as nossas diferenças se apresentam em "O Unicórnio" de forma irônica, expressada na angústia de viver sob o domínio do tempo, privado de liberdade e até ser arrancado da vida pela morte. Abandonada a toda sorte, a personagem vê um Deus que é a imagem e semelhança do homem, capaz das mais perversas brutalidades. Como na passagem: Meu Deus. Sabe o que me dizem? Dizem: o teu Deus é um porco com mil mandíbulas escorrendo sangue e imundície. Meu Deus, meu Deus. O teu Deus nos cuida assim como os homens cuidam dos cães sarnentos: a porretadas. O teu Deus nos cuida assim como os homens cuidam das cobaias, para a morte, para a morte, nós todos a caminho da morte, repasto para o teu Deus e ele lá em cima, insaciável, dizendo: venham meus filhos, venham alimentar-­‐me. O teu Deus está por aí, bocejando com duas bocas: numa um hálito fétido, noutra, uma rosa. Você escolhe a boca que quiser meu chapa (HILST, 2003, p. 163)

Ou seja, em "O Unicórnio" como nos outros contos do livro, a escritora apresenta a imagem de um Deus cruel que cuida de nós para a morte. Na passagem, Hilst trata da imagem de Deus com uma agressividade verbal e com expressões abjetas, evidenciando assim, o contraste grotesco característico de sua estratégia de trauma para com o leitor. Um leitor, que nem seja assim tão religioso e temente à Deus, ao ler tais palavras direcionadas ao "Todo Poderoso", provavelmente sentirá um certo desconforto ou alguma repulsa. O interessante é que Hilda Hilst escolheu a figura do unicórnio para representar a metamorfose no conto. O unicórnio figura em diversas estampas de tratados alquímicos (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 920). Essa besta fabulosa de origem oriental, segundo Chevalier e Gheerbrant, está ligada ao terceiro olho e ao acesso ao Nirvana. O unicórnio é por excelência um animal de bom agouro. Além de ser um símbolo de poder, por causa do seu chifre, expressa também o luxo e a pureza. No cristianismo, ainda segundo os escritores, é considerado o símbolo da fecundação espiritual e seu chifre único foi comparado a um pênis frontal, a um falo psíquico e representa a Virgem fecundada pelo Espírito Santo. A figura do unicórnio torna-­‐se assim o símbolo da encarnação do Verbo de Deus no seio da Virgem Maria. Sendo um animal tão próximo da pureza e da perfeição, o unicórnio utilizado por Hilst está ao lado das baixezas humanas, ao lado de elementos grotescos e abjetos,


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fazendo assim, um contraste com a figura clássica do unicórnio. Sabendo dessas significações do unicórnio, pode-­‐se compará-­‐lo ainda mais, no conto de Hilst, com os sofrimentos sofridos por Cristo na crucificação. Ou seja, um ser tão puro e elevado, com estreitas ligações com o divino, como Cristo e o unicórnio, serem tratados com tanta violência e desprezo. A intolerância e a violência geradas pela incapacidade de aceitar o diferente. Tudo aquilo que não se parece comigo, é estrangeiro, estranho. A figura do unicórnio, embora de aparência belíssima, representado por um garanhão branco com um único chifre sobre a fronte, integra a lista dos grandes bestiários da história. Segundo Umberto Eco (2016, p. 120), são as mirabilia, (do verbo mirari, que significa “ver”). As mirabilia são coisas admiráveis, espantosas, assumindo a designação de “aquilo que se afasta do curso ordinário das coisas.” Embora certamente não fossem considerados exemplos de beleza (no caso do unicórnio sim) nem todos esses monstros eram percebidos como perigosos. Sem dúvida eram temíveis, como o Basilisco, a Quimera, a Mantícora ou o Acéfalo. A figura do unicórnio no conto de Hilst aparece depois que a personagem-­‐ narradora sofre uma metamorfose. A história da literatura e das mitologias estão cheias de descrições de metamorfoses: deuses se transformam ou transformam outros seres em seres humanos, animais, e na maior parte dos casos, em árvores, flores, nascentes de rios, ilhas, rochedos, montanhas, estátuas etc. Essas metamorfoses podem ter aspecto negativo ou positivo, dependendo se elas representam uma recompensa ou um castigo. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 608) No conto de Hilst, as modificações no corpo do personagem não afetaram sua personalidade pois manteve-­‐se seu psiquismo. Segundo Chevalier e Gheerbrant, a metamorfose é um símbolo de identificação em uma personagem em via de individualização que ainda não assumiu todas as suas potencialidades. Como no romance de Lucio Apuleio (sec.II, d.C.), O burro de ouro ou Metamorfoses (APULEIO apud CHEVALIER; GHEERBRANT), onde o escritor latino narra as transformações de um certo Lúcio que, frequentador da alcova de uma cortesã sensual, sofre diversas transformações, uma delas em um burro como castigo para que ele abandone o prazer da carne. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 93).


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A experiência moderna da metamorfose tem como expoentes principais o Conde de Lautréamont (1846-­‐1870) e também Franz Kafka (1883-­‐1924), com a obra A Metamorfose (KAFKA, 1997). Hilda Hilst nunca escondeu as suas influências, tanto de Lautréamont quanto de Kafka. Seus nomes inclusive são citados no texto de "O Unicórnio". Outra referência citada no conto de Hilst é O Rinoceronte (1959), de Eugène Ionesco (1909-­‐1994) "Mas será que você não pode inventar outra coisa? Essa coisa de se saber um bicho de repente não é nada original e além da "Metamorfose" há "O Rinoceronte", você conhece?" (HILST, 2003: p. 186). Em "O Unicórnio", como em todo o livro Fluxo-­‐floema, Hilda Hilst se utiliza de uma profusão de gêneros literários. Além da narrativa em prosa aparece a poesia e a linguagem dramática. Essa "anarquia de gêneros" (PÉCORA, 2010, p.10) pode ser relacionada com a Metamorfose (8 d.C.) de Ovídio (43 a.C.-­‐18 d.C.). O amor em Metamorfose se alastra por todos os gêneros: encontramos escapadelas amorosas, amores impossíveis, incestuosos, não-­‐consentidos, amor de irmão, amor entre parentes, amor homoerótico. Além de sua aparência leve de conto de fadas, Metamorfose, de Ovídio, apresenta uma história demasiadamente fragmentada e aparentemente incoerente, mas que nos mostra centenas de lendas que inspiram, que são grotescas, e às vezes subversivas. A narração, dessa forma, explode em uma multiplicidade de episódios mitológicos, salientando a fluidez do mundo das metamorfoses e constituindo um universo que apaga as fronteiras porosas entre o humano e o divino, para sempre interligados. Pode-­‐se ver a proximidade do conto de Hilst com a obra de Ovídio também na homossexualidade do irmão pederasta e da irmã lésbica, o amor entre parentes, a prostituição infantil, o processo destrutivo do consumismo, a proximidade com o divino de forma blasfematória, além de uma multiplicidade de episódios fragmentados e aparentemente incoerentes, mas que se amarram em torno da natureza humana e suas metamorfoses sociais. Hilda Hilst era uma erudita. Lia muito, conhecia muito, estudava desde filosofia à física quântica, artes, poesia e astronomia. "há vinte e sete anos leio, medito e penso sobre o Homem, a Morte, o Ódio etc." dizia Hilda em 1978. Sabe-­‐se, em meio às entrevistas, que nessa tarefa estava, entre outras, a leitura (não sabemos ainda o quanto nem como foi feita) de Heidegger,


134 Hegel, Sartre, Merleau-­‐Ponty, Jankélévitch, Russel, Ernst Becker, Jung, Otto Hank, Freud, Edith Stein, Paul Tillich, George Bataille, Chersterton, Kafka, Beckett, Herman Bloch, Kazantzákis, Ionesco, Genet, Simone de Bevoir, Simone Weil e Wittgeinstein. (DINIZ, 2013, p. 8)

Apesar de não citar Ovídio, pode-­‐se imaginar que Hilda conhecia a obra do escritor romano. A obra Metamorfoses de Ovídio figura como uma importante obra clássica da mitologia greco-­‐romana e da literatura latina. São sete horas da manhã e sei disso porque o zelador do parque aparece gritando: como vai besta unicórnio? São sete horas da manhã e hoje eu estou aqui para limpar a sua fedentina. Como é, dormiu bem? Vira-­‐se para o ajudante: esse animal é uma besta mesmo, agora deu para ter um corrimento nos olhos e parece que está sempre chorando, as crianças vivem me enchendo: o unicórnio está chorando, hein moço? E eu repito a mesma coisa o domingo inteiro: o unicórnio não chora, parem de inventar coisas, já pinguei colírio nos olhos dessa besta mas parece que é pior, ele fica o dia inteiro fungando, eh, bicho medonho, só sabe ficar aí parado olhando entre as grades (HILST, 2003, p.194-­‐195)

Hilst expõe o seu unicórnio entre as grades de um zoológico com toda sua animalidade primordial, contida, e exposta de maneira grotesca às famílias da "canalha dita gente honesta". Em "O Unicórnio" o corpo humano é a parte insólita propícia à representação do grotesco que, aliado às palavras chulas e descrições grotescas, dá forma à poética de Hilst que, com sua crítica mordaz à sociedade contemporânea, desarticula tudo o que pode ser visto como belo, e por meio do efeito contaminador do grotesco vai mostrando as mazelas da sociedade, derrubando crenças e valores. Como forma de acentuar o incompatível os personagens

sofrem

rebaixamentos,

desarticulando

toda

a

trama

do

convencionalismo tomado pelo belo e sublime. Toda referência ao corpo é sempre feita por meio da degradação, às vezes fazendo menção à velhice para realçar o efeito do tempo. Como forma de criar um contraste com a aparência e atitudes características do grotesco, são ressaltados os cuidados que o irmão-­‐pederasta demonstrava ter com o corpo, as roupas que usava, o perfume, a preocupação exagerada, tratamento que parece fazer alusão ao mundo superficial e fútil, ressaltada na representação, inclusive, das relações homossexuais.


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No conto "O Unicórnio", o estranhamento, o grotesco e a imagem da degradação do corpo , do início ao fim da narrativa, parece uma metáfora à intranquilidade que é pensar nas questões cruciais do homem, no desassossego da fome, das injustiças, no medo da morte, no medo da vida e nas dúvidas que essas questões nos trazem. A ideia do corpo apodrecendo, como a carne que é comida pelos vermes, que é a pior ideia de morte do corpo, constitui mais uma faceta do grotesco desestruturador. Todos os cinco contos do livro apresentam um forte cunho político, mas "O Unicórnio" é o que retrata mais fielmente a sociedade brasileira, ou qualquer outra sociedade que viva nas condições de um país desigual e violento, pois em momento algum Hilst faz referência a acontecimentos brasileiros. Lembrando que Hilda escreveu este livro no auge da ditadura militar no Brasil. É interessante notar as semelhanças da sociedade retratada por Hilda no livro em 1970, e a sociedade e as questões vividas hoje, em 2019, no Brasil, no cenário político, econômico e cultural. Hoje, 48 anos depois, vivemos questões que são abordadas no conto “O Unicórnio” com muita atualidade, como as questões de gênero, homofobia, pedofilia, desigualdade e intolerância política. A escrita dos textos em Fluxo-­‐floema apresenta uma atualidade e contemporaneidade evidentes.

2.7. "FLOEMA": O CORPO NA MESA DE DISSECAÇÃO "Floema" é o último conto do livro. Koyo, Haydum e Kanah são os três personagens do texto que, de todos de Fluxo-­‐floema, é o que mais confronta a questão de Deus perante o ser humano. O conto mescla a questão religiosa, sob a ótica do amor e ódio ao medo de que Deus possa existir ou não. "Floema" discute a importância dos homens continuarem a acreditar em Deus e em seu amor, ainda que sintam ódio na vida. Nos cinco contos, a questão de Deus, o amor e a morte aparecem recorrentemente. Porém, em "Floema" a questão de Deus é peculiar: Hilst coloca frente a frente o homem, Koyo, e Deus, Haydum, para uma conversa. Koyo, o representante das inquietações humanas, busca desesperadamente um contato


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divino, uma dica qualquer que amenize sua alma. Nesse embate Hilst apresenta um Deus distante dos homens e incapaz de reconhecer as suas criaturas. Através da ironia, esse Deus se surpreende com a pequenez e a inferioridade do homem. Na imagem da dissecação, do corpo fragmentado, Koyo apresenta-­‐se a Deus de forma grotesca e abjeta. KOYO, EMUDECI. Vestíbulo do nada. Até... onde está a lacuna. Vê, apalpa. A fronte. Chega até o osso. Depois a matéria quente, o vivo. Pega os instrumentos, a faca, e abre. Koyo, não entendes, vestíbulo do nada eu disse, aí não há mais dor, aprende na minha fronte o que desaprendeste. Abre. Primeiro a primeira, incisão mais funda, depois a segunda, pensa: não me importo, estou cortando o que não conheço (HILST, 2003, p. 221).

A imagem do corpo no conto "Floema" apresenta-­‐se de forma escatológica. Hilst, em uma descrição vertiginosa em fluxo contínuo, mostra um diálogo entre um homem e Deus através de cortes e incisões, com tipos diferentes de facas. A narrativa caminha por entre vísceras, omoplatas e lagartas. "Tens a faca, abre já te disse." (HILST, 2003, p. 224) Questões tiradas a limpo com Deus, como uma imagem de uma endoscopia, uma câmera que desce pela garganta até o âmago do homem. Koyo é posto em uma mesa de dissecação e glândulas pituitárias são expostas: "é vermelho clara, úmida, escorregadia, tudo escorrega para baixo" (HILST, 2003, p.229). A narrativa desenvolve-­‐se, entre subidas e descidas de diferentes tipos de facas -­‐ de serra, grande, pequena, formão. Koyo pergunta à Haydum, Deus: "Eu te pergunto, Haydum: tu sangras? Eu sim. Tateio e sangro. Koyo sangra por entre seu córtex, arquicórtex, mesocórtex, neocórtex, mais fundo Haydum” ." (HILST, 2003, p. 231) Tudo é vermelho e escorre em "Floema". O conto de Hilst caminha pela anatomia. Koyo tateia e sangra. A linguagem grotesca representa a revolta, o ódio de um Deus indiferente à nossa desgraça final. Koyo blasfema num ímpeto final, quando tudo está para terminar: "Escancaro a boca, me deito, as narinas abertas, grito: porco Haydum, chacal do medo, olha-­‐me na cara, não vês que dia a dia estou secando, que a cadela da noite avança a língua?" (HILST, 2003, p. 231)


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Hilda usa a imagem de uma série de animais carniceiros e carnívoros: “os corvos! vejam, os corvos! A garra, a comida e a morte. Koyo tateia: Estavas na pedra quando te procurei? No dente? Na garra? Usei o punhal. Chacal do medo. A hiena, o lobo e o porco.” (HILST, 2014, p. 236) Koyo se vê preso no meio de uma paliçada -­‐ um tapume feito com estacas fincadas na terra , um obstáculo usado para defesa militar." A floresta é amiga quando se entra armado. Porco Haydum: tentei" (HILST, 2003, p. 235) A imagem de dissecação do corpo é bastante recorrente na História da Arte. Antes de Leonardo da Vinci, artistas e escritores foram queimados na fogueira por profanarem o corpo. Foi a partir do Renascimento que a exploração do corpo, por dentro, foi liberada pela Santa Inquisição. Fluxo-­‐floema é um livro marcado pela imagem do grotesco. Nos cinco contos que compõem a obra, Hilda Hilst apresenta a imagem do corpo de forma abjeta descrevendo vísceras, ossos, excrementos e humores. A presença do grotesco também se manifesta nos contos pela fusão do corpo humano com animais de um bestiário peculiar hilstiano. O chacal, o lobo, o porco, a cobra, o urubu, a vaca, o verme e o corvo povoam este livro vermelho, sangue e cor de carne. O grotesco também aparece na metamorfose do corpo humano em um animal onírico, um unicórnio. O corpo em Fluxo-­‐floema morre e ressuscita, porém, carrega impregnado na pele o cheiro abjeto do sepulcro. O corpo apresentado pela autora estrangula, mata, morre e é deixado aos vermes encostado em uma árvore no meio de uma floresta de bétulas. E por fim, o corpo grotesco é desnudado, e dissecado, e suas partes expostas por entre sangue, tripas e glândulas. O erotismo como componente básico do corpo é representado pelo baixo corporal, através de palavras chulas e de baixo calão, onde a abjeção torna a imagem do corpo algo desconcertante. Hilda Hilst é daquelas escritoras que escrevem a dor, não a dor física, mas a dor da alma que irradia para o corpo. Como Iberê Camargo, que não faz arte com as pontas dos dedos, a arte de Hilst também atinge primeiro o estômago depois o cérebro. Como dizia Iberê Camargo: "Eu pinto porque a vida dói."


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2.8. Inconclusões Fluxo-­‐floema é considerado um divisor de águas na obra de Hilda Hilst. Foi o primeiro livro que a escritora lançou depois de escrever toda a sua obra em poesia e toda a sua obra para teatro. Muito se fala da trilogia obscena que Hilst escreveu nos anos de 1990, quando ela decidiu escrever pornografia. Porém, pode-­‐se identificar a gênese dessa linguagem em Fluxo-­‐floema de 1970, obra que já trazia uma desordem narrativa, uma total anarquia de referências e de gêneros literários e um erotismo diferente do que é o aceitável e dito normal, características de seu trabalho pornô-­‐erótico. Em Fluxo-­‐floema Hilda mistura sua poesia e seu teatro na sua prosa. Pode-­‐se dizer que a escritora apresenta uma prosa poética onde o narrador fala com a plateia. Eliane Robert Moraes21 afirma ser uma prosa degenerada, ou seja, relativa a uma genética indefinida onde a construção da imagem do corpo transita por imagens múltiplas e quase sempre antagônicas. Como na passagem onde a escritora coloca a imagem de uma linda adolescente, magrinha, deitada ao lado, declamando um poema que fala sobre lobos enquanto mexe nos cabelos, ao lado de um personagem seco como um cipó que retorce suas vísceras a fim de extrair seu excremento. Eliane fala de um contato inesperado entre pólos opostos, associando "metafísica à putaria das grossas". Genet, Prust, Santa Tereza D'Ávila, Gertrudes Stein, Guide, são citados ao lado de outros nomes célebres, enquanto os personagens se entregam à praticas sexuais grotescas, violência extrema, humilhações e abjeções, e onde não faltam o assassinato ou o sexo com animais. São exemplos que mostram como a prosa hilstiana pensa, através do grotesco e do abjeto, a representação de um corpo fragmentado na iminência do caos. 21 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/resenha/rs1005200308.htm>


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CAPÍTULO 3 -­‐ IBERÊ CAMARGO: O CORPO TRÁGICO No final da década de 1970, Iberê viu-­‐se profundamente tocado por questões existenciais. Declarando suas fortes ligações com suas raízes, com o desejo de voltar "ao seu pátio", reafirmando que era onde se sentia no colo da mãe, Iberê manifesta o desejo de retornar ao Rio Grande do Sul. Já em 1967 declara em carta ao escultor Xico Stockinger: "o Rio é uma cidade inumana, inabitável. Nada funciona. Vivo trancado no atelier, evito até colegas." (CAMARGO in BERG, 1985, p. 28) Em uma carta Iberê relata sua preocupação com a segurança, e diz que está cursando uma academia de tiro ao alvo. Compra uma pistola Magnum e passa a andar armado. Em 1979 escreve a seu amigo Zoila que "No Rio a vida está insuportável. A polícia mostra-­‐se impotente para reprimir o crime que anda solto pelas ruas. Às vezes o povo explode e faz justiça com as próprias mãos." (CAMARGO in BERG, 1985, p. 28) Como relata Evelyn Berg em artigo Iberê: Medida de espessura: No dia 5 de dezembro de 1980, segundo consta nos autos do processo então instaurado, no incidente de rua perto de seu atelier no Rio de Janeiro, Iberê é agredido e mata a tiros seu agressor, sendo preso em flagrante, inicialmente em Benfica e depois no Regimento Caetano de Faria. Defendido pelos advogados Evandro e Tércio Lins e Silva, foi absolvido liminarmente em sentença confirmada pelo tribunal de justiça, sendo reconhecida a tese de legítima defesa arguida por seus advogados. O juiz Sérgio Verani, autor da sentença absolutória, cita Guimarães Rosa no prefácio da mesma: "O maior direito que é meu -­‐ o que eu quero e sobrequero -­‐ é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim." Iberê é liberado a 30 de janeiro de 1981. (BERG, 1985, p. 28)

Iberê protagonizou a tragédia que marcou sua obra e sua vida. Em uma matéria na revista Isto É, o crítico Olívio Tavares de Araújo escreve: Parece-­‐me hipócrita ou ingênuo pretender que depois disso seja possível olhar para a obra desse grande mestre da pintura brasileira com os mesmos olhos. No mínimo, saber que Iberê chegou a tal paroxismo põe em relevo a complexidade mental que está por trás de sua criação e lança novos contornos sobre seu universo estilístico, sempre sombrio e atormentado. Por outro lado, partindo do princípio de que toda


140 arte é um ato de humanismo e amor à vida (mas até, é um bolsão de resistência da própria vida, um esforço de negação da entropia), a tragédia de Iberê causa particular perplexidade e sofrimento. Que bicho infeliz e imperfeito é o homem -­‐ e que terrível a sua circunstância! Mas, também, que bicho imprevisível e imenso. Num poema comovente, escrevia o português Miguel Torga: "E apesar de tudo sou ainda um homem / um bípede com sala e sentimentos." Pode ser, no caso de Iberê: ainda com grandeza e talento (...) de todos os abstracionistas brasileiros do tipo informal ou gestual, Iberê foi sempre o mais vigoroso, visceral e convincente. (ARAÚJO, 1985, p. 30)

A respeito da tragédia o pintor presta o seguinte depoimento: A vida do pintor é a vida do homem. Um dia a vida do homem-­‐pintor foi sacudida pelos ventos da desgraça. Ferido, conheci o amor e ódio, avaliei a infinita capacidade humana do sublime e do sórdido. Caminhei por caminhos ásperos sem outra luz que a da minha consciência. Neste transe conheci e amei mais os meus amigos. Ao longe ouvi o bramir das ameaças. Hoje sou diferente, não mais aquele que conhecia porque lhe haviam ensinado. Tenho a minha própria experiência, experiência que marca, que é carne e sangue. A hora da desdita galvanizou-­‐me o caráter. Fiz-­‐me rijo como o homem que enfrenta o temporal, o vento. (...) Neste momento de consciência, cessam as contradições. O que importa é o mundo do artista, que é um mundo do homem. Sinto-­‐me seguro, porque vivo no meu mundo. Não estou no mundo dos outros. Isso é meu. Pode não agradar, mas é a expressão do meu mundo. O resto não importa. Sou eu. (CAMARGO in BERG, 1985, p. 29)

O ano de 1980 é uma data peculiar na carreira de Iberê Camargo. Para muitos críticos, é considerado um divisor de águas que marca a volta do pintor à figuração. Nessa época retorna com a esposa Maria do Rio de Janeiro, onde moravam, para Porto Alegre. Se instalam em um sobrado e ao fundo o atelier onde Iberê continua seu embate com a tela e as tintas.

Mas a partir de então começou outro momento na obra do artista, que conforme sua descrição tingiu-­‐se de sangue e dor. Ele retomou a pintura em grandes formatos, e a figura humana ressurgiu em sua obra de modo urgente. (RIBEIRO, 2013, p.26)

Apesar de Camargo fazer pinturas e desenhos abstratos, seu trabalho evidenciava a corporeidade na matéria espessa de tinta óleo, e indicava o corpo do artista em largas pinceladas e manchas. Em depoimento à Icleia Cattani, o pintor ressalta a


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corporeidade da sua pintura: nascimento, vísceras, o corpo da pintura e o corpo do artista: Desejo atingir uma coisa simples, atingir a boa forma com economia de traços. Mas o simples não nasce logo. A matéria, retirar vísceras, para depois ser. Tudo nasce da dor. (CATTANI, 1985, p. 51)

E é a partir daqui, deste recorte na obra de Iberê Camargo, que vou analisar a construção da imagem do corpo, ou seja, a figura humana presente nesta fase do trabalho deste pintor brasileiro dono de uma obra densa, impregnada pelo sentimento de isolamento, drama e desesperança. Entretanto, apresento antes das análises, um recorte da fortuna crítica das obras de Camargo estudadas nesta tese.

3.1. DA CRÍTICA A crítica sempre acompanhou a obra de Iberê Camargo. Desde que o pintor voltou da Europa após seus estudos, seu trabalho esteve presente em grandes exposições individuais, coletivas e bienais. Porém se seu trabalho ainda conservava um certo distanciamento das grandes galerias comerciais, da grande crítica de arte e do reconhecimento dos artistas mais novos, em 1984 ele já estava expondo nas principais galerias do país. Como lembra o artista Carlos Zilio, que foi aluno de Iberê Camargo: É importante destacar que as primeiras telas dessa nova tendência foram expostas no Studio Claudio Gil, no Rio de Janeiro, 1982. Não se tratava de uma galeria considerada entre as mais importantes do Rio. Lembro-­‐me de que na abertura da exposição o público era constituído basicamente de velhos amigos. Iberê ainda não havia sido "descoberto" pela crítica e pelos novos artistas. Contudo, o novo reconhecimento não tardou. Em 1984 ele já estava expondo nas principais galerias do país. (ZILIO, 2003, p. 181)

Neste subcapítulo apresento parte da crítica realizada no período entre 1980 e 1994, que é o recorte que fiz na vasta obra de Iberê para dialogar com o livro de


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Hilda Hilst. Saliento que as críticas que apresento a seguir focam na questão da figura humana e na construção da imagem do corpo nesta fase. Grande parte dessa fortuna crítica deve-­‐se ao acervo de Iberê Camargo presente na Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre, a que eu tive acesso e visitei por duas vezes. Lá adquiri diversos catálogos de exposições passadas e pude ver uma exposição permanente em suas galerias. Outra parte dessa fortuna crítica encontra-­‐ se em diversas publicações de livros e catálogos vendidas em livrarias e sebos. Alguns críticos como Ronaldo Brito, Ferreira Gullar, Paulo Ribeiro, Lisette Lagnado, Mônica Zielinsky e Blanca Brites produziram um número considerável de textos sobre o pintor. A partir de 1980 a obra de Iberê Camargo tomou proporções inimagináveis por parte de crítica de arte, devido aos acontecimentos trágicos ocorridos em sua vida pessoal e devido à sua volta à figuração. Após o dramático episódio em que Iberê se viu envolvido em uma briga de rua, e que resultou na morte do engenheiro Areal, o pintor passa a povoar suas telas de figuras humanas. Isto até o fim de sua vida em 1994. No período anterior existia sim a figuração, mas eram objetos: carretéis, garrafas, pipas, dados, mesas, trabalhados junto a abstração informal . Apesar de que Iberê, em 1979, já havia pintado o quadro intitulado "Pintura", onde aparecem faces humanas em meio a signos, como carretéis e dados. Segundo Lorenzo Mammì: É importante [que essa tela Pintura ] seja de 1979, diga-­‐se de passagem, para que se evite qualquer associação mecânica com os acontecimentos dramáticos de 1980, e determinaram sua volta para Porto Alegre. É evidente que sendo Iberê um artista tão preocupado com o sentido existencial de seu trabalho, aqueles fatos determinaram mudanças também em sua arte. Mas a arte não é tão refém assim da vida. É preciso que uma evolução interna da linguagem abra espaço para as novidades, mesmo quando elas parecem viradas repentinas. (MAMMÌ, 2014, p.285)


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Figura 14 -­‐ Iberê Camargo, Pintura, 1979. óleo sobre tela. 65 x 92 cm

Para Mammì é significativo que Iberê tenha experimentado, mesmo que esquematicamente, a figura humana antes de torná-­‐la explícita nas obras seguintes. Mammi não corrobora a ideia do reaparecimento da figura humana na obra de Iberê. Para ele, o que houve foi o aparecimento da figura humana na obra do pintor. "porque anteriormente Iberê mal se dedicara a esse tema: apenas em algumas telas iniciais, todas, se não me engano, da década de 1940". (MAMMÌ, idem) Para Ronaldo Brito assim como para Lorenzo Mammì, o "retorno" de Iberê Camargo à figuração humana nos anos de 1980, muito pouco ou quase nada tem a ver com um retorno. Brito ressalta também que:

A exceção de alguns bons auto-­‐retratos de meados de 1940, poucas telas esparsas, ao longo dos anos, apenas confirmam a regra: a aventura de Iberê Camargo nunca havia se concentrado sobre a figura humana. (BRITO, 2005, p. 235)


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Figura 15 -­‐ Iberê Camargo, Retrato de Figura 16 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1942. Lápis Estácio Kramer da Luz, 1947. óleo sobre conté sobre papel. 29,6 x 31,3 cm tela, 91 x 63 cm

Em 1994, para o caderno especial "Mais!" do Jornal Folha de São Paulo, Mário César Carvalho e Augusto Massi são enviados a Porto Alegre para uma entrevista com o pintor. Massi questiona a relação do aparecimento da figura humana com a tragédia de 1980: Iberê: Não. O que aconteceu comigo é claro que marca, que machuca, que dói, e é horrível, mas a vida é essa surpresa, é o inesperado. As coisas marcam mas continuam caminhando. Folha-­‐ Isso não trouxe marcas na pintura do senhor? Iberê-­‐ Não, acho que essa tristeza sempre existiu. Sempre foi triste foi solitária. Folha -­‐ Tem crítico que diz que a pintura do senhor renasceu após a tragédia de 1980. Maria (mulher de Iberê) -­‐ Antes da tragédia o Iberê já estava inserindo figuras tinha um quadro, inclusive, eu acho que era o teu retrato. Folha-­‐ A volta a figura não foi determinada pela tragédia? Iberê-­‐ Quando eu fazia os carretéis, aqueles espaços, aquele chão trabalhado, eu estava muito impregnado da lembrança da terra, dos quintais, das coisas que estão sepultadas, que a terra cobre. Eu sentia fisicamente, vivenciava as coisas da minha cabeça. Nunca fiz uma forma gratuita, um gesto em vão. Fiz sempre uma coisa ligada a uma experiência muito profunda minha. Este é o suporte da minha pintura esse contato direto com uma realidade, que é uma realidade subjetiva, mas que é tão real quanto essa mesa. Mas a gente escreve uma história e faz uma premonição, não sei.22

22

Iberê Camargo o último dos pintores. Folha de São Paulo: Caderno Mais! - Domingo, 6 de março de 1994. (Arquivo do autor).


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Decerto, nessa fase da vida do homem-­‐pintor, como Iberê se auto referia, acontece uma busca pela sua memória, uma fatura de sua vida. Lorenzo Mammì acredita que dados e carretéis, presentes na obra de Iberê a partir de 1980 não são apenas "lembranças de infância, mas citações de fases anteriores da pintura de Iberê, restos cristalizados de gestos antigos." (MAMMÌ, 2014, p. 285) A temporalidade e a memória sempre foram questões centrais na obra de Iberê, mas Mammì ressalta que, após 1980, "remexer na matéria pictórica comporta trazer à tona fragmentos de memória já enrijecidos antes mesmo de sua feitura." (MAMMÌ, 2014, p. 287) São fragmentos autobiográficos que o próprio Iberê esclarece: "Carrego comigo o fardo do meu passado... Os quadros que pinto são visões que breve serão os fósseis semeados à margem de meu rastro" (LAGNADO, 1994, p. 54) O crítico Ronaldo Brito ressalta essa arqueologia na obra de Iberê: No limiar da modernidade, Goya antecipou os horrores à espera da imaginação livre moderna no ato mesmo de exorcizar os persistentes fantasmas feudais. Iberê Camargo, no curso da modernidade tardia, constata a impotência da imaginação criativa perante a enormidade opaca da realidade contemporânea -­‐ só lhe resta escavar e escavar a essência histórica da pintura até ressuscitar a sua atualidade. (BRITO, 2005, p. 33)

É o que Flávio de Aquino, em uma matéria intitulada "Iberê Camargo: Quadros de uma tragédia", para a Revista Manchete, Rio de Janeiro 1981, escreve acerca dessas camadas de memória das figuras presentes na obra de Iberê: Assim como houve a volta às ruas azuis e sombrias, o retorno dos carretéis, que marcaram a fase de Iberê no final dos anos 1950. Mas então ele sempre afirmava que tais carretéis eram reminiscências de sua infância. Agora eles se transformam em figuras femininas esquematizadas povoando os seus quadros. São mulheres angustiadas, crucificadas, de braços erguidos. Às vezes, se transfiguram em taças ou em ossos humanos. Olhos enormes ou cabeças desmesuradas chamam atenção no meio dessas formas. As mulheres carretéis são jogadas de um lado para o outro, mas conseguem se equilibrar no vendaval da composição de azuis profundos, pinceladas espessas que trilham a tela com espátula, como arados lavrando a terra. (AQUINO, 1985, p. 87)

O crítico Frederico Moraes disserta para a imprensa carioca em agosto de 1984:


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Os dados de sua nova pintura foram então lançados, os carretéis voltaram a se movimentar, mais fantasmagóricos do que nunca, aqui e ali surgem cruzes, setas, sinais, losangos, um ex-­‐voto, um rosto que se projeta num perfil espasmódico, os signos se metamorfoseiam: dado-­‐carretel-­‐fantasma -­‐ um puro sinal linguístico ou gráfico significando interdição ou perigo. Os objetos e figuras traçadas em branco, como um grafitti nervoso, à Penck, à Schanabel, à Salle, arqueológico ou pré-­‐ histórico, sobre a pasta de tinta. Mas também, aqui e ali, neste rio noturno, surgem nesgas de luz: pequenos toques líricos de azul, amarelo ou verde, transparências. Iberê é hoje uma artista possuído por verdadeira compulsão de pintar -­‐ mas ao final, o que emerge, mais do que o drama do artista é o drama da própria pintura. (MORAES, 1985, p. 89)

Para Ronaldo Brito assim como para Lorenzo Mammì, o retorno de Iberê Camargo à figuração humana nos anos de 1980, muito pouco ou quase nada tem a ver com um retorno. Brito ressalta também que: A exceção de alguns bons auto-­‐retratos de meados de 1940, poucas telas esparsas, ao longo dos anos, apenas confirmam a regra: a aventura de Iberê Camargo nunca havia se concentrado sobre a figura humana. (BRITO, 2005, p. 235)

Lídia Vagc, em 1984, escreve para a Revista da Gávea, nº1, e destaca o descompromisso das últimas telas de Iberê com o belo e com o decorativo: As obras produzidas segundo o impacto do inédito levam tempo para serem captadas pela percepção vigente. A positividade de Iberê extrapola o grande domínio técnico que sua obra exige e revela: ela não pretende o belo, porém contém um belo, ou melhor, guarda em si "o belo e a fera ". Será inevitável, iniludível que lhe dá a compulsão do pintar e produz o outro do belo. (VAGC, 1985, p.89)

E completa: Por isso o artista se coloca de frente, de perfil, como duas silhuetas que se entreolham, no branco e no preto, no positivo e no negativo, como ícones autobiográficos. O pintor que se vê como o indivíduo que sofre transfigurado pelo trágico, mas que tem como tarefa inesgotável a pintura, o instrumento do seu pesar. (Idem)


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Figura 17 -­‐ Iberê Camargo, Face, 1984. Óleo sobre tela, 40 x 57 cm

Figura 18 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1984. Guache, 56 x 76 cm


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É também a partir de 1980 que a crítica se mostra chocada com a potência das pinturas de Iberê. Antes disso, elas estavam mais para agradar o público burguês do que chocá-­‐lo. Decerto o expressionismo de Iberê Camargo, até então, tinha se mostrado coerente com o expressionismo abstrato em voga no mundo e com o sucesso de Willen De Kooning e Jacson Pollock na América do Norte, nos anos de 1950. Porém, nas últimas pinturas, precedidas do seu acontecimento trágico, suas obras passaram a ir na contramão do bom gosto vigente. Como o próprio pintor afirmou na entrevista para a Folha de São Paulo em 1994: "Não sou um decorador, sou um homem que se expressa. Expresso os meus e os teus sentimentos. Acho que isso é a pintura."23 Ronaldo Brito no texto "O eterno inquieto" para o jornal O Globo, a 5 de maio de 1987: As últimas telas de Iberê Camargo assustam e encantam, ao mesmo tempo. Assustam pela sobriedade terrível com que põe em evidência o drama do sujeito moderno, aparentemente no estágio final de sua dissolução; encantam pela qualidade da matéria pictórica que resistiria, paradoxalmente, a todas as violências e degradações. Diante do presente incerto e conturbado, onde há dúvida "nuclear" quanto ao futuro do mundo, a resposta do artista é urgente: os seus gestos decididos e abruptos se precipitam, se incrustam imediatamente na superfície da tela e criam um espaço denso, calcinado, intensamente pessoal e singular. Massa de energia, quantum imponderável de real, em meio à diluição generalizada. A rigor, essas pinturas não se oferecem a contemplação, sim a absorção. A começar pela escala enorme, elas existem para ser experimentadas, pelos poros, com o corpo todo. (BRITO, 2005, p. 224)

Também em outro texto "Destino de Pintura", Brito destaca o tom agônico das pinturas de Iberê pós 1980: Retomar a figura humana, reelaborá-­‐la obsessivamente, raspá-­‐la e refazê-­‐la dez, cem vezes, repassar a sua história enquanto a forma por excelência do ocidente é justamente a tentativa de reviver a sua agonia primitiva. E assim, saturadas todas as etapas, e aproximar-­‐se diz uma verdade primordial. No mesmo espírito radical, a terra sumária, o anti ambiente a que essas figuras pertencem, sugere algo como o primeiro dia depois do fim do mundo. Nessa versão conclusiva do Sul, uso a enormidade elementar, nenhum excesso é permissível, paisagem básica reduzida a

23 Idem


149 traços essenciais. E o brilho ácido, terroso, plúmbeo ou quase púrpura, desmente a naturalidade do real; no limite, parece duvidar que o homem moderno consiga resgatar qualquer gênero de conaturalidade. (BRITO, 1994, p. 93)

Nestas palavras, Brito foca na questão do expressionismo na obra de Iberê. Obsessão, refação, agonia primitiva, verdade primordial, terra sumária são vocabulários típicos da poética expressionista na qual Iberê se insere. Porém, não se trata de um expressionismo importado. Segundo Brito: Nessa modalidade latina de expressionismo, porém, estão curiosamente ausentes dois outros impulsos básicos do expressionismo nórdico, flamengo ou germânico -­‐ a religiosidade e a imaginação. Contra a dissipação dos valores, iniqüidade da vida, Iberê não propõe um mito de redenção, tampouco recorre a liberação do imaginário. Justamente parece se aferrar à simplicidade e casualidade diárias e recusar tudo o que estiver fora do alcance das mãos e dos olhos. Para transfigurá-­‐las, é claro. Quase como se a tarefa do pintor fosse a de salvar o momento íntegro, o instante vivo, do fluxo de irrealidade corrente. Por isso talvez a inesperada participação neste universo trágico, de humores diversos e irreverentes, as ironias e os sarcasmos eventuais, a aceitação do ridículo, enfim. (BRITO, 2005, p. 225)

Ou seja, enfim o grotesco. O expressionismo de Iberê Camargo destila-­‐se no grotesco ao abordar o universo trágico, irônico, sarcástico e ridículo. O pintor evidencia, com imenso grau de virtuosismo, a miséria e a demência do presente e capta a fugacidade da vida e o peso da angústia de viver, inerente à nossa finitude. Neste subcapítulo procurei mostrar uma pequena parte da vasta fortuna crítica da obra de Iberê Camargo. Enfoquei exclusivamente o que diz respeito à construção da imagem do corpo, à figura humana, presente nos textos críticos da época. São textos escritos no calor da produção das obras de 1980 a 1994, ano da morte do pintor. A seguir apresentarei outros textos relevantes sobre o assunto porém são textos póstumos, que certamente apresentam outras abordagens.


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3.2. PINTURAS DE 1980-­‐1994: CORPOS DENSOS A pintura, no cenário artístico da década de 1980, no Brasil e no exterior, ressurge dos escombros e ruínas como meio de expressão privilegiado. Isto depois de uma intensa crítica à pureza dos meios, tendo a pintura como o alvo principal, depois do discurso da morte da pintura, da desmaterialização da obra de arte levado às últimas consequências pelas vertentes conceituais da produção artística e também passando pelo próprio questionamento da definição de arte. Sem contar a demanda participativa por parte do expectador na obra de arte, a demanda por projetos coletivos, a necessidade do engajamento político a contracultura que caracterizaram os anos de 1960 e 1970. Para citar um único e significativo exemplo, a exposição "A new spirit in painting", grande mostra realizada no início de 1981 pela Royal Academy of Arts de Londres, sinalizava em seu catálogo que a arte deveria retomar o "gozo dos sentidos", a sensualidade da matéria plástica/visual -­‐ em uma franca crítica ao que os curadores consideravam excessivo asceticismo provocado pelas vertentes conceituais e minimalistas -­‐ sob o risco de perder seu ímpeto criativo. (CARVALHO, 2014, p. 65)

Até 1980, as pinturas de Iberê Camargo dialogaram com o abstracionismo informal o que pode-­‐se observar na pintura a seguir (figura 19). Depois de 1980, as pinturas de Iberê Camargo podem facilmente ser associadas ao neo-­‐expressionismo e à transvanguarda italiana. Nomes como Picasso, Roberto Matta, Baselitz, Markus Lüpertz, Francis Bacon, Lucian Freud, Balthus, artistas que, tal como Iberê Camargo, jamais haviam abandonado a pintura.


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Figura 19 -­‐ Iberê Camargo, Espaço com figura III, 1965. óleo sobre tela, 130 x 184 cm

Os artistas dessa época resgataram o prazer de pintar. Contestavam o que os movimentos conceituais e minimalistas tinham posto em cheque, como os conceitos canônicos de arte, sua função estética, autenticidade, unicidade, reprodutibilidade e a própria marca da presença do artista na obra. Esses fatores propostos pela arte conceitual e minimalista afetaram irreversivelmente a hegemonia da pintura no campo da arte. Camargo se mostrou resistente a experimentalismos fora da pintura, a linguagem que o homem-­‐pintor escolheu para se expressar. Toda a construção de sua paleta de cores sombrias dos anos 1960, assim como o vigor das cores dos anos de 1970, estão presentes nas figuras humanas das telas a partir de 1980, onde Camargo incorpora o embate físico entre pintor e tela associando o ato pictórico, a performance corporal da pintura, à energia criativa. Camargo pintava uma tela de dois metros por quatro em 15 horas. Era um verdadeiro duelo onde só um sairia


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vivo: ou o pintor ou a tela. Camargo muitas vezes usava uma espátula que mais parecia uma faca. Aplicava tinta, raspava, refazia, aplicava mais tinta, raspava e aplicava, muitas vezes até o fim. Muitas telas foram cortadas com o estilete ao final de uma batalha perdida. Avança para a tela em branco. Desarranjadamente surgem os primeiros trações vincados pela ponta grossa do lápis. Melhora o corpo. Sobrancelhudo. Olhos pequenos. A tela que é oferta. Espichadão que pincela curto. Parece uma caricatura bem feita por Dürer. Calças frouxas por trás. Arte por explodir. A personagem da tela é seu rosto. Sugado. Arfa. Funga. Cheiro de tinta. Cheiro de tinta, cheiro que incha os pulmões. Parece um bicho doente. O pintor[....] Com os pés inchados, subia na escadinha. A escadinha providencial para retocar telas tão altas. Mãos firmes sem tremeliques. Suas mãos são firmes. Enfia sem dificuldade à esquerda na paleta. Traz uma pasta de tinta. Ele subindo na escada para fazer um arremate. Grande Pintor inteiro afastado da tela. Busca o fundamento. A cor. Pincela, pincela, raspa e pincela e a mão é firme. Renova o corpo. Se equilibra. Impulsa. Pincela curto, longo, raspa e nova pincelada. Esbraveja, usa o esfregão, pano, funga, calça caindo, bunda aparecendo, está lá o homem pincelando de costas. Faz azul. Usa a desbastadeira, sua ferramenta manual. Ajusta a cor. Usa azul -­‐ e divide por 2; o traço em busca de um tom certo de grená. Pincela curto, pincela, pincela. Pára. Respira, troca de mão, renova a tinta. Olha, não gosta, azeda, esbraveja, arremata, aplaina e pincela. Pinta. Espichadão assim e o serviço aparece. Tela de bêbado. Tela às avessas. Tela de Iberê começa por cima. Resulta suja a tela que contempla com os olhos cerrados, cerrados, cerrados... É seu rosto. Ah, essa Fúria de talento! (RIBEIRO, 1996, p.46)

Paulo Ribeiro conviveu com Iberê Camargo de 1991 a 1993. Frequentou seu atelier e sua casa e, entre conversas espontâneas e entrevistas, presenciou diversas vezes o pintor trabalhando. Em uma dessas conversas, Iberê confessa:

Sou um Dom Quixote. Troque-­‐se lança pelo pincel, o Escudo pela paleta, os moinhos pelas telas, e lá está a mesma fúria, o mesmo idealismo, a mesma silhueta magra e grisalha." (CAMARGO in RIBEIRO, 1996, p.46)

Iberê Camargo, como Hilda Hilst, construiu uma obra. E uma obra é o conjunto de todos os trabalhos desenvolvidos em uma vida. Um processo. A figuração humana que surgiu na obra de Iberê Camargo neste período é fruto de um processo. Como apresentei na pintura intitulada Pintura de 1979, (Fig. 14), já percebe-­‐se o surgimento da figura humana de forma esquemática no canto direito da tela. As


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cruzes, nesta tela, começam a transmutar-­‐se em rostos. Tanto nesta pintura como em todo o trabalho de Camargo, há um processo contínuo e ininterrupto. É certo que as pinturas de Iberê Camargo realizadas entre 1980 e 1994, ano de sua morte, contêm uma potente presença acerca da construção da imagem do corpo, como nunca visto antes em toda sua obra. As pinturas de Iberê não são de fácil acesso ao expectador. São pinturas que a priori não buscam o belo, a decoração. O pintor não se importa com o realismo de uma construção da imagem do corpo. Ele distorce a figura ao máximo em busca da expressão. Como explica Jacques Leenhardt: A figura assume ares grotescos, carnavalescos, como num teatro medieval e cruel. Os recursos expressivos de uma pintura apressada, violenta, despreocupada com a anatomia, despreocupada com a correção da anatomia ou com a semelhança constituem a base do seu novo estilo figurativo. Pensamos então em artistas como De Kooning ou do Dubuffet que sempre privilegiaram a expressividade burlesca, atentatória à bela figura ligada à tradição humanista. (LEENHARDT, 2014, p. 170)

Figura 20 -­‐ Iberê Camargo, Ciclistas no Parque da Figura 21-­‐ Iberê Camargo, Série ciclistas, Redenção, 1989 (detalhe). óleo sobre tela, 95 x 212 cm 1990 (detalhe). Óleo sobre tela, 145 x 185 cm

O conjunto de pinturas deste período impressiona pela expressividade e peso das figuras. As telas trazem em seu corpo pictórico tanto desencanto, ao apresentar figuras abrutalhadas, corpos que ganham carnalidade na superfície fria de cores e texturas, que mais lembram um cenário pós-­‐apocalíptico. As pinturas de Iberê


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Camargo adquirem uma atmosfera trágica radicalizando a experiência do corpo e da finitude. O que vem em cena é a presença da morte, o confronto direto com o corpo-­‐tempo que escorre sem cessar. Mas não há lugar para o esmorecimento. O pintor luta com a sua finitude com pincel na mão. O que importa nestas últimas pinturas é o corpo a corpo entre pintor e tela. Há desespero, mas há também potência sensorial, capacidade de dar a ver a força que brota da massa de tinta. Essas figuras trazem algo do que Lionello Venturi viu nos últimos retratos do jardineiro pintados por Cézanne: o corpo aí é carne, a carne é vida e a vida é assustadora, sensual e finita. (OSORIO, 2015, p. 17)

Seus personagens transitam pelo campo do grotesco ao exprimirem solidão, abandono e morte envolvidos por amplos espaços de pintura. Os corpos são marcados pelo vulgar, pelo grotesco e o violento. Com seu aspecto descarnado as figuras apresentam uma certa indefinição de gênero. Não sabemos ao certo se é um homem ou uma mulher, sabemos que é uma

Figura 22 -­‐ Iberê Camargo, No vento e na terra II, 1992. Óleo sobre tela, 200 x 283 cm


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criatura. Porém, essa vulgaridade violenta da aparência dos personagens são apresentadas no "mesmo espaço refinado da pintura informal que comentava com desenvoltura os rumos da escola de Paris no pós-­‐guerra." (ZIELINSKY, 2014, p. 55-­‐ 56) Ou seja, Iberê Camargo contrasta em suas obras o sublime e o grotesco, postos lado a lado em um mesmo espaço poético. Como explica Paulo Ribeiro: Portanto, Iberê, trabalhando a deformação da figura, com uma ligação evidente com a arte abstrata e expressionista e a noção de fantasia intelectualista de herança baudelairiana, corresponde à ideia de Kayser de que o grotesco é a forma da modernidade enfrentar o vazio metafísico e exorcizar as forças sombrias que o assombram. (RIBEIRO, 2010, p.407).

Nestas pinturas, o pintor lança mão de imagens de corpos bizarros, descarnados, na terra ou expondo suas vísceras e seus ossos. Com esse procedimento Camargo se alinha às tendências do século XX, aproximando-­‐se dos conceitos de Wolfgang Kayser (1986) e Mikhail Bakhtin (1999) acerca do grotesco. Assim, nas suas pinturas, destaca-­‐se o drama e a tragédia. O próprio procedimento do seu fazer pictórico alinha-­‐se ao grotesco, quando o pintor se vale de um automatismo psíquico, num fazer e refazer como se estivesse em um transe, sem obstáculos e sem convenções pré-­‐estabelecidas. Iberê propõe uma nova interpretação da figura, sendo um abstrato informal dentro do figurativismo. Segundo Ribeiro, nesse paradoxo pode-­‐se ver a relação de Iberê com a tradição da estética grotesca: A possível ligação do estilo de Iberê com o automatismo, sabe-­‐se, por outro lado, como ele meditava seus quadros. Essa informalidade dentro do figurativismo é, na verdade, um capricho disciplinado de um homem movido por forças invisíveis, por impulsos quixotescos. Ansiedade e tensão entre a mão que busca e a tela em branco. (Idem, p. 312)


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Figura 23 -­‐ Iberê Camargo, Manequim, 1986. Figura 24 -­‐ Iberê Camargo, Diálogo, 1987. Óleo Óleo sobre tela, 42 x 30 cm sobre tela, 42 x 30 cm

As pinturas da fase final de Iberê tem uma temática alinhada à estética do grotesco desenvolvida por Wolfgang Kayser em seu livro O grotesco: configuração na pintura e na literatura. (1986). O livro aponta para a criação artística de um mundo estranho, inspirado pelo temor à opressão e à violência. Para Kayser "o grotesco é a manifestação do fantasma interior do artista que representa o mundo através de uma expressão deformativa." (RIBEIRO apud KAYSER, 2010, p. 228) Como explica o próprio Iberê: O Grego tinha um ideal de beleza. Todo esforço, para ele, era plasmado numa imagem que contivesse purificação em beleza. E no sentido de plasmar uma verdade, e que dói, porque as figuras que pinto, de certo modo, são grotescas na forma. Não são Vênus. Pinto nus, mulheres, mas na verdade ele é quase um animal, comum, só que ele contem essa espiritualidade, não digo satânica, sofrida, de vida. Não há um ideal de beleza, mas o ideal de uma verdade pungente e sofrida que é minha vida, é tua vida, é nossa vida, nesse caminhar no mundo. (CAMARGO in LAGNADO, 1994, p. 28)


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E prossegue: Não tenho uma ideia preconcebida, mas quando encontro a figura ela se revela nesse aspecto grotesco, não é uma coisa gratuita, a coisa está lá também. Essa associação de meu sentimento, e é muito difícil discernir o que sou eu e o que está fora, não sei se é uma visão que eu tenho ou se aquilo existe de fato. (Idem, p. 30)

As forças invisíveis e estranhas que marcam a imaginação de Iberê Camargo identificam-­‐se com uma linhagem deformadora que nasce da necessidade de expressão. Iberê se vale da deformação e da transfiguração para tornar estranha a realidade que o atormenta. Essa tendência à deformação, à estética do grotesco inclui a obra de Iberê Camargo num grupo de artistas de períodos diferentes porém com alguma irmandade poética: Lembremos aqui daquela tendência à metamorfose de que fala Bosi, e do poderoso elenco de artistas, Bosch, El Greco, Goya, Dalmier, Ensor, Van Gogh, a caminho da deformação. Lembremos, sobretudo, da divisa de Kandinsky: "Ah, os procedimentos tão sagrados, a satisfazer a necessidade interior." (RIBEIRO, 2010, p.397)

Camargo denominava essas últimas telas de realismo grotesco, em que a realidade aparece somente como pano de fundo para a transfiguração do primeiro plano. Uma transfiguração disforme apresentada em forma de feiura. Como no caso das pinturas e desenhos da série Idiotas, com figuras sentadas num plano ampliado e desolador, de uma frontalidade constrangedora. Como explica Lisette Lagnado: Somos encarados por uma ignorância que sorri, a "risível humanidade" de Baudelaire. O sorriso conjugado à feiura do corpo que o ostenta nada mais é que o triunfo do disforme, da inumanidade progressiva de um mundo que se alimenta de aparências em detrimento de uma justificativa ética. (LAGNADO, 1994, p. 115-­‐116)


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Figura 25 -­‐ Iberê Camargo, A Idiota, 1991. óleo sobre tela, 155 x 200 cm

Paulo Pasta, em seu artigo Memória e matéria na pintura de Iberê Camargo (2003), explica que para agir no presente o pintor tinha sempre que equacioná-­‐lo com a memória, como se o presente só se constituísse nessa possibilidade de lembrar. A forma para Camargo só conseguia ser de fato expressiva quando vinda de uma depuração da memória. Esse procedimento baseado na experiência conduzia o pintor à transfiguração, palavra pela qual tinha muito apreço: A transfiguração seria algo situado sempre atrás das aparências, espécie de síntese concedida por filtragem, trazendo ao artista um real insuspeito, longe de um simples testemunho visual ao alcance de quem quer que seja. O novo, então sempre surgiria do passado, ou seria o próprio passado revivido. A identificação entre lembrança e emoção estética fica nítida, e parece-­‐me que quando essa identificação se faz de


159 modo consciente e deliberado é que Iberê se transforma em um grande artista. (PASTA, 2003, p.115)

Iberê Camargo transitou por diversas modalidades expressivas em sua produção. Trabalhou com a pintura, o desenho, a gravura e também com texto escrito, com a mesma desenvoltura e potência em todas as linguagens. Não se tratava de linguagens paralelas ou independentes, estava tudo interligado. Todas as características expressivas presentes nas pinturas, estão também presentes nos desenhos , gravuras e também nos textos. Outra particularidade que também pode-­‐se encontrar nos trabalhos de Iberê Camargo é a performance. Não no sentido da performance contemporânea, mas no sentido do uso do próprio corpo do artista na produção de seus trabalhos. Um procedimento muito próximo da action-­‐painting24. O pintor usava todo o seu corpo para pintar.

Figura 26 -­‐ Iberê Camargo, 1994. Serigrafia Figura 27 -­‐ Iberê Camargo, 1994. Gravura em metal

24

Pintura de ação [action painting]: descarta a noção de composição, ancorada na identificação de pontos focais na tela e de partes relacionadas. Esta obra de arte é fruto de uma relação corporal do artista com a pintura, nasce da liberdade de improvisação, do gesto espontâneo, da expressão de uma personalidade individual. As influências do automatismo surrealista parecem evidentes. Aí estão a mesma ênfase na intuição e no inconsciente como fonte de criação artística, embora permeada por uma forte presença do corpo e dos gestos. Disponível em: < http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3785/expressionismo-abstrato >


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Figura 28 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1993. guache e lápis stabilotone sobre papel, 50 x 70 cm

Iberê Camargo também se expressava pela escrita. Sua ligação com a literatura remonta ao tempo de escola. Além disso, trocou cartas com Érico Veríssimo por toda a vida. No Rio de Janeiro frequentou o Café Vermelhinho, ponto de encontro da intelectualidade, onde o pintor conviveu quase que diariamente com Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Seu amigo e mecenas, Luiz Aranha, foi um dos grandes incentivadores de Graciliano Ramos e também responsável pelo lançamento de Vinícius de Moraes no mundo literário. Camargo escreveu continuamente artigos para jornais, com temas que iam desde a baixa qualidade das tintas brasileiras a críticas à ameaça nuclear em Angra dos Reis. Era leitor refinado. Além de Dante, tinha como autores prediletos Dostoiéviski, Tolstói, Balzac, Faulkner, Thomas Mann, Kafka, Goethe e Cervantes. Dessa eclética seleção, era capaz de passar dos poemas do português José Régio às descrições políticas e apaixonadas de Grécia, feitas por Henry Miller em O colosso de Marússia, lido em italiano. Entre os nacionais, Machado de Assis -­‐ e nas suas estantes apareciam exemplares de Jorge Amado, especialmente um ABC de Castro Alves, em alemão, cuja paisagem de


161 capa tinha a marca do seu punho. A biblioteca continha ainda um razoável número de obras específicas de estética, história da arte, além de livros com reproduções dos grandes mestres. (RIBEIRO, 2010, p. 224)

Camargo sempre foi, além de um grande leitor, um escritor assíduo. Como em suas telas, nos seus escritos encontram-­‐se dores e angústias, revelando pleno domínio da técnica literária. Segundo Paulo Ribeiro, o legado que Iberê Camargo nos deixou em forma de textos "demonstram que a pintura nos privou do fabulador, de um escritor muito interessante." (idem) Em suas expressões, seja pictórica ou literária, Iberê sempre buscou a sensação, o sentimento que emana das coisas e corpos. Iberê não buscou uma arte em que bastasse apenas a união do pensar e ver. Iberê também buscou o sentir. O que Alfredo Bosi, acerca do conceito de representação e estilização, chama de imaginação construtiva, pela qual o trabalho do artista se desenvolve, ao mesmo tempo, no plano do conhecimento do mundo pela mímese, e no plano original de construção de outro mundo, ou seja, a obra. (BOSI, 1985, p.36) Segundo Bosi, este encontro entre a natureza e o sonho, quando se deu em Cézanne, Gauguin e Van Gogh, criou linhas de forças que ataram indissoluvelmente o gesto plástico aos movimentos da paixão e ao inconsciente, precedendo as aventuras do surrealismo e do expressionismo. Na obra de Camargo é evidente a presença do conceito de intermidialidade, quando o artista transita com maestria por entre linguagens de códigos diferentes como a palavra e a imagem. Paulo Ribeiro, em seu estudo, aponta a afinidade entre o texto e a produção pictórica de Camargo, e destaca o grau de picturalidade presente no texto do pintor. Ou seja, como Iberê escrevia com imagens e pintava com palavras. Segundo Ribeiro, essa relação fronteiriça de códigos poéticos, os limites das mídias, tinham como fio condutor a estética do grotesco. Imagens grotescas e palavras grotescas. Em suma, são construções metafóricas e alegorias das quais se serve Iberê em suas memórias, em consonância com a busca intuitiva de imagens do fazer e criar, agora imersa no processo de uma forma que procura dar conta igualmente de uma poética textual; ele constrói de fato imagens que se assemelham, tanto plástica como textualmente. O processo criativo de Iberê evidencia uma relação de afinidade entre a palavra do poeta e a visão do pintor. Essa capacidade de conjugar o que há de similaridade entre a pintura e a escrita. (RIBEIRO, 2010, p. 298)


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Ao dialogar diferentes códigos de linguagem, como palavra e imagem, no corpo da sua obra, além de diferentes técnicas pictóricas como a gravura e o desenho, Camargo abre um leque regido pela multiplicidade, no qual podemos notar uma multimidialidade, ou seja, Iberê se vale de múltiplas mídias no escopo poético de sua obra. Essa picturalidade é explicada por Márcia Arbex: No século XX, traços comuns à literatura e às artes plásticas podem ser verificados: rejeição da mimese e consequente ênfase no significante; decomposição do objeto em partes, nos textos futuristas ou cubistas; simultaneísmo, deslocamento e distorção dos planos presentes na pintura e que surgem na literatura com o rompimento da continuidade espacial e temporal; princípio da colagem e montagem. (ARBEX, 2006. p. 57)

Na obra de Iberê Camargo a intermidialidade acontece sob a forma da écfrase. Que é quando o artista transpõe uma imagem pela escrita e vice versa em um fluxo ininterrupto, sem hierarquias. Ou seja, na écfrase a transposição poética busca transferir a imagem para a escrita, exprimindo verbalmente as mesmas emoções provocadas pela pintura. No caso de Iberê, ao transpor de sua obra de pintura para o texto e do texto para a pintura ocorre uma certa independência de cada meio. Segundo Leo H. Hoek: Não somente a obra de arte, mas também o estilo de um artista ou de um movimento artístico pode se tornar o objeto da transposição de arte: o impressionismo, por exemplo, é transposto para a "escrita -­‐ artística" dos Goncourt ou para a poesia de Verlaine; Kokoschka tem manifestado o expressionismo dos seus quadros em seus próprios dramas, e a escrita de Gertrude Stein se apresenta como uma transposição cubista. Notadamente, os artistas dotados de um "duplo dom" como Blake, Hugo, Strindberg ou Van Gogh buscam de bom grado realizar uma transposição intersemiótica. (HOEK, 2006, p. 173)

Como por exemplo no conto "Hiroshima" (CAMARGO, 2009), onde Iberê Camargo narra a saga do homem-­‐pintor que sofre as consequências físicas devido à radiação da bomba nuclear soltada pelos americanos naquela cidade do Japão. Para que se possa compreender o conto na sua totalidade, é preciso vislumbrar como a tragédia coletiva da bomba de Hiroshima se mescla à tragédia individual do câncer real do pintor. Alguns sintomas da doença e efeitos colaterais do tratamento de


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radioterapia são aproximados por Iberê à consequências da bomba, como a secura na boca: "Sono intranquilo, acessos de tosse, respiração opressa, boca ressequida. Várias vezes, à noite, se ergue do leito para molhar a boca. Passa horas e horas insone a escutar o silêncio." (CAMARGO, 2009, p. 39) Uma aproximação que extrapola o terreno literário e dialoga com o pictórico, num exemplo de écfrase, como no trecho do conto de Iberê: as mãos do homem-­‐pintor tocaram uma parede de terra úmida que deteve seus passos. Sentiu que de súbito o túnel se estreitava, ameaçando sufocá-­‐lo. Palpou o chão e, deitando-­‐se de bruços, rastejou como um réptil, procurando retroceder no caminho, fugir. Sentiu sufocar-­‐se. (CAMARGO, 2009, p. 40)

No trecho, pode-­‐se perceber uma aproximação com a tela "No vento e na terra I" onde a figura na tela está deitada de bruços na terra arrasada e sumária.

Figura 29 -­‐ Iberê Camargo, No vento e na terra I, 1991. óleo sobre tela, 200 x 283 cm


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Em outro trecho do conto "Hiroshima", a figura da tela parece ouvir as mesmas palavras escutadas pelo homem-­‐pintor:

O homem pintor não sente mais o corpo, que por fim se aquieta. A noite desce, uma noite diferente, espessa, impenetrável, mas leve como uma mortalha. Dorme, dorme, foi a última palavra que ele ouviu. (CAMARGO, 2009, p. 41)

Esta tela exprime claramente a presença do grotesco na obra de Iberê Camargo: a deformação do corpo, a morte representada pelo corpo caído e pela terra, a solidão e o medo de viver em um mundo devastado. Nas palavras do próprio pintor acerca desse jogo duplo entre palavra e imagem, numa entrevista a Lisette Lagnado: LL: Para você que escreve também, qual a função da literatura? IC:A literatura, como as demais artes, recria e enriquece a vida. Não me satisfaz o que eu escrevo. Sempre esbarro no inatingível. Para mim, escrever é pintar com palavras. LL: A palavra e a imagem. Qual das duas é mais autêntica? IC: Como dizer que a noite é mais autêntica que o dia? (LAGNADO, 1994, p. 56)

Paulo Ribeiro, em sua pesquisa acerca da relação texto e imagem na obra de Iberê Camargo, faz uma rigorosa comparação entre os textos e as pinturas de Iberê em sua tese de doutorado Que forças derrubaram o ciclista? A relação entre a expressão literária e a expressão pictórica em Iberê Camargo apresentada na Faculdade de Letras/ Teoria da Literatura da Puc-­‐RS em 2000. Sua pesquisa foi de grande valia nesta tese, na identificação da estética grotesca na obra de Iberê e nas relações com o pensamento de Wolfgang Kayser acerca do grotesco na pintura e na literatura de Camargo. Em sua pesquisa Ribeiro une, de forma definitiva, a visão do escritor à do pintor. Os seus personagens, envoltos em uma atmosfera decadente e grotesca, remetem aos acontecimentos trágicos que aconteceram em sua vida, num discurso quase sempre autobiográfico. Camargo, em primeiro lugar, pinta a sua vida, suas memórias e suas dores. Seus trabalhos se confundem entre ficção e realidade, seus personagens e suas máscaras transitam por entre uma quantidade considerável de autorretratos. Sua arte é lugar de suas memórias, que muitas vezes aparecem como experiências imaginárias. É o que explica o próprio pintor:


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Como modelo me transmuto em forma. [...] O autorretrato é uma introspecção, um olhar sobre si mesmo. É ainda interrogação, cuja resposta é também uma pergunta. [...] O pintor sempre encarna as figuras que pinta. Ele as cria à sua imagem e semelhança. Picasso se retrata na sua celebrada tela, Les demoiselles d' Avignon. Admito que minhas figuras se me assemelham. (LAGNADO, 1994, p. 31-­‐32)

E prossegue: Seria impossível saber se a realidade que percebo constitui verdadeiramente a realidade que existe fora de mim, se ela também não estivesse dentro de mim. Os instrumentos criados pelo homem apenas aguçam os sentidos. Só a imaginação pode ir mais longe no mundo do conhecimento. Os poetas e os artistas intuem a verdade. Não pinto o que vejo, mas o que eu sinto [...] Pinto porque a vida dói. (LAGNADO, 1994, p. 25)

Fig. 30 -­‐ Iberê Camargo, Fig. 31 -­‐ Iberê Camargo, Fig. 32 -­‐ Iberê Camargo, Iberê, 1987. Autorretrato, 1984. Autorretrato, 1979. Óleo sobre tela, 78 x 55 cm. Óleo sobre tela, 25 x 35 cm Pastel oleoso sobre papel, 25 x 35 cm.


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Figura 33 -­‐ Iberê Camargo, Eu e signos, 1981. Óleo sobre madeira, 30 x 42 cm.

Figura 34 -­‐ Iberê Camargo, Eu, carretéis e dados, 1983. Óleo sobre tela, 65 x 92 cm.


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Toda a pintura de Iberê Camargo é a demonstração da conquista moderna da superfície anti representacional, aliada as forças dos afetos pictóricos da sensação. O que ele busca nas coisas não é a representação mimética e sim a sensação que emana das coisas e das pessoas. Na representação da imagem do corpo humano, Iberê busca ultrapassar a imagem do modelo. Não pintar o modelo e sim à partir do modelo. Como pode-­‐se observar nas pinturas com modelos específicos a seguir:

Figura 35 -­‐ Iberê Camargo, Gelson, 1992. Figura 36 -­‐ Iberê Camargo, Óleo sobre tela, 185 x 146 cm. Retrato (Jane e Mariza), 1987. Óleo sobre tela, 184 x 130 cm.

Figura 37 -­‐ Iberê Camargo, Figura 38 -­‐ Iberê Camargo, Figura 39 -­‐ Iberê Camargo, Retrato, 1991. Maria, 1990. Retrato, 1987. Óleo sobre tela, 155 x 200 cm. Óleo sobre tela, 155 x 200 cm. Óleo sobre tela, 150 x 93 cm.


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As últimas pinturas de Iberê Camargo apresentam características marcantes ao romper com uma forma descritiva naturalista tradicional. O pintor deforma suas figuras a fim de melhor atingir a expressão, e expor as mazelas humanas. Eis a confirmação da sua divisa no plano criativo: a deformação nasce da necessidade de expressão. Ele torna estranha a realidade, preservando, através da transfiguração, o que o atormenta. (RIBEIRO, 2010, p. 397)

Ou como o próprio Iberê esclarece: "A deformação é a expressividade da forma." (LAGNADO, 1994, p. 25) E para apontar as mazelas humanas, e as suas próprias mazelas, o pintor se vale da estética do grotesco, que caracteriza também a deformação, o estranho, o monstro. Como pode-­‐se observar nas pinturas a seguir:

Figura 40 -­‐ Iberê Camargo, Retrato, 1987. Óleo sobre tela, 150 x 93 cm.


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Figura 41 -­‐ Iberê Camargo, Ciclista, 1988 (detalhe). Figura 42 -­‐ Iberê Camargo, Homem de Óleo sobre tela, 200 x 236 cm. bicicleta, 1989. Óleo sobre tela, 42 x 30 cm.

A imagem do corpo em suas pinturas apresenta-­‐se de forma fragmentada, expressando a fragilidade da matéria corpórea a partir da angústia da certeza da morte e do horror do abandono. É por meio do grotesco e do abjeto que o pintor questiona a época contemporânea da sociedade de massa, construída sobre aparências e que nos causa a agonia de viver em um real distorcido e banalizado pelos meios de comunicação para o bem do capitalismo. A reflexão sobre as atrocidades humanas chama a atenção pela força das imagens do corpo humano, distorcido e descarnado. A presença do fragmento na representação do corpo em Iberê Camargo, se dá como uma crítica às certezas da ciência, e também à tirania da perfeição e da beleza passageira. O fragmento também permite que a imagem permaneça em aberto, sempre como num processo. Pode-­‐se lembrar o pensamento de Perniola (2010) sobre o fragmento, que se desloca sempre para a frente seguindo o processo infinito e de autossuperação que define a vida do artista. É o que constato na obra de Iberê Camargo: uma obra aberta por estar sempre em processo de autossuperação. Ele pintava e repintava ao infinito suas telas. Os fragmentos trazem sempre novas possibilidades, um devir, por assim dizer. O fragmento está sempre pronto para uma nova conexão.


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Figura 43 -­‐ Iberê Camargo, Fantasmagoria IV, 1987. Óleo sobre tela, 200 x 236 cm.

Lorenzo Mammì identifica o fragmento como o elo de ligação entre Iberê Camargo e a pintura contemporânea. Camargo trabalha na fragmentação do espaço pictórico, onde cada objeto, cada signo, toma sua área de cor como algo independente. Ou seja, o quadro inteiro se torna uma figura única e as forças internas da simultaneidade de objetos existem de forma independente. Os signos se amontoam, esbarram e sobem uns sobre os outros. Ou então cada um se destaca sobre sua própria área de cor, como uma colagem. Prosseguindo imperturbável por seu caminho, o "passadista" Iberê encontra assim, talvez antes e mais claramente do que todos no Brasil, a descontinuidade do espaço contemporâneo. E é aqui que sua arte se enxerta com a nova pintura da geração de 1980. (MAMMÌ, 2014, p. 283)


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O que Mammì identifica nos fragmentos presentes na obra do pintor a partir de 1980, é o caráter de fóssil, onde cada fragmento está presente devido a uma arqueologia sígnica, onde parece que tais signos pertenciam a um passado não muito remoto, e hoje foram ressignificados nas pinturas. Como na tela Pintor e signos, onde Iberê dispõe os elementos de sua memória como carretéis, dados e seu próprio autorretrato, que aparece duas vezes. Na tela os elementos são dispostos de forma fragmentária e o espaço pictórico é dividido, é dividido com cada peça atuando em seu próprio espaço. Cada espaço atua de forma independente e também compõe um todo pictórico. Nessa tela pode-­‐se perceber a aproximação de Iberê com as questões contemporâneas referentes à fragmentação do tempo e do espaço.

Figura 44 -­‐ Iberê Camargo, Pintor e Signos, 1981. Óleo sobre tela, 100 x 173 cm.

A imagem do corpo humano apresentada por Iberê em suas últimas telas mostra-­‐se de forma grotesca e fragmentada , através de corpos solitários diante de um mundo em pedaços e amontoado de ruínas , que são as ruínas do pintor e também as nossas próprias, como expectadores:


172 Mário Carneiro passou uma tarde filmando Iberê no trabalho. É impressionante a descrição que Wilson Coutinho faz da reação dos espectadores (que aparecem no filme) ao presenciá-­‐lo, durante o registro, no trabalho. Na "arena da tela"-­‐ para usar uma expressão adequada ao expressionismo abstrato, como quer Coutinho -­‐, para espanto das pessoas, Iberê pintou e destruiu várias vezes o mesmo quadro. "Infinitamente " e refez o modelo durante a filmagem, que se estendeu por uma tarde inteira. O filme registra como o pintor digladiou com a forma e como desprezou as várias faces surgidas durante as tentativas de composição. Iberê aparece apagando a figura, repintando impacientemente o mesmo rosto, fazendo com que os que o assistiam também se impacientassem, vivendo as inúmeras transfigurações surgidas na tela. No enfrentamento da tela que assistiram sentiam ansiedade com o prolongado processo de criação. Uma coisa insólita para eles: tanto o ato de criar, como o pintor em plena inspiração, espontânea, impetuosa e ao mesmo tempo crítica, construída a partir da reflexão do seu laboratório autoral. (RIBEIRO, 2010, p. 319)

O procedimento de Iberê Camargo, ao enfrentar uma tela, perpassa pela multiplicidade e por um método que leva ao infinito, num eterno processo. O erotismo é presente em toda a obra de Iberê Camargo, que produziu vários desenhos eróticos e pornográficos no decorrer de sua trajetória. Porém, nessas últimas pinturas, Iberê apresenta um erotismo grotesco. Os personagens desta fase são representados por meio de rebaixamentos com genitálias frontais e uma certa ambiguidade com relação ao gênero.

Figura 45 -­‐ Iberê Camargo, Figura, 1943. Figura 46 -­‐ Iberê Camargo, Gravura em metal, 21,1 x 19,7 cm. Figura deitada, 1993. Gravura em metal, 9,7 x 15,2 cm.


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Figura 47 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1991. Figura 48 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1988. Guache e lápis stabilotone sobre papel, Lápis stabilotonne sobre papel, 32,4 x 23,5 cm. 50,2 x 35,2 cm.

Por meio de deformidades e distorções, Iberê mostra as várias possibilidades de construção da imagem do corpo pela ótica do feio, do disforme, do podre e asqueroso. Tanto nas imagens como nos textos, Iberê nos apresenta personagens envoltos em palavras e imagens de baixo calão: Desse ângulo, Gaveta de guardados (2009) desempenha um papel fundamental, pois sinaliza abertamente para um erotismo que, apesar de atravessar toda a sua produção plástica, vem sendo ignorada pela crítica. [...] (em seus textos) Na dicção elevada narra uma sexualidade em surdina feita de encontros furtivos. Mas, quando menos se espera, a linguagem perde sua compostura e abre clareiras para passagens cabeludas. (MASSI, 2009, p. 21)

Como já apresentei, , esta estratégia é característica de procedimentos bizarros, ao causar certa estranheza quando aproxima elementos opostos como o grotesco e o sublime. Como nas passagens dos textos de Iberê:


174 Excitado, deixo-­‐me envolver por uma morena -­‐ Wanda -­‐ de coxas grossas e roliças,

que se insinua e se instala na minha mesa. Como deve permanecer até o final do show, vou aguardá-­‐la no quarto. Na espera, adormeço. Desperto à sua chegada. Ela segue a prática: acocora-­‐se atrás de um biombo. Ouço o rumor da água da bacia, espargida com a mão. Um curto saiote lhe encobre a nudez. Deita-­‐se ao meu lado. Sôfrego a possuo, como fazem os cães de rua. (CAMARGO, 2009, p. 49)

Pode-­‐se perceber nesta passagem do conto "Cabaré" (1994) os rebaixamentos corporais de uma prostituta que, antes de atender o cliente, lava seu sexo em uma bacia de água no chão atrás de um biombo. Percebe-­‐se também o grotesco no hibridismo do homem com o animal, quando o personagem, ou o ato sexual, é comparado às atitudes de um cão. Tudo isso são características da estética do grotesco. Em outras passagens:

Ou:

Mas lembro-­‐a imóvel na pose: sigo-­‐lhe os contornos do corpo, acaricio-­‐lhe os seios, acaricio-­‐lhe o ventre com fervor de amante. Dela nada sei. Apenas que sustentava a mãe e que, à noite, era taxi-­‐girl num dancing qualquer no Rio. (CAMARGO, 2009, p.53) Uma tarde, no escuro do portão, toco a genitália de Iva, úmida e víscida, que ela arreganha para mim. Oferece o fruto de polpa rosada, aberto. Ela também toca meu pistolo empenado, bonitinho como diz. De pé, enlaçados, ensaiamos um arremedo de cópula. Ela afasta a perna da calça, oferece-­‐me o sexo. Sôfrego, apalpo seu púbis, que começa a emplumar. (Idem, p. 56)

Ou: "Queres um anel? mete o dedo no cu." (Idem p. 55) Ou: "Na boceta da mãe, na rebimboca da mãe, na re-­‐bim-­‐bo-­‐ca da boceta da mãe." (Idem, p. 53) O grotesco também se faz presente quando Camargo usa palavras de baixo calão ao lado de composições arrojadas. A descrição de cenas prosaicas ao lado das baixezas naturais do corpo. O erotismo dos corpos é presente em toda a obra de Iberê Camargo, seja na pictórica seja na literária. Entretanto, como Hilda Hilst, ele não apresenta um erotismo que valoriza o belo e as formas clássicas. Seu erotismo se apresenta de forma grotesca, tanto nos desenhos, quanto nas gravuras e nos personagens de suas pinturas. Em suas Conversações (1994) Lisette Lagnado


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pergunta ao artista sobre a representação do corpo da mulher, tão presente em sua obra, principalmente a partir de 1980:

Figura 49 -­‐ Iberê Camargo, Figura 50 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1990. Caneta esferográfica Sem título, 1973. sobre papel, 9,5 x 15,8 cm. Nanquim sobre papel, 14,3 x 11,2 cm.

LL: Sobre a apreensão psicológica do corpo feminino: a mulher na sua visão, é um ser monstruoso, beirando a animalidade carregado de Fatalidade? IC: Não sei porquê, mas esta pergunta me transporta às ladainhas da Virgem Maria, que cantávamos no ramerrão na capela do internato da Escola de Artes e Ofícios de Cacequi: "Estrela da Manhã", " Farol dos Navegantes", "Mãe dos pecadores", etc., etc. Sim, a mulher deificada, todos esses atributos lhe cabem. Rameira é sempre a outra, não a que nos trouxe ao mundo, ou a que amamos. O corpo da mulher sempre foi motivo para os artistas através da história, e objeto de prazer para os amantes. O corpo humano é belo por fora. Faço questão de ignorar seu aspecto interno. Nos meus solilóquios, procuro me explicar o que faz uma coisa bela. Vê, só um misterioso condicionamento nos faz ver beleza no sorriso, que nada mais é que um arreganhar de lábios, é uma boca que devora e a exibição acintosa de presas que dilaceram. Bem, mas não entremos na oficina de bruxo. Eu amo a mulher. Basta que ela exista. Se for um monstro, será então um divino monstro. (LAGNADO, 1994, p.54-­‐55)

Mônica Zielinsky em seu texto para o Catálogo Raisonné da obra gráfica de Iberê, ressalta a presença de uma sexualidade latente na série de gravuras Erótica:


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Figura 51 -­‐ Iberê Camargo, Erótica 1, 1987. Figura 52 -­‐ Iberê Camargo, Litografia, 42,4 x 32,1 cm. Erótica 2, 1987. Litografia, 42 x 28,6 cm.

Figura 53 -­‐ Iberê Camargo, Erótica 3, Figura 54 -­‐ Iberê Camargo, Erótica 4, 1987. 1987. Litografia, 48,6 x 17,2 cm. Litografia, 48,6 x 17,2 cm.


177 Várias litografias compõem obras significativas nesse momento da produção de Iberê. Constitui a série Erótica, em que quatro delas são elaboradas em 1987, nove em 1988 e uma, que determina a conclusão de um século em 1990. Com figuras esguias, rostos impessoais, quase caricaturas, essas gravuras abordam, em uma conformação aparentemente superficial tocadas por certa ironia, uma questão importante entre as interrogações. São sintomas de vida: fazer sexo é indício de vida. Outros artistas abordam essa temática, mas Iberê o faz dentro de suas inquirições essenciais do momento. Tem consciência de que não é mais jovem, está doente e os limites da existência anunciam-­‐se. Abordar o erotismo e sexualidade é, para ele, o campo metafórico por excelência das histórias do desejo e das transgressões, em fim da vida. É expansão de sujeito, relação passional e fusão desse mesmo com o outro, uma investigação sobre sua identidade e os territórios partilhados. Nesse sentido, as gravuras da série Erótica trazem na configuração esguia, quase ilustrativa de suas figuras, todas essas questões, também evocadas em diversos de seus óleos e em muitos desenhos desse mesmo período. (ZIELINSKY, 2006, p. 106)

Sônia Salzstein levanta a questão de que, desde o princípio dos anos de 1960, o tema da sexualidade esteve presente na obra de Iberê Camargo, aparecendo sem muitos rodeios e admitindo sem cerimônias o vulgar, o grotesco e o violento no mesmo espaço refinado da pintura informal, no que diz respeito à representação do corpo e da sexualidade. Porém, Salzstein ressalta que nessas últimas pinturas e desenhos o tema da sexualidade parece surgir sublimado, ou talvez fosse melhor dizer esvaziado, em imagens de repouso e meditação: De modo um tanto curioso, nos trabalhos dos anos de 1990, os cenários quase vazios e a imobilidade dos personagens solitários dão a impressão de que Iberê, no fim da vida, reatava a pintura meditativa e a experiência da contemplação que se viam nos seus primeiros quadros de natureza morta. (SALZSTEIN, 2003, p. 56)

Assim, sob forma vital ou esvaziada, a temática sexual erótica e pornográfica é recorrente na obra de Iberê Camargo. O artista explora em desenhos, gravuras, pinturas e textos a representação erótica. Seus trabalhos se destacam pela frontalidade da figura e a exibição grotesca da genitália dos personagens.


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Figura 55 -­‐ Iberê Camargo, Crepúsculo de Restinga Seca, 1993. Óleo sobre tela, 65 x 92 cm.

Figura 56 -­‐ Iberê Camargo, Mulher e manequim, 1989. Óleo sobre tela, 42 x 30 cm


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Tanto as pinturas quanto os textos de Camargo são repletos de uma ironia trágica, do uso de paródias, justaposições de elementos díspares como o fundo composto por uma abstração tradicional, fruto de um virtuosismo pictórico, ao lado de figuras grotescas. Como afirma Bakhtin: O corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está pronto nem acabado: Está sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói outro corpo; além disso, esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele. (BAKHTIN, 1999, p. 227)

Bakhtin esclarece que, na verdade, o corpo individual, o uno, está totalmente ausente da imagem grotesca, vista sob o ângulo do seu limite, do completo. Segundo Bakhtin, o grotesco ignora a superfície sem falhas que fecha e limita o corpo, fazendo dele um fenômeno isolado e acabado. (Idem) Considero o corpo grotesco, fragmentado, inacabado, em processo contínuo de construção. Lembrando a frase de Victor Hugo (2007, P. 36): "o belo é um, o feio é mil." Assim, posso afirmar que o grotesco preza pela multiplicidade. E assim é a imagem do corpo na obra de Iberê, sempre inacabada e grotesca. As justaposições de elementos díspares também é característica da estética do grotesco. Segundo Kayser o grotesco existe na mistura do incompatível: “Ao lado de alegrias mais loucas surgem na vida os dramas mais horríveis; no riso contrafeito das máscaras mais obscenas choram por vezes os sofrimentos mais dolorosos.” (KAYSER, 1986, P. 117) O grotesco, segundo Kayser, se dá na mistura dos domínios, na simultaneidade do belo e do bizarro, do delicioso e do doloroso nauseabundo num todo turbulento. Tudo cabe no conceito de grotesco. (KAYSER, 1986, p. 117)


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Figura 57 -­‐ Iberê Camargo, Mulher 2, 1993. Figura 58 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1991. Guache e Gravura em metal, 15,1 x 9,6 cm. lápis stabilotone sobre papel, 25 x 35 cm.

Outra característica da estética do grotesco presente na obra de Iberê é a presença do riso grotesco. Segundo Wolfgang Kayser o riso cínico, configurando o riso grotesco, é algo essencialmente destrutivo. O riso como um dos temas mais caros do universo do grotesco: a ideia aniquiladora do humor. O riso grotesco que só acontece naquele sorriso em que ainda há dor. O mundo do grotesco é o nosso mundo -­‐ e não o é. Horror, mesclado ao sorriso, tem seu fundamento justamente na experiência de que nosso mundo confiável e aparentemente arrimado numa ordem bem firme, se alheia sob a irrupção de poderes abismais, se desarticula nas juntas e nas formas e se dissolve em suas ordenações. (KAYSER, 1986, p.40)

Não se pode ignorar o sorriso estampado nos rostos das figuras da série As idiotas de Iberê Camargo.


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Figura 59 -­‐ Iberê Camargo, Tudo te é falso e inútil IV, 1992. Óleo sobre tela, 200 x 236 cm.

Com seus corpos grotescos e seu sexo exposto, essas figuras exibem um sorriso angustiado diante de um cenário catastrófico. O riso abismal, excêntrico, horrorizante: este riso se torna cada vez mais claramente grotesco, a medida em que não é percebido e, por conseguinte, interpretado como sintoma pessoal do desespero, mas como um poder estranho, desumano. Tão logo alguém rir no momento em que não se deve rir irrompe algo estranho; mas quando a pessoa que ri, o faz contra sua própria vontade (ou de maneira completamente independente dela), então já não é possível interpretar o fato como sintoma pessoal, pois produz a sensação de uma opção direta de um poder estranho. (KAYSER, 1986, p. 61)

A construção de uma imagem grotesca da figura humana nas pinturas de Iberê Camargo também se apresenta sob a temática da morte. Em suas últimas pinturas Iberê abordou incansavelmente a imagem do corpo em sua finitude. "A humanidade


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que resiste ao drama de sua dissolução" (SIQUEIRA, 2009, p. 91) Camargo, que diante de degeneração do seu próprio corpo, aos seus 80 anos de vida na luta contra um câncer incurável, , procura reviver as lembranças mais caras da infância. Segundo Kayser, no caso do corpo grotesco, não se trata do medo da morte, porém da angústia de viver. (KAYSER, 1986, p. 159) O que resta é uma urgência diante da estupidez de um Deus que insufla vida tendo estabelecido a certeza da morte. [...] Nem mesmo uma vaga ideia de eternidade, perpetrada através da obra que fica, pode devolver ao artista a noção de liberdade. [...] Eis o sentimento irremediável do artista que, resoluto, frontalmente se entrega ao pânico da expressão. (LAGNADO, 1994, p.124)

Iberê Camargo não queria morrer, era um inconformado com o passar do tempo que a tudo corrói. Para ele, pintar era uma forma de adiar a morte, iluminar a noite que amedronta o pintor. Sensação que aparece na imagem de suas pesadas figuras deitadas sobre a terra devastada.

Figura 60 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1991. Figura 61 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1991. Caneta esferográfica sobre papel, 24,1 x 32 cm. Grafite, caneta esferográfica e nanquim sobre papel, 24,1 x 32 cm.

Assim, a presença certeira da morte e o seu ímpeto de pintar para negá-­‐la, assume um caráter positivo, "transforma-­‐se até em uma fonte paradoxal de vitalidade." (LAGNADO, 1994, 103) Com a existência corrompida, banal, venal, onde "tudo é falso e inútil", Camargo sabe que:


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diante da realidade contida do mundo, a morte pode ser até um consolo. Mas apenas se for prefigurada em cada forma, experimentada a cada instante, acatada como experiência última, absoluta, exemplar, de uma luta perene pela afirmação da vida. (SIQUEIRA, 2009, p. 92)

A imagem da morte na obra de Iberê Camargo, o ser caído, o cadáver, também remete a outro elemento intenso do grotesco que é a imagem da terra. A terra sumária que a todos um dia irá abraçar e acolher. A terra como a imagem da mãe ao avesso. Um buraco escuro pra onde todos certamente seguirão. A terra, com seus orifícios, tem também um sentido grotesco e corporal. (BAKHTIN, 1999, p. 288) O corpo-­‐terra que, apesar da angústia do caminhar para a morte, também simboliza a renovação vital da fertilidade criativa da pintura, que tem o poder de adiar a morte. Em Camargo, a terra sempre aparece arrasada, como num mundo pós apocalipse, o que amplia a sensação de abandono e de fragilidade das figuras. O expressionismo foi a maneira estética pela qual ele se comunicou com o mundo. Para o pintor, a obra de arte só acontecia quando a forma se expressava. Sua arte sempre buscou a expressão. É o que o crítico Paulo Ribeiro afirma: Para Iberê, arte era transfiguração, isto é, o artista toma a realidade, "toca" a realidade, mas a arte deve nascer exatamente da necessidade de expressão. Em suas memórias sublinharia: "Importante é encontrar a magia que existe nas coisas, na vida. Do contrário, seria apenas um testemunho visual de um fenômeno ao alcance de qualquer um." (RIBEIRO, 2010, p. 245)

O expressionismo foi um movimento que surgiu na Alemanha em oposição à arte vigente e ao academicismo. Segundo Maria Inês Castro e Silva (2011), a primeira antologia de poesia expressionista data de 1919. Os poetas não consideram o expressionismo uma escola ou grupo, mas um movimento. Silva (2011), desenvolveu uma completa pesquisa acerca do expressionismo e do grotesco relacionada à obra do escritor Raul Brandão. Sua pesquisa foi de grande valia nesta tese no que diz respeito à história da arte em relação ao expressionismo. Em sua dissertação, Silva entende o expressionismo como um grito de uma juventude explosiva e possessa, abrasada por uma vontade de inovação. O expressionismo


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fundou-­‐se como sendo a voz de todos aqueles que, de alguma forma, tentaram lutar contra o conformismo vigente. É exatamente no inconformismo e no desagrado, que surgem o grotesco e a ironia, como estandartes da geração expressionista. A deformação da realidade e uma atitude pessimista em relação a essa mesma realidade, assim como a expressão do íntimo e a ruptura com a tradição, se unem para dar lugar a um novo olhar sobre o século. Segundo Silva: Considerado, em muitos momentos, como um ponto que se situa entre a criação e a ação, o Expressionismo concebe a problemática da deformação a diversos níveis, nomeadamente no que diz respeito à linguagem. A deformação aliada à estética do grotesco acentua não só o caráter de revelação, como também sublinha o caráter de afastamento dos expressionistas face ao mundo envolvente. A distorção que o grotesco comporta transporta-­‐nos para o campo das visões expressionistas que se afastam progressivamente do real quotidiano. Neste sentido, podemos defender que o Expressionismo habita um mundo próprio e desfigurado. (SILVA, 2011, p. 21)

Para Silva (2011), o expressionismo é a tensão entre aquilo que o mundo dá a ver e aquilo em que o mundo pode transformar-­‐se, ou seja, expressar-­‐se. Como explica Mônica Zielinsky em seu texto A pintura de Iberê Camargo: um processo sempre inacabado (2003): A expressão nega a realidade ao inventá-­‐la, em um modo essencialmente crítico. Mostra aquilo que não se iguala à realidade, mas não a recusa. Não é a duplicação do que é subjetivamente sentido, mas é a sua invenção. Em um movimento de dentro para fora o artista traz algo além do que percebe, ele reinventa o drama da vida em pintura. (ZIELINSKY, 2003, p.106)

Entretanto, o expressionismo não pode ser considerado um fato datado ou fechado em um determinado período ou espaço geográfico. É certo que o expressionismo não se limita a sentimentos ou cores ou temáticas. Mas o expressionismo também está ligado diretamente na contestação e no inconformismo: onde houver um grito de dor lá estará a expressão deste grito. Segundo Alfredo Bosi: A poética expressionista alemã só eclodiu no começo do século 20, mas a tendência à metamorfose vem de muito longe. Vem das máscaras do teatro grego e dos rituais


185 africanos; vem das figuras grotescas esculpidas nos pátios das catedrais góticas; vem das imagens surreais entre eróticas e demoníacas de Bosch; vem do Barroco Místico de El Greco e dos desenhos pesadelares de Goya; vem da caricatura política de Daumier; anima as fantasias misteriosas de Ensor; inspira as pinceladas em vírgula e em onda das últimas paisagens de Van Gogh, para enfim acender a consciência de si mesma na teoria de Wassily Kandinsky: "todos os procedimentos são sagrados desde que satisfaçam uma necessidade interior ". (BOSI, 1985, p. 65)

Em uma entrevista à Lisette Lagnado, Camargo confirma essa teoria de Bosi: LL-­‐O crítico Mário Pedrosa certa vez afirmou que a produção expressionista é uma coisa peculiar a Alemanha. Hora, sua obra traz essa característica. Você acredita que certos movimentos estéticos não possam transcender seu lugar de origem? IC-­‐Como o expressionismo é um grito de dor, ele não tem fronteiras, porque nasce no coração do homem. Pode historicamente ter sido codificado na Alemanha, mas sempre existiu no pranto, no soluço, no sofrimento, e até no uivo do cão sem dono, nas noites do mundo. (LAGNADO, 1994, P. 48)

O expressionismo se dá na tragédia, que é um momento que toca os extremos e onde o gesto do artista move-­‐se para o limiar da destruição. E é dessa destruição que nasce a deformação. A forma sob pressão muda de contorno -­‐ esse é o princípio da deformação expressionista. E é esse o objeto de estudo de quem persegue a dialética da força interior e expressão. Como disse o próprio Iberê: "a deformação é a expressão da forma." (CAMARGO in LAGNADO, 1994, p. 25) Segundo Bosi, o expressionismo é o grotesco, a máscara de horror ou pena, o gesto estertorado, a metáfora em órbita, o traço grosso, a mancha empastelada, o vinco mais fundo na xilografia sarcástica, o grito rouco em cena aberta, a estridência e a quebra das harmonias tonais. "Romper, chocar e lacerar são os verbos expressionistas por excelência. " (BOSI, 1985, p. 66) O crítico Ronaldo Brito reafirma a inclusão da obra de Camargo na estética expressionista: Uma vez mais, compulsivamente, uma lírica moderna exerce ao extremo o seu autoconhecimento para reativar uma pulsão estética primitiva, anterior às regras, modelos e ideologias. Talvez resida aí o motivo básico da vinculação da poética de Iberê Camargo ao expressionismo. A razão estética emancipada foi e continua a ser obrigada a formular ela própria o antídoto à sua incontrolável voracidade


186 intelectual. [...] fatalmente, portanto, a sorte da pintura de Iberê Camargo decide-­‐se inteira na agonia do Ato de Expressão. (BRITO, 1994, p.36)

Como grande parte das obras expressionistas, as obras de Iberê Camargo também abordam temas como a sua realidade cotidiana, as ruas desertas, os transeuntes no Parque da Redenção, seus personagens desvalidos originados de suas anotações em cadernos. Temáticas que se aproximam dastemáticas de Oswaldo Goeldi. Ambos produziram obras de um expressionismo alheio à luz tropical. Tanto Camargo como Goeldi apresentam obras onde as cores e as formas são de uma atmosfera fria e sombria. Entretanto, na busca de aproximações, diferente de Goeldi, em Iberê: as imagens não se dão facilmente ao olhar, sua inquietude vai além do contexto despretensioso no qual tem origem, sua força reside em uma auto decomposição da própria forma, o que gera instabilidade, destrói a fixidez de sua apreensão e interroga o sentido da existência desses personagens. (ZIELINSKY, 2006, p. 105)

Figura 62 -­‐ Oswaldo Goeldi, sem título, 1940 Figura 63 -­‐ Iberê Camargo, Músicos, 1987. Xilogravura, 21 x 27,3 cm. Litografia, 25,9 x 26,1 cm.

A deformação das figuras em Iberê Camargo se dá sob a forma de negação de uma brasilidade cordial e alegre. Nas paisagens do pintor as árvores estão sempre


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desgalhadas e a tristeza e a solidão predominam. Ele sempre repetiu: "pinto porque a vida dói. (LAGNADO, 1994, p. 15) Luiz Camillo Osorio em seu texto Um trágico nos trópicos (2015), ressalta essa ideia de uma anti brasilidade no expressionismo de Iberê Camargo: O ensaísta português Eduardo Lourenço discutiu em um dos seus textos a tendência da literatura brasileira -­‐ e poderíamos acrescentar do modo de ser do brasileiro -­‐ em rasurar a dimensão trágica da existência. Segundo ele a estrutura cultural eufórica que caracteriza o modernismo brasileiro vai constituir-­‐se como uma segunda natureza do Brasil [...] este novo nascimento do Brasil para si mesmo -­‐ embora mítico ou por isso mesmo -­‐ condicionar a forma do espírito e da cultura brasileiros, envolvendo na sua pulsão positiva e otimista das visões mais cruas ou dolorosas da vida nacional nos seus aspectos históricos ou individuais.25 É justamente o mergulho nas visões quase dolorosas da vida que me parece evidenciar a dimensão trágica da pintura de Iberê, sua densidade existencial, sua recusa, tão anti brasileira, a crer que, ao fim, a harmonia afirmará. (OSORIO, 2015, p. 13)

Assim, pode-­‐se pensar que a obra de Iberê Camargo se vale da estética do expressionismo ao utilizar a deformação dos elementos, a presença simultânea do belo e do bizarro, doloroso e nauseabundo, apresentando-­‐se em fusão num todo turbulento no qual o estranhamento se faz como confirmação do conceito do grotesco. O riso grotesco conjugado à feiura do corpo ostentando o triunfo do disforme, a inumanidade progressiva de um mundo que se alimenta de aparências em detrimento de uma verdade ética. Iberê Camargo denominava as telas que constituem sua fase final de vida de realismo grotesco, em que a realidade aparece somente como pano de fundo para a transfiguração do primeiro plano e onde se dão as forças invisíveis, estranhas, que marcam a sua imaginação em estado bastante aguçado. Nestas forças encontram-­‐se as marcas estilísticas da sintaxe expressionista: lirismo impregnado de assombrações, traumas, vergonhas e feridas. Nessas últimas pinturas aparece um elemento também muito característico da estética grotesca: o manequim. Símbolo da perversidade, o fragmento do corpo com aparência de manequim foi muito utilizado pelos artistas (MORAES, 2002), representando o corpo feminino 25

LOURENÇO, Eduardo. Da literatura brasileira como rasura do trágico. In: A nau de Ícaro. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 201.


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com algo de manipulável, manuseável, desmontável, transformável à vontade. Tanto que nos anos de 1930, na arte, os manequins passaram a ser chamados de mulher-­‐ objeto. Segundo Eliane Robert Moraes (2002), na concepção batailleana, os manequins expressam a inesgotável capacidade de metamorfoses da figura humana desdobrando-­‐se em outros e consequentemente projetando-­‐se para fora de si. O manequim opõe-­‐se ao corpo humano pelo seu caráter esquemático. É uma montagem de formas, uma colagem, uma edição de falsos membros, uma reunião de fragmentos. Para Marcel Duchamp e os surrealistas, o manequim era um veículo para a fantasia e o desejo, também como nos trabalhos de Ray e Bellmer.

Figura 64 -­‐ Marcel Duchamp, Figura 65 -­‐ Hans Bellmer, Figura 66 -­‐ Man Ray, Étant donnés, 1945 -­‐ 1966 A Boneca, 1936 O manequim de Man Ray, 1938 Instalação. Fotografia, 11,7 x 7,6 cm. negativo 1938; impressão 1966. Fotografia, 19,2 x 14,2 cm. É sabido que George De Chirico, mestre de Iberê Camargo quando o gaúcho

estudou na Itália, representou inúmeras vezes a imagem do manequim em suas obras. Seria difícil precisar as relações possíveis entre os manequins de De Chirico e os manequins que habitam as obras de Iberê Camargo nesta fase final de sua produção. Entretanto, Carlos Zílio ressalta que a figura do manequim para Camargo instala-­‐se


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no romantismo e no drama, e a sedução do fetiche, própria dos surrealistas, entra em choque com seu sentimento pessimista, produzindo assim um instantâneo olhar crítico. (ZILIO, 2003, p. 181) Como explica Mônica Zielisky:

Figura 67 -­‐ Giorgio De Chirico, O Filho Pródigo, 1922. Óleo sobre tela, 87 x 59 cm.

Os manequins de Iberê remetem à revolta do artista em relação ao campo banalizado e solitário do cotidiano, ao vazio da vida e sua inutilidade, à


190 superficialidade do ser humano urdido no consumo que se alastra na sociedade. Essas personagens falam ainda da espessura desencarnada do homem, do arremedo da vida e da falsidade que permeia as relações humanas. Mesmo em uma conformação aparentemente superficial e ilustrativa, essas obras são carregadas de forte conteúdo crítico. Veem-­‐se impregnados também de profunda angústia, pois esses manequins são indicativos da recusa do artista a esses fatos que se tramam na vida social. (ZIELINSKY, 2006, p.104)

Figura 68 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1991. Figura 69 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1989. Óleo sobre tela, 42 x 30 cm. Caneta esferográfica e nanquim sobre papel, 34 x 23 cm.

Esses contatos de Camargo com os aspectos banais da vida assumem um lugar destacado na produção do artista e incorporam um forte conteúdo às suas discussões existenciais. Lisette Lagnado (1994) ressalta que é preciso lembrar que a série que o pintor realizou sobre manequins é um exemplo por excelência de Unheimlich, no qual bonecas artificiais questionam a presença da alma. O Unheimlich26 foi um termo usado por Freud e configura o tema do estranho. Na 26

ALMEIDA, Marcela Toledo França de. O estranho e a retomada da angústia. Artigo. Universidade de Brasília. UnB. Disponível em: www.escolaletrafreudiana.com.br/wpcontent/uploads/2012/06/9_Unheimlich.pdf.


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psiquiatria, o conceito que aborda a incerteza intelectual sobre um objeto inanimado pode ser, de alguma forma, dotado de vida autônoma. Como, por exemplo, a impressão dada pelas figuras de cera, pelos autômatos e fantoches engenhosamente construídos. Efeitos perturbadores são geralmente obtidos pela incerteza, a imagem estranha do duplo, do corpo estranho. Freud aborda algo que traz à tona sentimentos opostos: repulsa e familiaridade, o unheimlich remete ao sentimento de radical estranheza com o que mais de familiar poderia haver: a nossa própria imagem refletida no espelho ou reproduzida na forma de um simulacro do corpo humano. E é justamente este o lugar do aparecimento da angústia. A angústia grotesca de viver. Assim, a presença do manequim em Iberê Camargo também nasce pela égide do grotesco.

Figura 70 -­‐ Iberê Camargo, Tudo te é falso e inútil V, 1993. Figura 71 -­‐ Suíte Manequins III, 1986 Óleo sobre tela 200 x 250 cm. Serigrafia, 70,3 x 50 cm.


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Figura 72 -­‐ Iberê Camargo, Manequins, 1985. Figura 73 -­‐ Iberê Camargo, Figuras e Serigrafia, 36,5 x 55,2 cm. Manequins, 1985. Serigrafia, 31,3 x 45, 1 cm.

Figura 74 -­‐ Iberê Camargo, Manequim e Ciclista, 1992. Figura 75 -­‐ Iberê Camargo, Manequim Gravura em metal, 24,6 x 29,5 cm. e Modelo, 1992. Guache e lápis stabilotone sobre papel, 70 x 50 cm.

O corpo estranho, na obra de Iberê Camargo, além de pertencer à estética do grotesco, também aparece sob a forma do abjeto que, nas artes, funciona como algo político, uma subversão da beleza e dos interditos do excremento e de tudo que é considerado obsceno. Em suas pinturas e textos Iberê apresenta relação com o


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informe e o imaginário escatológico, presentes tanto em sua matéria pictórica como em sua atividade de escritor, o que é evidenciado no conto "O relógio". A questão política, relacionada ao abjeto na obra do pintor, revela-­‐se quando Camargo usa excrementos para protestar contra a má qualidade da tinta brasileira. É Paulo Ribeiro que relata: O ateliê na Lapa, naquela tarde, estava infestado por um cheiro de merda. Iberê, com efeito, manuseava a matéria fecal como se fosse tinta, amolecendo a pasta com o cabo do pincel. Em sua frente a tela já está toda borrada, empastada, escorrida. Iberê trabalha uma figura abstrata com a própria merda. Protesta com a sua própria merda. Protesta veementemente contra a qualidade das tintas. A tinta não presta. A tinta brasileira parece minha merda -­‐ berrava Iberê. Isto é minha Guerra dos Cem Anos, que eu declarei contra essa canalha -­‐ berrava Iberê, sempre pronto para voltar à luta. (RIBEIRO, 1996, p. 42)

No conto "O relógio" Camargo narra a história de Savino, um menino que um dia foi usar o banheiro, que era uma fossa do lado de fora da casa. Uma latrina no fundo do quintal construída de tábuas velhas carcomidas pelos cupins e infestadas de aranhas e moscas. Acocorado sobre o assento, Savino faz suas necessidades fisiológicas enquanto é molestado pelas aranhas, pelas moscas e pelo mau cheiro que sobe pelo buraco da fossa. Ao terminar, rapidamente desce do banco segurando as calças para que não encoste nas sujeiras espalhadas pelo chão. Ouve um baque abafado dentro da fossa e ao olhar pelo buraco vê o seu relógio desaparecer, "lentamente, numa imundície espessa, escura, variegada de amarelo-­‐laranja." (CAMARGO, 2012, p. 73) Savino decide reaver seu relógio a qualquer custo, pois era a única herança que recebeu de sua avó. Não poderia perdê-­‐lo. Transcrevo aqui um trecho do conto: Após dois dias de busca incessante, encontra elos da corrente. Estimulado, redobra os esforços e decide esvaziar a fossa. Começa a retirar da latrina seu conteúdo fedorento, pegajoso, que amontoa sobre folhas de zinco espalhadas pelo pátio. No seu vai e vem deixa atrás um rastro imundo. Ajoelhado, revista minuciosamente cada monte com um graveto, espalhando e separando a merda em pequenas porções. Examina, apalpa cada fragmento. Na busca, reduz a merda a grúmulos. À medida que se demora e que se adentra na busca, a excitação aumenta. Apaixona-­‐se. Não importam mais as aranhas, o nojo e o fedor. Perde todo o escrúpulo: usa as próprias mãos. Com os dedos esmaga cada caroço que encontra. Desfaz, esmiúça


194 ávido cada nó suspeito na avidez de encontrar os preciosos rubis. Às suas mãos enredam-­‐se pedaços de panos apodrecidos. A merda gruda-­‐se aos seus dedos. Seu rosto se umedece de um turvo suor que escorre pelo pescoço. A camisa amarelece, uma pasta escura endurece a calça nos joelhos. A postura o cansa, sente as pernas entorpecidas. Para recuperar-­‐se, muda de posição: hora de cócoras, ora de joelho, ou, então, apoia-­‐se sobre o joelho direito, depois sobre o esquerdo. Circula em torno dos montes e inadvertidamente ao pisar, os pés enlameiam-­‐se. (CAMARGO, 2012, p. 73)

Neste conto, originalmente escrito em italiano, Iberê Camargo narra a história de Savino de forma totalmente autobiográfica. Savino é o menino Iberê, no lixo da estação de ferro, à cata de rolamentos, fios, fusíveis, pernas de boneca, caixas de fósforos, carretéis, tubos de graxa etc. "-­‐ Esse Savino sou eu -­‐ diz Iberê. -­‐ Sou eu buscando, buscando no mais fundo das minhas lembranças os meus restos, os meus rastros." (RIBEIRO, 1996, p. 56) Na tela um homem revira um monte de lixo. Busca, procura obsessivamente nos excrementos. Remexe naquela massa bruta, quase apodrecida. Paulo Ribeiro pergunta: "O que leva um homem a buscar assim na podridão? -­‐ Busca uma parte de si. Afetiva -­‐ responde Iberê. Este é o homem, esta é a sua arte." (Idem) Busca nas reminiscências, nos rastros, nas ruínas os motivos para a sua criação. O entulho, os restos do Homem, os restos dessa vida miserável, tratados escatologicamente ali na tela. Segundo Lisette Lagnado: Aqui, dois aspectos merecem relevância: a metáfora do tempo que se esvai numa fossa (são trazidos à realidade do conto os brinquedos da infância de Iberê, soldadinhos de chumbo, cornetinha e carretéis) e a paixão do sujeito que mergulha de corpo inteiro nas impurezas dos excrementos (símbolo por excelência da matéria da criação que precisa ser trabalhada para que dela possam emergir as formas). A matéria que pré-­‐existe à criação denota ainda uma herança helenista na formação do artista. (LAGNADO, 1994, p. 114)


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Figura 76 -­‐ Iberê Camargo, O Relógio, 1988. Figura 77 -­‐ Iberê Camargo, O Relógio, 1988. Guache e lápis stabilotone sobre papel, Guache, lápis stabilotone, caneta 33,3 x 22,4 cm. esferográfica, grafite e nanquim sobre papel, 32,9 x 22,1 cm.

Figura 78 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1988. Figura 79 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1988. Guache, lápis stabilotone, caneta esferográfica Nanquim sobre papel, 33 x 22 cm. grafite e nanquim sobre papel, 32,9 x 22,1 cm.


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E é exatamente num monte de lixo, monturo, que Iberê, à moda de um cubeiro, trabalha seus elementos:

Ser um operário da arte. Carregar a merda -­‐ diz. Como os cubeiros faziam. Os cubeiros carregavam a merda em lata. Explica: -­‐ No tempo da minha infância as latrinas eram nos fundos das casas. Os cubeiros eram os sujeitos que carregavam depois os nossos restos depositados lá, as nossas sobras. -­‐ É a lição que trago deles -­‐ diz. A simplicidade. Ser simples, mesmo que nossa tarefa seja puxar merda em potes. A simplicidade, a simplicidade como técnica. Coisa de antigo -­‐ arremata. (RIBEIRO, 1996, p. 43)

Na passagem do conto "A gaveta dos guardados" de Iberê Camargo, ele diz: Viver é andar, é descobrir, é conhecer. No meu andarilhar de pintor, fixo a imagem que se apresenta no agora e retorno as coisas que adormeceram na memória, que devem estar escondidas no pátio da infância. Gostaria de ser criança outra vez para resgatá-­‐las com as mãos. Talvez tenha sido o que fiz, pintando-­‐as. As coisas estão enterradas no fundo do rio da vida. Na maturidade, no ocaso, elas se desprendem e sobem à tona, como bolhas de ar. Como se vê, a criação se faz com o agora e com o tempo que recua. O pintor cria imagens para expressar seus sentimentos. Esses podem ser do real ou formas abstratas, pouco importa. Creio que sua criação e duração na obra do artista são determinadas pelo subconsciente. A memória é a gaveta dos guardados, repito para sublinhar. O clima de meus quadros vem da solidão da campanha, do campo, onde fui guri e adolescente. Na velhice perde-­‐se a nitidez da visão e se aguça a do espírito. (CAMARGO, 2009, p. 30)

Figura 80 -­‐ Iberê Camargo, Monturo, 1984. Óleo sobre tela, 95 x 212 cm.


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Como na pintura Monturo que quer dizer lugar onde se depositam dejeções, lixo, ou imundícies; lixeira; monte de lixo, de imundícies, de coisas sujas ou imprestáveis; lixeira, estrumeira, busilhão, volutabro, montureira, montão de coisas vis ou repugnantes, no quadro (fig. 80), pode-­‐se ver um amontoado de coisas, signos, setas, carretéis, o autorretrato de Iberê, cruzes, ou seja, esta tela representa a memória do pintor. O lugar imundo e abjeto onde ele, com as mãos, foi resgatar seu passado que não volta mais. Lá, Iberê Camargo pôde recordar-­‐se de seus brinquedos, seus amores, lá na memória do corpo-­‐lixo, do corpo abjeto. 3.3. CONCLUSÃO: IN PROGRESS A imagem do corpo nas pinturas de Iberê Camargo, realizadas no período entre 1980 e 1994, o ano de sua morte, apresenta-­‐se de forma grotesca, onde seus personagens revelam uma corporeidade fragmentada, imersos em uma atmosfera angustiante e pesada. Seus corpos também revelam um erotismo grotesco em que predominam o baixo corporal, a frontalidade de suas genitálias e o sexo animal sem romantismo. A escatologia também envolve a construção da imagética corporal do pintor, quando elementos abjetos, como a matéria fecal, são incorporados em suas telas, desenhos e textos. Todo o seu trabalho, pictural e literário, é de cunho autobiográfico. Iberê só pinta o que está ao alcance dos olhos ou o que habita sua memória. Figuras, coisas e espaço pictórico interagem em síntese para ascender a perplexidade do homem no mundo. O prazer dos sentidos gerados pelo traço nervoso, mas infalível domina com maestria a dinâmica da transfiguração: capta a fugacidade e fixa o peso da carne que vive na angústia de nossa finitude. Ao evidenciar com semelhante grau de virtuosismo a miséria, a violência, a tragédia, a demência do presente, Camargo, em seus últimos trabalhos, parece que os faz para se salvar. Fora isso, qualquer especulação, qualquer opinião ociosa ou pretensiosa, qualquer definição rigorosa, não seriam suficientes perante a grandeza


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do trabalho do artista. No próximo capítulo, apresento as aproximações e distanciamentos entre o livro Fluxo-­‐floema e as pinturas de Iberê Camargo, no que diz respeito à construção da imagem do corpo nestas duas obras de códigos poéticos diferentes porém com homologias identificadas.


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CAPÍTULO 4 -­‐ HILDA HILST E IBERÊ CAMARGO: O ESGAR DO CRÂNIO NU Neste capítulo apresento correspondências entre o livro de Hilda Hilst e as pinturas de Iberê Camargo. Através de procedimentos comparativos e intermidiáticos, identifico nos contos do livro Fluxo-­‐floema elementos pictóricos que correspondem de certa forma às pinturas de Iberê. Igualmente, apresento neste capítulo procedimentos pictóricos de Iberê Camargo que relaciono com certos procedimentos de escrita exercidos por Hilda Hilst no livro. Não digo que farei aqui uma comparação entre pintura e literatura pois, segundo Baudelaire (2008, p. 105), as comparações entre artes de códigos diferentes "não passam de ninharias retóricas", pois, segundo ele, as artes se correspondem. Portanto, o que exponho neste capítulo, são correspondências identificadas por mim, entre as obras desses dois artistas. Destaquei o máximo possível de peculiaridades linguísticas do livro Fluxo-­‐floema. Digo linguísticas em nome dos vários gêneros literários de que Hilda se valeu na escrita dessa obra de complexas narrativas e estilos. Em Fluxo-­‐floema, usando as palavras de Hilda Hilst, "é quando a putaria das grossas se aproxima da metafísica." (MORAES, 2014, p. 267). Além disso, todos esses gêneros contaminam-­‐se na fronteira específica de cada um, inclusive transmutando-­‐se em prosa-­‐dramática, com a marcação de falas como no texto teatral. As possibilidades flutuam na multiplicidade. A priori, o recorte proposto na vasta obra de Iberê Camargo para esta tese foram somente as pinturas realizadas entre 1980 e 1994, ano de sua morte. Porém, ao debruçar-­‐me sobre a obra do artista, deparei-­‐me com uma obra múltipla, o que me fez ampliar um pouco o foco da pesquisa. Assim, passei a considerar, além das pinturas, os desenhos, as gravuras e também seus textos. Afinal, o pintor transita por todas essas linguagens com a mesma desenvoltura e potência. Suas questões são as mesmas em todas as modalidades propostas por esse artista multifacetado.


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Nessas andanças feitas pela obra desse gaúcho de Restinga Seca, que tem sua arte apontada tanto para a memória pessoal como para a grande arte universal, descobri que Camargo também transmutava seu trabalho para a linguagem verbal. Ou seja, a palavra e a imagem, para além da coexistência, se mesclam num amalgamento. Como explica o artista e também escritor Nuno Ramos, na quarta capa do livro de Iberê Camargo No andar do tempo (RAMOS in CAMARGO, 2012): alguma coisa próxima à literatura sempre esteve lá (na pintura). Claro que as "Ciclistas", pintadas no final da vida, explicam essa origem, obesas de gordura e sentido, mas desde os "Carretéis" já era possível pressenti-­‐lo. Algo vizinho à narrativa insinua-­‐se pelas bordas do quadro, um imaginário que solicita a palavra, intuindo sua presença. Talvez por isso o vínculo fundamental entre Iberê e Goeldi salte aqui com tanta clareza, sob o manto comum de Dostoiévski.

Goeldi era um grande amigo e uma referência para Iberê. Quando Oswaldo Goeldi morreu Iberê escreveu um carinhoso texto prestando uma "homenagem ao querido e grande artista que foi e que todos nós perdemos." (CAMARGO, 2009, p.97) No texto, Iberê ressalta a visão trágica e silenciosa dos homens e das coisas que Goeldi buscou em sua obra, e também a temática constante do homem na sua fadiga de viver. Parece que, ao falar de Oswaldo Goeldi, Camargo fala de si e de seu trabalho: "Creio que ele foi magistral ilustrador de Dostoiévski" (Idem). Em sua entrevista concedida à Folha de São Paulo em 1994: O Goeldi foi um grande gravador, um grande artista, porque soube ficar no seu mundo, o mundo simples de pescadores, dos córregos, das casas vazias, das janelas. Tem o corredor de fundo e o corredor de cem metros. Cada um tem que saber de que tipo é, senão vai dar em bobagem. (CAMARGO, Folha de São Paulo, 1994.)

Com as análises pude perceber que, tanto Hilda Hilst quanto Iberê Camargo, possuem uma constância característica e comum, na expressão da imagética do corpo. Hilst e Camargo constroem uma narrativa calcada na angústia do homem de viver na iminência de uma morte certeira. A violência também é uma marca comum à imagem do corpo, tanto na escritora quanto no pintor. Essa angústia vivida pelos


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personagens também se deve ao fato da morte estar associada diretamente à violência dos homens contra os homens. O pintor e a escritora apresentam um corpo violentado. No conto "Osmo" de Hilda Hilst: E agora os meus polegares de aço junto ao seu pescoço, o pescoço delicioso de Kaysa, ah, que ternura rouca explode dessa garganta, que ternura, que ternura. A lua sobre a garganta de Kaysa, o corpo eu vou deixar aqui sob os ramos, que lua, que lua. (HILST, 2003, p. 104)

Como também, em uma aproximação com o literário do pintor, por exemplo no conto "Cartão de Natal" de Iberê Camargo: Ressoam dois tiros no ar morno daquela tarde que se imobiliza para sempre na minha memória. O homem, atingido, estremece, ergue-­‐se no ar como que impulsionado por uma onda invisível. Um urro inumano reboa e antecede sua queda. Agora, o homem seminu procura erguer-­‐se. Com esforço, põe-­‐se de joelhos, inclina-­‐ se para a frente apoiando-­‐se nos braços. As mãos tateiam o asfalto. A cabeça lhe pende. A respiração é curta, difícil, ofegante. Seus esforços são vãos. Foge-­‐lhe as forças. Do amplo dorso brotam, sem parar, sutis filetes de sangue -­‐ uma vertente, a fonte da vida que se esvai. (CAMARGO, 2009, p. 35)

A imagem do corpo do cadáver, da morte, é fato central na obra desses dois artistas. O cadáver, cadere, aquilo que irremediavelmente caiu. Imagem que pode-­‐se identificar no conto "Fluxo": "Rukah está deitado no seu minúsculo caixão doirado. Castiçais de bronze, de prata e de lata. No centro do pátio de pedras perfeitas. Que harmonia." (HILST, 2003, p. 28) No conto "Osmo" a imagem do corpo cadáver aparece na passagem do assassinato da personagem Mirtza pelo personagem Osmo. Depois há o abandono do corpo na floresta: Colocou o corpo de Mirtza apoiado num tronco de bétula. Eu poderia ter jogado o corpo de Mirtza no lago, mas não, o corpo de Mirtza não era amigo de muita água, aquele corpo tinha seu próprio cheiro, um cheiro singular e não era lícito despojá-­‐lo daquele cheiro-­‐perfume-­‐singular, cada corpo tem o seu lugar , cada corpo pertence a um lugar, o meu ainda não sei. (HILST, 2003, p. 97)


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Porém, foi o conto "Lázaro", que também traz a temática da morte e do cadáver, que escolhi para dialogar com a pintura No vento e na terra II de Iberê Camargo. No conto de Hilst, Lázaro descreve a cena: "Estou debaixo desse céu absurdo, arrasto-­‐me, caminho de joelhos, beijo a terra, a terra escura e profunda.". (HILST, 2003, p. 129) Ou em: "Deito-­‐me na terra. Quem sabe? Quem sabe se minha tristeza é apenas uma impaciência de uma espera?" (Idem)

Figura 22 -­‐ Iberê Camargo, No vento e na terra II, 1992. Óleo sobre tela, 200 x 283 cm

Na tela de Camargo, pode-­‐se ver a imagem de um corpo caído na terra. Numa terra arrasada, num cenário pós-­‐apocalíptico. A mesma terra que simboliza a morte, também simboliza o retorno para o colo da mãe. A terra sumária, o túmulo. Tanto em Fluxo-­‐floema, quanto em Camargo, a imagem da terra é associada a imagem da morte, do corpo caído.


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Como na passagem do conto "Fluxo": "Ai, sei que não quero morrer, a terra, a terra dentro da gente, a terra sobre a gente e sob a gente, isso da terra me exaspera." (HILST, 2003, p. 41) A terra grotesca que espera por todos, de boca aberta. Ao final do conto, Lázaro, perdido em questões metafísicas sobre a verdade da existência ou não de Jesus Cristo, agoniza em uma língua ininteligível tentando fazer um padre crer em sua fé Nele: Deus é agora a grande massa informe, a grande massa movediça, a grande massa sem lucidez. Está dormindo Lázaro? Dorme, dorme. Lázaro grita. Um grito avassalador. Um rugido. Arregala os olhos e vê Marta. Ela está de pé, junto à cama. As duas mãos sobre a boca. (HILST,2003, p.140)

Ao final do conto "Hiroshima", de Iberê Camargo, depois de percorrer o mundo à procura de um unguento que curasse seu câncer, o homem-­‐pintor se vê diante de uma parede de terra úmida e escura, rasteja por um buraco, como uma pequena gruta, quando se vê apertado, sem poder mais respirar e não consegue mais voltar:

Após os gestos desesperados, as convulsões, os espasmos, os estertores, realidade e pesadelo se misturam: Uma suave sensação de paz, de conciliação, de reintegração e de dissolução-­‐ como a do sal na água -­‐ o invade. O homem -­‐ pintor não sente mais o corpo, que por fim se aquieta. A noite desce, uma noite diferente, espessa, impenetrável, mas leve como uma mortalha. Dorme, dorme, foi a última palavra que ele ouviu. (CAMARGO, 2009, p. 41)

Pode-­‐se perceber a proximidade, tanto estilística quanto temática, destes dois trechos. Nos dois contos, "Hiroshima" de Camargo e "Lázaro" de Hilst, ao pronunciarem as palavras, "Dorme, dorme", os autores evidenciam a certeza de uma vitória da morte sobre a vida. Nada mais pode ser feito, não adianta mais lutar: dorme, dorme. O corpo vivo também é evidenciado nas obras dos dois artistas como um corpo grotesco, o corpo disforme que temos que carregar até o fim dos nossos tempos. O corpo físico em Hilst e em Camargo, apresenta uma transitoriedade e uma decrepitude que anseia o fim. No conto "Fluxo" a escritora descreve os personagens Ruiska e sua mulher Ruisis:


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ah, Ruisis vai envelhecendo, tem olhinhos estreitos, olhinhos caídos, tristes olhinhos de velha, meio remelentos, pobrezinha, e quando ela chora, sim, porque de vez em quando ela chora quando se lembra das caganeiras terníssimas de Rukah [...] Quando ela chora, a lágrima não cai como cai na jovenzinha que chora, não, quando Ruisis chora, a lágrima fica boiando cheia de sal, de espessura dentro do olho, não nas bordas. [...] Na borda, fica matéria branco-­‐amarelada, no canto do olho também, as pálpebras ficam vermelhinhas e enrugadas, é, Ruisis envelhece rapidissimamente. Rejuvenesço. (HILST, 2003, p. 43)

E também: O corpo de Ruiska é como um cipó sugando uma árvore que não sei, o corpo de Ruiska é seco, estala, é seco-­‐marrom, ai Ruiska sem aurora, afogado nas paredonas do escritório, subjugado pelos fantasmas do de dentro, pobre Ruiska, que foi meu. ... Está velho sim, eu digo que está moço, está velho, uma fundura de olhos, um vazio de carnes. (HILST, 2003, p. 46)

A construção da imagem dos personagens em Iberê Camargo também apresenta-­‐ se de forma grotesca. Pode-­‐se perceber a proximidade da descrição verbal dos personagens de Hilst e os personagens de Camargo:

Figura 24 -­‐ Iberê Camargo, Diálogo, 1987. Figura 43 -­‐ Iberê Camargo, Fantasmagoria IV, óleo sobre tela, 42 x 30 cm. 1987. Óleo sobre tela, 200 x 236 cm.


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Observa-­‐se nas figuras do pintor corpos secos, cadavéricos como cipós. Como o corpo de Ruiska, velho, uma fundura de olhos e um vazio de carnes. Como o corpo de Ruisis, envelhecido, com olhos estreitos, chorando com lágrimas secas e remelentas. Como escreve Icleia Cattani: Que corpos são esses? Corpos fantasmáticos, como nas telas "Fantasmagorias", corpos artificiais, como nos manequins, corpos dominados pela idiotice, como nas "Idiotas", corpos vencidos pelo ceticismo, em "Tudo te é falso e inútil" e corpos derrotados pelo cansaço ou pela morte como em "No vento e na terra I" e "No vento e na terra II" (1991 e 1992, respectivamente). (CATTANI, 1985, p.149)

Ou como escreve Anatol Rosenfeld na introdução de Fluxo-­‐floema: Hilda Hilst encarna e ao mesmo tempo supera "o limite da carne" que "pesa sobre nós". "O pensamento discursivo e lento" naufraga na corrente vertiginosa de uma linguagem conotativa de cujo ventre fecundo nasce, lembrando quadros de Bosch e Brueghel, o mundo casto e impudico, real e supra-­‐real, profundamente natural e terreno e, ao mesmo tempo, alucinatório e fantasmagórico. (ROSENFELD, 1970, p. 17)

Lisette Lagnado ao descrever a tela No vento e na terra II: Pintada no mesmo período que a série "As idiotas". Tomado no conjunto da obra de Iberê, este quadro, que é quase duplo de uma versão feita logo antes ["No vento e na terra I"], potencializa o inverno e a velhice. Seu céu é feito de tormento e de nuvem carregada, onde o movimento corre para a esquerda. No solo estéril, pela primeira vez na pintura de Iberê, jaz uma figura que parece escutar ruídos vindos do fundo do solo. Está virada para a direção oposta, no contra fluxo da massa de pinceladas. As pernas desproporcionalmente curtas em relação ao resto do corpo, conferem a figura o sinistro aspecto de um grotesco recém-­‐nascido agonizando. Monstro imundo, disforme, boschiano, entre réptil e homúnculo, esta criatura caída catalisa nesta posição tanto a impotência do artista quanto a tirania da consciência da morte. O fundo branco dos olhos, sugerindo que eles tenham sido extraídos, pela primeira vez também remete a um ser desalmado. Que forças derrubaram o ciclista? (LAGNADO, 1994, p. 117)

Hilda Hilst e Iberê Camargo transitaram pela estética da tragédia e da busca da verdade, o que lhes proporcionou uma sensação de isolamento nas intempéries de um mundo enganoso, "falso e inútil" (título da tela de Iberê : Tudo lhe é falso e inútil tirado de um poema de Fernando Pessoa). Hilda e Iberê construíram a imagética dos


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corpos em suas obras fundamentados na dor diante da maldade de um mundo injusto. Tanto as pinturas de Camargo quanto o livro de Hilst, interrompem violentamente a contemplação passiva. Não são obras que prezam a beleza nem a fácil digestão. Os corpos no pintor apresentam-­‐se disformes e muito longe dos padrões de beleza esperado pelas belas artes. Camargo busca uma síntese da imagem do corpo quando se vale de traços rápidos e indefinidos, fragmentando o todo do corpo. Como em Hilda Hilst que não escreve nada para ser lido no "bonde ou para se distrair". Tanto a escritora quanto o pintor, buscavam uma ruptura com a forma clássica de expressão. Como explica Alcir Pécora: Em Hilda, a experiência da poesia é a experiência da ruptura sucessiva de todos os pactos, não tem acordo nenhum, não tem acordo nem com os sentidos universais das palavras, nem com os sentidos universais dos conceitos, nem com os sentidos das palavras na língua, porque ela vai quebrando todas elas, porque ela explora a ausência dos sentidos, dentro do que parece organizado.27

É o que Jacques Derrida (1998) fala acerca dos textos de Artauld sobre a "boa inabilidade", que consistiria em desaprender o "princípio do desenho" que é o sistema das belas artes, sua técnica, suas normas e suas competências. Segundo Derrida, a boa inabilidade de Artauld atesta a malversação, pois trata-­‐se de uma outra memória e de um outro saber, de uma outra escola. E Derrida cita Artauld: Esse desenho como todos os meus outros desenhos não é o de um homem que não sabe desenhar, mas o de um homem que abandonou o princípio do desenho e que quer desenhar na sua idade, na minha, como se nunca houvesse aprendido nada por princípio, por lei ou por arte, mas unicamente pela experiência do trabalho. (DERRIDA, 1998, p.78)

Hilst e Camargo propunham um pensamento do próprio fazer do trabalho. Suas questões, no caso dele, vinham da própria pintura, no dela, da própria poética, seja lírica, prosaica ou dramática. Como diz Pécora: "a ideia decisiva de base ontológica 27

Itaú Cultural, publicado em 12 de março de 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qZEfqJq4sk8> Acesso em: 22/05/2016)


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na criação de Hilda Hilst é a própria poesia, o sentido da poesia no mundo. Esse sentido é uma poesia que se pensa o tempo todo. Ao fazer ela pensa sobre o fazer." (Idem) Mônica Zielinsky explica como este processo se dá no fazer do pintor. Nota-­‐se uma considerável aproximação nos fazeres desses dois artistas: Sua verdade [a de Iberê] estava no ato de pintar, nunca fora. Dos detalhes à percepção geral de cada quadro, qualquer parte de sua obra aponta uma violenta revolta, impressa nos relevos e incisões da tinta, nas cores e matizes de cada pincelada, assim como nos pigmentos jorrados diretamente das bisnagas no suporte dos quadros. [...] A dimensão experimental da pintura de Iberê é ação, é a forma dinâmica de agir sobre a matéria. Mas ao mesmo tempo, ela é ultrapassagem de limites, os do suporte e do material, para atingir a essência humana. Pouco importam para Iberê os jargões sobre o estatuto da pintura, eles pertencem a âmbitos extrínsecos a sua arte. Os problemas da pintura, para ele, são formulados exclusivamente pela própria pintura. (ZIELINSKY, 2003, p.109)

O que apresenta-­‐se aqui é o corpo da palavra, ou o corpo da pintura. Essa corporeidade que está ligada à eternidade, que é o que dura, o que fica, depois do último ato criativo. Hilst e Camargo questionaram a presença iminente da morte. Para Iberê pintar era um diálogo com a morte, e Hilda também tinha a morte como um dos pilares da sua poética. Porém, a obra, o corpo da obra, a tela, a palavra é o que sublima a morte. Esse corpo é o corpo que permanecerá no futuro. E esse corpo é constituído de passado. Tanto a escritora quanto o pintor têm a memória viva na constituição de suas obras, talvez uma forma de compreender isso esteja no modo peculiar com que estes dois artistas articularam memória pessoal, pintura e escrita. Ambos tinham uma relação produtiva com o passado. Seria como se o presente só pudesse existir na possibilidade do lembrar. Como nas frases bem correspondentes de Hilst e Camargo. No livro Com os meus olhos de cão (1986) no conto "Tu não te moves de ti", a autora dedica o conto "À memória de meus mortos":

Pra onde vão os trens meu pai? para Mahal, Tami, para Camiri, espaços no mapa, e depois o pai ria: também para lugar algum meu filho, tu podes ir e ainda que se mova o trem tu não te moves de ti. (HILST, 1986, p. 113)


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No conto "O tormento de Deus" do livro A gaveta dos guardados (2009), de Iberê Camargo, o narrador conta que quando morreu chegou ao outro lado, e uma entidade satânica de nome Tártaro o colocou sentado em uma cadeira e lhe apresentou todo o seu passado, tudo que ele fizera de desenhos, pinturas, textos, cartas etc. Desesperado, o homem estende a mão e suplica por sua paleta, seus pincéis, quer retocar toda a sua obra, refazer seus quadros, corrigir seus erros. O diabo se afasta e ouve-­‐se um gargalhada. Então uma voz murmura em seu ouvido, e essa voz é confundida com a própria voz de Iberê (prática muito comum em Hilda também): "o passado vive em ti", assim como também: "jamais poderá deixar de ser". (CAMARGO, 2009, p. 113) Juntas, essas duas frases, a do pintor e da escritora, oferecem a dimensão da importância desse passado. A primeira vista parece uma condenação, mas é, ao mesmo tempo, a única forma de poder existir. Para agir no presente parece que, tanto Hilst quanto Camargo, tinham sempre que equacioná-­‐lo com a memória. Como diz Iberê Camargo: "No meu andarilhar de pintor, fixo a imagem que se me apresenta no agora e retorno às coisas que adormeceram na memória, que devem estar escondidas no pátio da infância." (LAGNADO, 1994, p. 24) Ou como para Hilda Hilst, que escrever é "antes de tudo a procura de uma expressão para o já sentido e apreendido." (HILST, 2013, p. 8) Para o pintor a construção da imagem do corpo se dá pela transfiguração, para a escritora, pela transmutação, que é algo situado sempre atrás das aparências. Uma espécie de síntese para ele, ou uma subversão da língua para ela. Longe de um simples testemunho visual, ou de um relato qualquer ao alcance de quem quer que seja. Assim, a imagem do corpo no livro Fluxo-­‐floema e nos trabalhos de Iberê Camargo produzidos na sua última fase, giram em torno da poética do corpo. Tanto em Hilst quanto em Camargo, essa poética corporal recusa uma unidade estável, ou seja, preza pela fragmentação. Em ambos tem-­‐se a imagem do corpo grotesco, disforme, obeso de gordura e sentido, que vaga solitário, com medo, pela face de uma terra sinistra e violenta, impondo a esse corpo as mais sádicas torturas. Um corpo que vive na angústia da morte, que ameaça acontecer a qualquer momento. Como na fala


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de Camargo: "Pinto porque a vida dói", ou: "Se eu me interesso pelo desespero é apenas porque às vezes me ocorre estar desesperado", ou ainda: "Ao tentar desfibrar a dor, fazemos parte dela." (CAMARGO, 1994, p. 15) Ou como na fala de Hilda: "Para mim escrever me provoca mal estar, medo mesmo. É assim mais ou menos como o dia em que a gente vai fazer uma operação. Na manhã desse dia dá aquele frio escuro lá dentro da gente." (HILST, 2013, p. 29) Ou também: "Na poesia, na obra de arte, há uma terra de ninguém, cantos obscuros que para serem iluminados necessitam de sensibilidades 'antenadas' à nossa." (Idem, p. 30) Ou na fala do personagem do conto "O Unicórnio" do livro Fluxo-­‐floema: ele dizia: existir é sentir dor, existir não é ficar ao sol, imóvel, é morrer e renascer a cada dia, é verter sangue, minha amada irmã. [...] A dor é patrimônio nosso, é assim: eu sinto dor e eu existo assim com esse meu contorno. Eu sinto dor e todos os dias recebo vários golpes que me provocarão infinitas dores. Recebo golpes. Golpeio-­‐me. Atiro golpes. Existir com esse meu contorno é ferir-­‐se, é agredir as múltiplas formas dentro de mim mesmo, é não dar sossego às várias caras que irrompem em mim de manhã à noite. Levante-­‐se comece a ferir esse rosto. (HILST, 2003, p. 169-­‐170)

Figura 34 -­‐ Iberê Camargo, Eu, carretéis e Figura 33 -­‐ Iberê Camargo, Eu e signos, 1981. e dados, 1983. Óleo sobre tela, 65 x 92 cm. Óleo sobre madeira, 30 x 42 cm.

As figuras 33 e 34, são duas pinturas de Iberê Camargo dois autorretratos. Nas imagens a cabeça do pintor ocupa 1/3 da tela e apresenta-­‐se fragmentada no canto direito, com uma secção no alto. Pode-­‐se perceber a tensão presente tanto no semblante do rosto quanto nas cores empregadas pelo pintor. A figura mostra-­‐se encurralada e esmagada por formas geométricas pintadas de forma agressiva e ameaçadora. Podemos sentir a dor presente nestas cabeças que, postas de lado e espremidas no canto da tela, representam um desespero claustrofóbico. As imagens


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parecem verter sangue, pela predominância do vermelho, tanto nas carnes quanto no cenário. Não há diferença de planos. Tudo é posto no mesmo nível. Fundo e figura se misturam. Nestes autorretratos de Camargo, como no texto de Hilst, não há sossego, e as faces irrompem com feridas abertas por golpes de uma existência. Sim, pode-­‐se sentir que realmente a vida dói. O medo é um sentimento presente em todos os personagens dos contos de Fluxo-­‐ flema e também nos personagens de Camargo. O medo em Hilst e Camargo vem atrelado à angústia de viver. O medo está vinculado a toda a violência do mundo, e a uma relação com um Deus, do tipo criador e criatura. Em todas as narrativas, tanto de Hilst quanto de Camargo, o medo vem do abandono de um Deus sem compaixão, que decide a vida de quem nada sabe, nem pode, contra ele. No conto "Sacos de Deus", de Iberê, do livro No andar do tempo (2012), o pintor/escritor narra um Deus reclinado sobre um confortável almofadão, que tira de saquinhos papeizinhos aleatórios para decidir o futuro de suas criaturas. Assim começam os nossos padecimentos sem explicação, sem causas. Chamam a isso de destino. Desde a criação do mundo, Deus entretêm-­‐se neste jogo: Castigar e premiar suas criaturas. Assim distribui catapora para uns, sarampo para outros e males muito maiores. Às vezes, como os governos dos povos, consegue algum benefício. Mas, como acontece aqui na terra, lá no alto a sorte também não é cega. (CAMARGO, 2012, p. 15)

O medo de Deus se vê presente no conto "Floema" de Hilda Hilst, onde o personagem Koyo tenta um diálogo com Deus, que ele chama de Haydum: Eu tenho fome. Escancaro a boca, me deito, as narinas abertas, grito: porco Haydum, chacal do medo, olha-­‐me na cara, não vês que dia a dia estou secando, que a cadela da noite avança a língua? Se eu digo medo, sentes o cheiro? (HILST, 2003, p. 231) O corpo abandonado, o corpo-­‐medo. Na passagem do conto "Lázaro", de Fluxo-­‐ floema, o próprio Lázaro descreve seu funeral, seu corpo enfaixado e carregado pelas ruas de sua aldeia, os moradores comentando a sua passagem. Até que chegam à sua sepultura e depositam lá seu corpo morto: "Chegamos. Tenho medo. Um pequeno vestíbulo. Depois a rocha. Dentro da rocha, um lugar para o meu corpo. Olho pela última vez a claridade da minha aldeia." (HILST, 2003, p. 115)


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Dentro da sua sepultura Lázaro se encontra com Rouah, o Maldito, uma entidade grotesca que pode muito bem representar o Diabo, e que pergunta: "É teu esse corpo?" (Idem, p. 116) Lázaro está em pânico. Nesta passagem as mãos de Rouah são partes consideráveis na narrativa: "as mãos compridas, afiladas, glabras, eram absurdas aquelas mãos naquele corpo." (Idem) Pelas mãos, Lázaro tem medo de se reconhecer em Rouah, (HILST, 2003, p. 120) quando Lázaro ressuscita, pois é através das mãos que se dá o milagre: O maldito: que ele não me toque a cabeça. Que ele não me toque a cabeça, que ele não me toque a cabeça, que ele não me toque a cabeça. Encosto as minhas duas mãos nas mãos de Rouah. Encosto o ventre. Encosto o peito. E ouço as minhas palavras: irmão gêmeo de Rouah, eu preciso voltar, eu devo voltar. E de súbito não o vejo mais. (Idem)

Na pintura de Iberê Camargo Homem (Fig. 81) pode-­‐se perceber uma figura central com as mãos abertas voltadas para a frente e sua cabeça voltada para trás. Constatamos que a figura, de boca aberta e olhos arregalados, está com medo. Atrás dela, à direita, na direção de seus olhos, vemos uma figura estranha, com uma cabeça quadrada, azul escuro, contornada de branco, provavelmente com tinta aplicada diretamente do tubo. Os olhos negros e a sobrancelha grossa e sisuda. A boca com dentes cerrados e verdes causando uma sensação desagradável e estranha. Ao fundo, em tons terrosos, temos a impressão de um lugar fechado e claustrofóbico. A esquerda nota-­‐se os signos usuais de Iberê: o carretel e o dado, símbolos da sua memória, como já vimos.


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Figura 81 -­‐ Iberê Camargo, Homem, 1984. Óleo sobre tela, 60 x 120 cm.

As figuras são pintadas de forma grotesca, onde a representação mimética dá lugar à expressão. O que Camargo pretende com isso é afastar o caráter figurativo, ilustrativo, narrativo e assim buscar o figural. Segundo Deleuze (2007, p. 12), o figurativo está ligado à representação, implica relacionar uma imagem a um objeto e buscar ilustrá-­‐lo. Já o figural, busca a sensação que emana dos objetos e dos corpos. Na pintura de Camargo, nota-­‐se a busca pelo figural, no sentido de uma forma pura, e expressiva. Camargo, como Hilst, busca a sensação e não a representação, como explica Deleuze: "pintar a sensação ou registrar o fato: é uma questão muito precisa e difícil saber por que uma pintura toca diretamente o sistema nervoso." (Idem p. 43) Se, segundo Camargo, a deformação é a expressão da forma, e Deleuze diz que a forma remete à sensação (figura), logo: "É por isso que a sesação é mestra de deformações, agente de deformações do corpo." (Idem) Isso vale para cada quadro, para cada figura. Em Camargo existe o horror, o medo e a violência, porém, as figuras sentadas, agachadas ou deitadas não sofrem nenhuma tortura nem brutalidade, nada de visível se dá. Assim, efetuam melhor a potência da pintura. Como explica Deleuze:


213 É que a violência tem dois sentidos muito diferentes: quando falamos de violência na pintura, isso não tem nada a ver com a violência da guerra. A violência do representado (o sensacional, o clichê) se opõe à violência da sensação. E esta se faz só na ação direta sobre o sistema nervoso, os níveis pelos quais ela passa, os domínios que atravessa: sendo ela mesma uma Figura, ela não deve nada à natureza de um objeto figurado. É como em Artauld: a crueldade não é o que acreditamos ser, depende cada vez menos do que está representado. (DELEUZE, 2007, p. 21)

Portanto, pode-­‐se pensar que Camargo e Hilst perseguem a expressão dos afetos, ou seja, sensações e instintos, e, no caso da obra desses dois artistas, baseadas na dor e na violência a histeria é uma forma de produzir tais sensações no leitor/expectador. E Deleuze explica que histeria seria essa: O que queremos dizer é que há uma relação especial da pintura com a histeria. É muito simples. A pintura se propõe a destacar diretamente a presença da representação, para além da representação. O sistema das cores é ele mesmo um sistema de ação direta sobre o sistema nervoso. Não é uma histeria do pintor, é uma histeria da pintura. Com a pintura a histeria torna-­‐se arte. Ou melhor, com o pintor a histeria se torna pintura. O que a histeria é totalmente incapaz de fazer, um pouco de arte, a pintura o faz. (DELEUZE, 2007, p. 27)

Como na Figura 81, Homem, e também na Figura 82, Medo, que representa uma cabeça em pânico. Suas mãos também se evidenciam representando o pavor, quando o personagem põe as mãos nas laterais da cabeça num gesto de desespero. Na pintura, Figura 82, o personagem aparece em um ambiente fechado, posicionado à direita da tela. À esquerda os habituais signos de Camargo. A temática da mão é recorrente em Fluxo-­‐floema e em muitas pinturas da fase final de Iberê Camargo. A imagética da mão, segundo Eliane Robert Moraes, remete a uma tópica antiga, desenvolvida por vários filósofos. Aristóteles, por exemplo, afirma que a mão possibilitou ao homem tornar-­‐se senhor da natureza, pois "foi a criatura capaz de adquirir o maior número de técnicas que a natureza dotou do utensílio efetivamente mais útil, a mão". (MORAES, 2002, p. 190)

Segundo a pesquisa de Eliane, vários autores concordam que a supremacia humana fundou-­‐se em definitivo quando o homem assumiu a postura ereta: "assim,


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a conquista da verticalidade estaria na origem da primeira forma humana, ou seja, da mão." (MORAES, 2002, p. 191) Porém, tanto em Iberê quanto em Hilda, não há orgulho algum desta mão capaz dos mais horrendos atos de barbárie. Nas bombas de Napalm, nas violências das guerras e das explorações do homem pelo homem. Assim, a mão torna-­‐se a parte menos humana do ser humano. Semelhante recusa encontra-­‐se num poema de Robert Desnos, que denuncia a sujeição das mãos às atividades mais produtivas da sociedade burguesa: Existem mãos terríveis / Mãos manchadas de tinta do estudante triste / Mão vermelha sobre a parede da câmara do crime / ... / Mãos abertas / Mãos fechadas / Mãos abjetas que seguram uma caneta / Ó minha mão você também / Minha mão com suas linhas misteriosas / Por quê? Antes as algemas. (DESNOS apud MORAES, 2012, p.193)

Em seu Dicionário de símbolos (2016) Chevalier e Gheerbrant explicam que a simbologia da mão exprime as ideias de atividade. A palavra manifestação tem a mesma raiz que mão. Manifestar-­‐se representa aquilo que pode ser alcançado pela mão. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 589) Nas artes plásticas, segundo os autores, as mãos simbolizam atitudes interiores. As mãos do homem estão ligadas ao conhecimento, à visão, quando estão ligadas à linguagem. Todas as civilizações com maior ou menor sutileza, utilizaram da linguagem das mãos, dos gestos e das atitudes. A mão é como uma síntese, exclusivamente humana, do masculino e do feminino; ela é passiva naquilo que contém; ativa no que segura. Serve de arma e de utensílio; ela se prolonga através de seus instrumentos. Mas ela diferencia o homem de todos os animais e serve também para diferenciar os objetos que toca e modela. Mesmo quando indica uma tomada de posse ou uma afirmação de poder -­‐ a mão da justiça, a mão posta sobre um objeto ou um território, a mão dada em casamento -­‐ ela distingue aquele que ela representa, seja no exercício de suas funções, seja em uma situação nova. (Idem, 592)

As mãos, fragmento do corpo, tanto em Camargo como em Hilst, proclamam esta parte do homem. Sua marca pode indicar um rastro humano, o que diferencia o


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homem dos outros animais e também simboliza muitas coisas como o poder, a opressão, o medo, a técnica e as artes. A manifestação do homem por excelência.

Figura 82 -­‐ Iberê Camargo, Medo, 1985. Óleo sobre tela, 65 x 92 cm.

Tão humana mão. Como nas pinturas rupestres da "Cueva de las Manos", na Patagônia. A presença humana impressa na história. Como na passagem do conto "O Unicórnio":

É difícil diante do teu corpo, é muito difícil. Daqui a pouco eu terei o flanco repousado, daqui a pouco eu terei a boca aberta, os olhos sonolentos e estarei sujo como a humanidade inteira, sujo, de mãos abertas e preparadas para me oferecer à humanidade inteira. (HILST, 2003, p. 166)

O crítico Ronaldo Brito, também explica essa questão do corpo humano em Iberê:


216 Sintomaticamente algumas telas assumem mesmo o aspecto de inscrições rupestres, a testemunhar a perplexidade primitiva da fera humana. Nada, porém, mais distante de qualquer brutalidade tosca do que esse virtuosismo pictórico, talvez inédito na história da arte brasileira. Pois toda essa atmosfera sombria, pós-­‐ hecatombe nuclear, termina prontamente redimida pela intensidade do seu brilho estético -­‐ o que quer que ainda sobre de autêntico e positivo na ideia de beleza que se encontra aqui. (BRITO, 2005, p. 227)

Figura 83 e 84 -­‐ Cueva de las Manos28

A série Hora é composta por quinze quadros. Neles pode-­‐se observar a cabeça fragmentada, os símbolos recorrentes da memória de Iberê Camargo como os dados, carretéis, setas e principalmente as mãos. Tudo isso em um espaço fracionado:

Figura 85 -­‐ Iberê Camargo, Hora V, 1983. Óleo sobre tela, 95 x 212 cm

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Crédito das fotos disponível em: < http://ourancientworld.com/Settlement.aspx?id=739> Acesso em 19/08/2018


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Figura 86 -­‐ Iberê Camargo, Hora VIII, 1984. Óleo sobre tela, 93 x 132 cm.

Figura 87 -­‐ Iberê Camargo, Hora VI, 1984. Óleo sobre tela, 95 x 212 cm.


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Figura 88 -­‐ Iberê Camargo, Hora VII, 1984. Óleo sobre tela, 93 x 132 cm.

Nestas pinturas da série Hora, que são numeradas com números romanos, pode-­‐ se constatar a correspondência das pinturas com os textos de Hilst. O pintor trabalha em um fluxo de consciência, aplicando as tintas na tela, raspando e aplicando novamente. Observa-­‐se também os signos utilizados por Camargo, que remetem à sua memória e ao seu corpo. Observa-­‐se que em muitas pinturas ele se valeu do seu próprio autorretrato. Suas coisas, seu passado. Pode-­‐se ver ali seus carretéis, seus dados, sua mão impressa na parede úmida terrosa da tela. Como em "Lázaro" de Hilda Hilst, Camargo toca seu passado com as mãos. Na série, os carretéis, brinquedos da sua infância longínqua, vem aqui se metamorfosear em ampulhetas e ossos. Em toda a série Hora, como no conto "Floema" de Hilst, vemos a fragmentação do corpo: cabeças, mãos, secções orgânicas. Torna-­‐se visível também a fragmentação do tempo e do espaço, pois tanto na escritora como no pintor não há representação de um espaço determinado ou um tempo específico. Em Hilst não se sabe quem fala, para quem fala, quem responde,


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onde ou quando. Tudo é fragmentação e fluxo. Se o leitor não se arriscar a nadar contra a correnteza, é levado e dificilmente conseguirá se agarrar à algo. Em Hilst nada é dado ou de fácil compreensão, o tempo todo a escritora exige do lastro intelectual do leitor. No trecho inicial de "Floema": KOYO, EMUDECI. Vestíbulo do nada. Até... onde está a lacuna. Vê, apalpa. A fronte. Chega até o osso. Depois a matéria quente, o vivo. Pega os instrumentos, a faca, e abre. Koyo, não entendes, vestíbulo do nada, eu disse, aí não há mais dor, aprende na minha fronte, o que desaprendeste. Abre. Primeiro a primeira, incisão mais funda, depois a segunda, pensa: não me importo, estou cortando o que não conheço. Koyo, o que eu digo é impreciso, não é, não anotes, tudo está para dizer, e se eu digo emudeci, nada do que eu digo estou dizendo. (HILST, 2003, p. 221)

Figura 89 -­‐ Iberê Camargo, Grito, 1984. Óleo sobre tela, 132 x 93 cm

"Grito: bando de inúteis, corja porca" (HILST, 2003, p. 31) "Grito três vezes: Marta! Marta! Marta! Não me ouve. Rolam a pedra. Fecham a entrada. Tudo está terminado. É verdade. Tudo está terminado." (Idem, p. 116) "Lázaro grita. Um grito avassalador. Um rugido. Arregala os olhos e vê Marta. Ela está de pé, junto à cama. As duas mãos sobre a boca." (Idem, p. 140)


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O grito. Nestas três passagens, protagonizadas pelo grito, temos três diferentes situações do grito. Na primeira o personagem se revolta, levanta e grita "corja porca!" O grito como símbolo de uma reação, o grito como um protesto. O segundo grito, de Lázaro, é um grito de aflição, um grito de desespero e medo do desconhecido. O grito de um morto de dentro da sepultura quando esta se fecha e ninguém ouve. Porém o terceiro grito é um grito maléfico paralisante, um grito de horror extremo, um grito de um acordar de um pesadelo absurdo. Um rugido. É preciso considerar a questão do grito, tanto no pintor quanto na escritora. Na pintura de Camargo, Grito (figura 89), pode-­‐se observar a mesma composição das pinturas da série Hora: as mãos fragmentadas, a cabeça do pintor, porém não aparecem os símbolos usuais do carretel, dados, setas nem o X. O que se apresenta é uma cabeça que grita. O fundo abstrato não pertence a nenhuma paisagem, funde-­‐se à figura, ou melhor, às figuras, pois não há uma única figura, há uma reunião de fragmentos corporais de forma violenta, imersos em um vermelho escuro, sanguinolento e composto de pinceladas brutais. A pintura é composta praticamente de vermelho com alguns traços em branco, provavelmente feitos com a própria bisnaga da tinta, algumas nuances de azul violáceo e também traços de amarelo. O preto da tela é uma tonalidade bem escura do vermelho, ou seja, um vermelho bem escuro impregnado de tinta preta. Como apresentei anteriormente, as cores nesta pintura funcionam como uma histeria. Uma sensação disposta a atingir o sistema nervoso do expectador. O vermelho é uma cor que é universalmente considerada como símbolo fundamental do princípio da vida, com sua força, seu poder e seu brilho, o vermelho cor de fogo e de sangue. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 944) O vermelho que representa o ventre, onde morte e vida se transmutam uma na outra. O vermelho escuro do sangue profundo que é escondido. O sangue escondido é a condição da vida. Espalhado, significa a morte. Segundo Chevalier e Gheerbrant, no dicionário de símbolos: Não há povo que não tenha expressado -­‐ cada um à sua maneira -­‐ essa ambivalência de onde provém todo o poder de si, intimamente ligados, os dois mais profundos


221 impulsos humanos: ação e paixão, libertação e opressão; isso, as bandeiras vermelhas que tremulam ao vento do nosso tempo o provam! [...] O vermelho denota, entre as virtudes espirituais, o ardente amor por Deus e pelo próximo; entre as virtudes mundanas valentia e furor; entre os vícios a crueldade, o assassinato e a carnificina; entre as competições do homem, a cólera. A sabedoria dos bambaras diz que a cor vermelha faz pensar no calor, no fogo, no sangue, no cadáver, na mosca, na irritação, na dificuldade, no rei, naquilo que não se pode tocar, no inacessível. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 946)

Em Fluxo-­‐floema também se faz presente o vermelho, a víscera, o sangue. Como o vermelho no conto "Floema" que se faz vida: A garganta é um muito que me deste, se estás me ouvindo me entendes, a garganta é delicada, uns tons mais altos, outros mais escuros, é vermelho -­‐ clara, úmida, escorregadia, tudo escorrega para baixo, soubeste fazê-­‐la muito bem, matéria delicada essa que canta com esse som, e pode cantar, às vezes te louva, mas a maior parte dos vivos que sabem da própria garganta não te louva [...] temos a cor da víscera, somos crus, abaixamos em vão nossas cabeças, tu disseste, pai, que a cabeça dos homens é antena, antena esfaimada de futuro. (HILST, 2003, p. 229)

Como também o vermelho no conto "Fluxo" se faz morte: (Ruiska) estás sozinho como um porco que vai ser sangrado, estás sozinho como um boi que vai ser comido, sabes como é o boi? Abrem a veia, deixam-­‐no sangrar, enquanto isso todos conversam, amam, tu és um boi, Ruiska, e te imaginas homem, pedes todos os dias que te deem as mãos, suplicas, procuras o Deus, ele está aí mesmo no teu sangue, na tua natureza de porco, nesse chão escuro por onde escorrem os teus humores, no teu olho revirado, ai, acalma-­‐te, preserva-­‐te, estás em emoção, [...] o teu caminho terá um só destino, a morte, ela sim é grandiloquente, ela é rainha, chega a qualquer hora, oh, não te exaltes, recebe-­‐a, tens mais ossos que carnes? (HILST, 2003, p. 70-­‐71)

O vermelho na pintura Grito (figura 89) tende dos tons claros da carne viva, da força, para os profundos vermelhos, escorridos pela terra, pelas entranhas da terra vermelha ferrosa, como o sangue da veia aberta. Nas pinturas de Camargo e nos textos de Hilst, não se trata de reproduzir ou inventar uma forma ou uma cena específica, não há uma comunicação direta ou uma mímese. Tanto o pintor quanto a escritora procuram única e exclusivamente captar a força das coisas, das palavras e das cores. Gilles Deleuze, em seu livro Francis


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Bacon: Lógica da sensação (2007), analisa a obra de Francis Bacon (1909-­‐1992) por encontrar no pintor irlandês um exercício de pensamento que pretende neutralizar a narração, a ilustração e a figuração. No livro, Deleuze situa Bacon na história da pintura destacando Cézanne como o pintor que mais se aproxima de Bacon, pela importância que a sensação tem em suas obras. Esse livro de Deleuze foi de grande valia para esta tese pois, além de conceituar a sensação na obra de Bacon, Deleuze estabelece uma aliança entre Bacon e literatos como Kafka, Artauld, Beckett, escritores muito próximos da poética hilstiana e da poética iberiana. Essa aliança entre pintura e literatura, proposta por Deleuze, aproxima ainda mais seus conceitos da pesquisa proposta por esta tese. Iberê Camargo cita Francis Bacon em sua entrevista à Lisette Lagnado, apesar de não reconhecer diretamente certa afinidade, pois Camargo não era afeito a comparações de seu trabalho com outros artistas. Segundo Lagnado (1994, p. 31) pode-­‐se notar muitas correspondências entre os dois artistas, e apresenta características que aproximam sim, Camargo de Bacon. Afinal, como Iberê, Francis Bacon era um figurativo, que tem em seu trabalho figuras trágicas. Um artista pessimista que produziu uma obra repleta de carga dramática. Deleuze explica em seu livro que a questão da separação das artes, no caso de alguma hierarquia, perde toda a importância. Segundo Deleuze, o que importa nas artes, seja na pintura, literatura, música e todas as outras modalidades criativas, é a captação das forças. E, para ele, a força nas artes está em relação estreita com a sensação. "É preciso que uma força se exerça sobre um corpo, na forma de uma onda, para que haja sensação." (DELEUZE, 2007, p. 30) Deleuze cita a célebre frase de Paul Klee: "não mais trazer o visível mas tornar visível." (Idem) É assim que a literatura deve tornar verbais as forças não verbais e a pintura, visíveis as forças invisíveis. É o que Camargo, Hilst, Bacon, Cézanne, Klee, Artauld, Kafka, Dostoiéviski e muitos outros artistas perseguiram ao longo de suas obras: o som de um grito, como pintá-­‐ lo, como escrevê-­‐lo? Fazer ouvir o som das cores na música, como fazer ouvir o vermelho? Segundo Deleuze, Bacon abre mão de pintar o horrível visível para pintar o grito. Pintar o grito, seria captar ou reter uma força invisível. Por isso pode-­‐se aproximar


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os procedimentos de Francis Bacon aos de Iberê Camargo e de Hilda Hilst: nenhum deles vê razão para pintar os horrores do mundo, pois sabem que a figuração visível é secundária na arte e tem cada vez menos importância. Para esses artistas, é importante para a expressão de uma sensação sair do figurativo, da ilustração e da narração factual. É Kafka, segundo Deleuze, "que fala em detectar as potências diabólicas do futuro que bate à porta. E cada grito as contém em potência." (Idem, p.32) Como nas pinturas de Camargo e nos textos de Hilst, há a escolha do grito ao invés do horror, a violência da sensação dos corpos ao invés daquela do espetáculo: "O meu corpo é precário, é pouco, estende um grito, lança matéria na minha semivida." (HILST, 2003, p. 239) A imagem do corpo, nas pinturas de Iberê Camargo e nos textos de Hilda Hilst, é a imagem do precário, da "boa inabilidade" e da rejeição ao figurativo. É um embate contra a "pintura que só sabe pintar", segundo Artauld. Derrida (1998) explica esse pensamento de Artauld, que alinha-­‐se com o pensamento de Deleuze acerca da sensação: Esse ao mesmo tempo olho e ouvido faz da arte pictórica uma arte que transcende a pintura, "a pintura que só sabe pintar". Essa última expressão fala de uma certa literalidade da pintura; tem aqui um valor negativo que em outros lugares parece inverter-­‐se. Mas seu sentido na verdade deve ser mudado. Para além desse fechamento secular de uma pintura que só sabe pintar, a pictografia que se dirige também ao ouvido torna-­‐se o modelo de toda a arte, particularmente do teatro: "Digo em todo caso que essa pintura é o que o teatro deveria ser, se ele soubesse falar a língua que lhe pertence. [...] fazer a linguagem servir para exprimir o que ela não exprime habitualmente: é servir-­‐se dela de maneira nova, excepcional e não costumeira, é dar-­‐lhe suas possibilidades de abalo físico. (DERRIDA, 1998, p. 56)

Assim, a imagem do corpo em Camargo e Hilst, foge à literalidade, busca a expressão fora da técnica, mas na deformação. A deformação do corpo que busca abater a verdade sobre o corpo, a fim de tornar visível as forças que não o são. Tanto para o pintor quanto para a escritora, um grito se estende para além do horror espetacular e visível, um grito que emerge da matéria pastosa das tintas e das entranhas das palavras ditas sem sentido, sobre a nossa semivida, e postas ao sabor de um acaso dirigido num fluxo ininterrupto da memória que não pode ser mudada


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ou apagada. Em Hilst e Camargo a vida, ou a semivida, grita para a morte. E ambos, como em Francis Bacon, Beckett ou Kafka, quando representaram o horrível, a multidão, a prótese, a queda ou a ralé, também deram à vida um novo poder de rir extremamente direto: o riso grotesco. Os corpos que sorriem em Hilst e Camargo são corpos desesperados. A ironia toma o lugar do sorriso. Georges Minois, em seu livro História do riso e do escárnio (2003), demonstra que a ironia, ao longo da história, tem sido destrutiva: no dualismo entre o inferior e o superior a ironia sabota o superior em nome das necessidades do inferior, e assim que o superior é abatido, um novo dualismo se instaura e a ironia retoma seu trabalho de sapa. Ela acaba por tornar tudo relativo: religião, Estado, razão, valores e o próprio homem. (MINOIS, 2003, p. 571)

Segundo Minois (2003), o princípio da ironia é o pessimismo. É uma questão individual do ser. Para o escritor, a ironia não é zombaria: no fundo, leva as coisas a sério, mas dissimula sua ternura. (Idem, p. 570) O espírito moderno coincide cada vez menos com o mundo; ele não se "cola" mais ao real; ironiza sobre tudo, porque tudo é virtual, e a fronteira entre virtual e real está cada vez mais diluída. Assim, a atitude irônica torna-­‐se quase obrigatória -­‐ questão de sobrevivência para o espírito humano, que deve destacar-­‐se dessa nova vizinhança, para não ser absorvido por ela. "Se tomássemos as coisas como elas realmente são, a vida moderna não comportaria mais nem absurdo nem ironia" escreve Witkin. Mas então seríamos devorados pelo mundo; a ironia é indispensável para nos manter distantes em relação ao meio, cada vez mais virtual, que nos circunda. Quem não é irônico em relação à internet será devorado por ela. (MINOIS, 2003, p. 571)

Hilda Hilst e Iberê Camargo são dois artistas que, na vida e na arte, tiveram uma postura bastante irônica em relação às regras de uma sociedade desigual e desumana. Ambos encararam, com ironia ácida e feroz, religião, Deus, valores sociais, a arte, e sobretudo o próprio homem. Tanto Hilst quanto Camargo, foram contundentes, virulentos e polêmicos. A postura dos dois perante a vida e a arte aparece de forma similar na maioria das entrevistas. Mostraram-­‐se pessoas de personalidade forte, porém com um humor sagaz. Ambos diziam não suportar a


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burrice e não hesitavam em responder a uma crítica. O riso grotesco, na obra de Hilst e de Camargo é um riso irônico, o riso da Idiota (pintura de Camargo), o riso da caveira. A imagem do corpo-­‐caveira também é comum em Hilst e em Camargo. No livro, o riso da caveira tem como objeto os dentes, uma metáfora recorrente em toda a obra da autora. Como na passagem: "o dente branco à mostra, o riso sempre." (HILST, 2003, p. 232) Em outros livros da autora, a imagem dos dentes também se evidenciam como no conto "Com meus olhos de cão" (1986), do livro homônimo, onde o protagonista declama:

Dentes guardados. Não acabam nunca se guardados. Na boca apodrecem. Na caixinha de metal aquele dente lá, para sempre. [...] Vou pegar aquele meu dente na gaveta. Agora? Agora sim Amanda. (HILST, 1986, p. 19)

Amós, outro personagem que também tinha problemas com os dentes: Amós passou a língua sobre as gengivas. Também deveria ir ao dentista, (claro que ele tem que ir) com a idade tudo vai piorando ele chegou a me dizer da última vez, quando foi mesmo? (HILST, 1986, p. 14)

Na crônica de Cascos & Carícias (1997), "Por que, hein?", Hilda termina com uma parábola-­‐pergunta: "Por que os dentes caem quando estamos velhos, mas ainda vivos, e permanecem eternos nas nossas límpidas e luzidias caveiras? (HILST, 2007, p. 28) Esta é, de certa forma, a questão central do último livro da escritora -­‐ Estar sendo. Ter sido (1997) -­‐ que, não por acaso, põe em cena um personagem às voltas com seus problemas dentários. Na figura do velho e decrépito Vittorio concentram-­‐se os impasses que ela vem investigando desde Fluxo-­‐floema (1970), mas com uma radicalidade que leva ao extremo a violência poética de sua interrogação da morte: "e que morrendo meio louco e aos poucos vai perder dentes e cabelo... " (HILST, 1997, p. 30) ou em outra passagem: "perguntei hoje ao Matias se tiram o ouro dos dentes quando se é cremado." (Idem, p. 47) Como explica Eliane Robert Moraes (1999) no seu artigo "Na medida estilhaçada":


226 Na iminência de ficar desdentado, o personagem fica impedido de acalentar até mesmo a derradeira esperança de permanecer através dos dentes; precipitado no vazio, ele depara com o oco da caveira, figura paradoxal da ausência que traduz, no plano humano, a alteridade absoluta do Cara Cavada. Tal é, pois, a ambiguidade excessiva que recobre os dentes: se, de um lado, eles representam a única possibilidade de eternizar a matéria, de outro, viver significa necessariamente deixá-­‐los apodrecer. (MORAES, 1999, p. 124)

A caveira, o Cara Cavada, o que sorri sempre, está presente nas pinturas de Iberê Camargo e na obra de Hilda Hilst. Tanto para a escritora quanto para o pintor, a caveira, os dentes expostos, a face do monstro, adquirem uma conotação dúbia, como explica Moraes (2002): Ela [a caveira] reúne numa mesma erupção o nascimento e a morte. Isso significa que, neste caso, a caveira não é apenas um símbolo fúnebre mas também, e ao mesmo tempo, uma evocação da vida: na qualidade de signo que identifica o gênero humano, ela constitui o imperecível, o que perdura do corpo mesmo depois da morte. Seria difícil encontrar melhor imagem para expressar a existência eterna, da matéria -­‐ ou, se quisermos, da coisa humana -­‐ assim como para sustentar, com tal poder de síntese, a tarefa dialética de desmentir e manter os traços da figura humana. (MORAES, 2002, p. 206)

Iberê Camargo e Hilda Hilst tinham em comum a marca da caveira, o estatuto da vida com a certeza da morte. A angústia de viver, como um ser para a morte. Ambos tinham relação estreita com a obra do pintor irlandês Francis Bacon. Em seu último livro Estar sendo. Ter sido (1997), a autora, como de costume, cita vários escritores e artistas, dentre eles Francis Bacon: tu estavas no canto da sala com o copo de uísque na mão, naquele canto, aqui da sala onde temos o Gruber, o desenho da menina famélica (sempre detestei este desenho, detesto fome, pobreza, riscos negros num quadro, detesto Francis Bacon também, aqueles horrores que os pedantes gostam, se vissem alguém desfocado assim mijariam-­‐se nas calças, mas ficam com ós, ais, belíssimo, não? e o horror ali, todo desfazido e nauseabundo). (HILST, 1997, p. 21-­‐22)

Nota-­‐se que, além de Bacon, Hilst cita o artista e gravador brasileiro Mário Gruber (1927-­‐2011), que também tem uma obra marcada pelo expressionismo e pelo realismo social. O personagem fala do horror de Bacon, da cabeça desfocada, deformada. Fala da temática expressionista, da desigualdade social, da fome. Fala


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também das pinceladas fortes de cor preta, ressaltando o desenho, comuns em Bacon e Camargo. Parece que há uma ligação tripla entre Hilst, Camargo e Francis Bacon. E é exatamente por isso que podemos entender muitos aspectos dos procedimentos da escritora e do pintor brasileiro pelos pensamentos de Gilles Deleuze (2007) acerca da pintura de Bacon. Deleuze fala do sorriso em Bacon, "que não vemos mais do que o sorriso abjeto." (DELEUZE, 2007, p. 9) Um sorriso, segundo Deleuze, para além do grito, que tem a mais estranha função de assumir o despedaçar-­‐se do corpo. Para ele, Bacon sugere que se trate de um sorriso histérico. Sorriso abominável, a abjeção do sorriso. (Idem p. 15). O riso da caveira, o Cara Cavada que sempre nos sorri lembrando da certeza da nossa finitude. O riso grotesco das Idiotas de Camargo, com o rosto retorcido e um esgar ao mesmo tempo torturado e ameaçador. Que se correspondem com a ironia e o humor de mal gosto dos personagens de Fluxo-­‐floema. Em Hilst e Camargo, o traço mais marcante que nos remete a uma das essências do grotesco é o esgar do crânio nu. A caveira em Iberê e Hilda expressa isso. Como explica Paulo Ribeiro: Ao substituir a "máscara habitual", que oculta um semblante vivo e que respira debaixo dela, a máscara se converte ela mesma no semblante do homem. [...] O crânio com seu esgar, motivo muito consistente para uma configuração do grotesco. (RIBEIRO, 2010, p. 331)

A imagem da caveira é um signo importante tanto na obra do pintor quanto na da escritora. Na obra de Iberê Camargo, constato o aparecimento do "Eterno Sorriso" em 1983 na pintura Hora II. A série Hora é caracterizada pela presença de signos memorialísticos do pintor, como os carretéis e os dados. E no caminhar da sequência das pinturas os signos foram transmutando em setas, cabeças, mãos e ossos. Na pintura Hora II percebe-­‐se a transmutação dos signos em crânios. Pode-­‐se observar a presença de dois crânios: um em cima à esquerda, em tons azuis e na posição de 3/4. E o outro à direita, na parte inferior da tela, ao lado de uma cabeça que nos olha de frente. Em cima à


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direita, percebe-­‐se a presença de um carretel vermelho, pintado de forma quase abstrata. Ao que pude perceber nas pinturas de Iberê, do início de sua carreira até o final, esta é a primeira pintura na qual aparece a figura do crânio, imagem que tornou-­‐se recorrente até os últimos trabalhos: "Minha pintura é um diálogo com a morte." (CAMARGO, op cit, LAGNADO, 1994, p.103)

Figura 90 -­‐ Iberê Camargo, Hora II, 1984. Óleo sobre tela, 132 x 93 cm.


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Particularmente, a imagem do corpo morto, finito, em fase de decomposição embora ainda vivo, o tempo-­‐corpo, a velhice, a decrepitude, representados pela imagem da caveira, é a imagem do corpo recorrente em Hilst e em Camargo. Ambos têm a memória como base de suas construções artísticas. A memória como uma arqueologia, que deve ser escavada com as mãos e com cuidado. Isso reflete a importância da tradição na obra desses dois artistas. A tradição que representa o passado, aquilo que não volta jamais. A morte.

Bem, parece-­‐me que o tema mais constante, o que aparece mais em minha obra, é a problemática da morte. Quero dizer que ela esteve constante, presente, em toda minha poesia, em todos os homens e mulheres, meus personagens; todos eles, em muitos momentos, se perguntam ou meditam sobre a morte. Porque eles não estão conformados. Também eu não estou conformada com esse conceito da maioria das pessoas de que a morte é definitiva. (HILST, 2013, p.32)

Em Iberê, a imagem da caveira tem como ponto de partida as pinturas da série de óleos Hora (1983), e é na tela Hora II que a imagem da caveira aparece mais explicitamente. Porém, na série de quatro óleos denominada Fantasmagorias, 1986-­‐ 1987, a figura toma proporções mais radicais, e Iberê, no intuito de tomar o corpo e deformá-­‐lo, apresenta figuras descarnadas e esqueléticas: Nesses quatro quadros, além do crânio exposto como "máscara", levando ao estranhamento, são os esqueletos, com seu conteúdo macabro, que reiteram de maneira consistente a entrada de Iberê no grotesco modernista. O horror presente nessas telas é o indício de toda a posterior desfiguração do modelo. Elas são produtos dos seus pesadelos e temores, com os quais o homem-­‐pintor se debatia num duelo absurdo. (RIBEIRO, 2010, p. 331)

4.1. O CORPO POLÍTICO Gostaria de apresentar agora, um trabalho de Iberê Camargo que tem um procedimento peculiar em toda a sua obra.


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No fim de 1983, o jornal Zero Hora de Porto Alegre, convidou vários artistas para realizarem uma exposição nas ruas da cidade. Os artistas deveriam produzir suas obras para serem expostas em placas de outdoor. A história mostra que tempos políticos nervosos não só cobram dos artistas alguma resposta e tomada de posição, como interrogam a própria arte sobre seu papel na sociedade. E em 1983 o Brasil estava em agitação com o movimento que buscava o fim da ditadura militar e as eleições diretas. O objetivo do projeto do jornal Zero Hora era o engajamento de um grupo de artistas, que levariam um pouco de arte às ruas de Porto Alegre. Entre os participantes estava Iberê Camargo, gaúcho reconhecido àquela altura como um dos grandes pintores brasileiros, que se reambientava em seu retorno ao Estado, depois de décadas vivendo no Rio de Janeiro. O posicionamento político é uma marca comum nos trabalhos de Hilda Hilst e de Iberê Camargo. Ambos recusavam a desigualdade, a opressão e a corrupção. Bradavam contra a ignorância e a falta de educação. Entendiam a relação direta da exploração capitalista com a derrocada de um projeto de bem estar social. Entretanto, nem a escritora, nem o pintor, acreditavam em uma linha de fuga pela via da política partidária. Iberê produziu e publicou diversas charges em jornal com o pseudônimo Maqui: Porque você assina charges com o pseudônimo Maqui, que remete à resistência francesa na época da invasão alemã na segunda guerra mundial? Porque eu sou um indignado, que deseja um país melhor. Nunca fui omisso. Sou um homem da resistência, da denúncia, sou um maqui. Acho que a charge é um excelente veículo para expressar problemas do momento, comentar coisas que não teriam lugar na minha pintura, onde as questões são mais essenciais e menos factuais. Se Fernando Pessoa tinha seus heterônimos, por que eu não posso ter os meus? (CAMARGO, 2016, p. 20)

Hilda também escreveu e publicou para o jornal Correio Popular, de Campinas, entre 1992 e 1995. Crônicas, geralmente publicadas aos domingos: Ler aquelas crônicas da primeira metade dos anos 1990, especialmente no que diz respeito à sua indignação contra a roubalheira generalizada do governo e a insensibilidade venal e cruel dos políticos, é seguramente tão atual hoje quanto no tempo em que as escreveu. Quase digo que o que ela disse antes, apenas agora se


231 revela em toda a sua densidade e mau cheiro. Mas não era profecia, não, longe disso: é apenas continuidade cabal e aperfeiçoada do mesmo merdel de "quinto mundo". (PÉCORA, 2007, p. 18)

Assim, confirmo a presença marcante da política nas obras de ambos. Porém, nenhum deles apresenta uma posição panfletária ou partidária. Ambos apresentam a imagem do corpo-­‐político bem particular e pessoal, marcada por uma descrença absoluta. "Obsceno não é o cu, mas as bombas de Napalm. As verdadeiras obscenidades, as políticas, ninguém toca nisso." (HILST, 2014, p.260) O outdoor comemorativo de fim de ano, que Iberê pintou (fig. 91) para o projeto do jornal Zero Hora, foi um trabalho com características diferenciadas de toda a sua obra. Esse trabalho foi o que mais se aproximou de questões relativas à arte contemporânea. Em primeiro lugar pela questão do suporte. A obra foi concebida em uma placa de outdoor, que é um elemento da publicidade, uma contaminação intermidiática que é uma característica contemporânea bem conhecida da pop art. Outra questão relativa ao suporte é quanto à efemeridade da obra. Ela tem um tempo de vida determinado, ela só existe enquanto ação. Este trabalho de Camargo se aproxima muito dos procedimentos das performances, modalidade artística que existe enquanto ato e, muitas vezes, só podemos conhecê-­‐la através de registros de filmagens ou fotográficos. Como é o caso dessa obra do pintor, que foi toda registrada em fotografias. Porém, a pintura foi feita para ficar ao tempo, pintada em papéis de cartazes de outdoor. Quando acabaram os contratos de locação, foram arrancados. Esta questão é presente na arte contemporânea quando artistas questionam o mercado de arte, a arte como produto de bens de consumo e acumulação. A arte urbana dialoga com esse painel de Camargo. Em entrevista ao jornal Zero Hora a curadora do projeto dos outdooors e da exposição individual de Iberê Camargo "Diálogos no tempo" (2016), Angélica Moraes responde: No projeto dos outdoors com trabalhos artísticos, como foi a participação de Iberê? O país vivia a ebulição da campanha das Diretas Já!, e os artistas plásticos gaúchos estavam fortemente envolvidos em manifestações e passeatas. Todos os artistas tiveram total liberdade de tema. A maioria fez trabalhos que aludiam à campanha das Diretas. Iberê já apoiava essa causa e usava um macacão dos postos de gasolina Ipiranga com o logo da empresa, nas costas, transformado por ele no slogan "Grito do Ipiranga Já". Mas sua primeira experiência em arte urbana tratou da paz mundial.


232 Ele pintou um trágico mural que remete ao holocausto nuclear e dialoga com a Criação de Adão, de Michelângelo, para a Capela Sistina. Creio que esse momento da vida de Iberê diz muito para os tempos atuais.29

Figura 91 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1983. Acrílica sobre papel, 900 x 300 cm.

Figura 9230

29 Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-­‐e-­‐lazer/noticia/2016/04/exposicao-­‐resgata-­‐ envolvimento-­‐de-­‐ibere-­‐camargo-­‐com-­‐a-­‐agitacao-­‐politica-­‐dos-­‐anos-­‐1980-­‐5757346.html> Acesso 23/08/2018.

30

Idem


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Outra questão importante deste trabalho de Camargo em outdoor, é o diálogo com a tradição. A arte contemporânea é caracterizada, do ponto de vista histórico e criativo, por projetos artísticos desenvolvidos pelos artistas contemporâneos em diálogo com coleções históricas dos museus de arte antiga. Neste caso, Camargo, dialoga com seu grande mestre, o pintor da Capela Sistina. O que se vê, nesse dialogo de Camargo e Michelângelo, é uma tradução intersemiótica, ou também, uma reescrita criativa. De qualquer forma, a tradução, no sentido amplo de releitura, reescrita ou transcrição, aparece como grande diretriz da criação poética. E o recurso à tradição, como fonte para novas criações, vem sendo incansavelmente frisado pela crítica e pela criação pós-­‐moderna. Como se os artistas contemporâneos quisessem tirar a poeira do passado das obras cânones clássicas, podendo assim reutilizá-­‐las, transformando-­‐as de tal forma que, em vez de objetos de contemplação, o objeto artístico torna-­‐se objeto de pensamento. O outdoor de Iberê Camargo é uma peça artística com grande carga política. Enquanto seus colegas inspiravam-­‐se na temática das Diretas Já!, que era uma questão da sociedade brasileira no momento, Camargo tratou de questões mais essenciais do ser humano, das guerras, do armamento nuclear, das atrocidades capazes pelo homem. Era a questão da natureza humana que importava: "O Brasil é contra o brasileiro. Somos antropófagos. [...] Deus tem seus erros. O principal deles foi criar o homem." (CAMARGO, 2016, p. 16) Ou em "O Unicórnio" quando o personagem narrador: O genocídio, os requintes de crueldade, homens que estão comendo homens, mulheres de teta murcha sangrando, cadáveres de criancinhas, milhares de pessoas apodrecendo, opressão, sangue em todos os caminhos, é preciso responder com sangue, basta de palavras, mate-­‐se, você, aí, mate-­‐se, você com a boca entupida de palavras. (HILST, 2003, p. 191)

No outdoor de Camargo a imagem da caveira é presente de forma dominante, e as cores também são as características desta fase -­‐ o preto, o vermelho e o azul. O pintor usa a imagem de Michelângelo, da A criação de Adão, como uma crítica a um Deus que põe suas criações em um mundo brutal, onde todos os seres caminham para a morte. Camargo e Hilst tinham sérias críticas ao "Deus todo poderoso" que trata seus filhos como cobaias, diz o personagem do conto "O Unicórnio":


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Então você acredita que Deus é o mal? E o sol, o mar, o verde, as estrelinhas? Olha, é assim: os homens não colocam as cobaias em caixas limpas, transparentes, cheias de comidinhas e de brinquedinhos? A um sinal as cobaias tocam os brinquedinhos, as luzinhas se acendem e as cobaias comem as comidinhas. É, isso é. Mas não é só isso. Não. Os homens injetam todos as doenças do mundo nas cobaias. Para salvar o homem. Então, minha velha, deus também faz isso conosco, só que as cobaias somos nós e existimos e estamos aqui para salvar esse Deus que nos faz de cobaias. Não, não. [...] acho que Deus se alimenta de todas as nossas misérias. (HILST, 2003, p. 157)

É assim o Deus do outdoor de Iberê Camargo. Um Deus que nos legou a angústia da morte. A finitude.

Figuras 93 e 94 -­‐ Iberê pintando o outdoor comemorativo de Ano Novo no ateliê da Rua Lopo Gonçalves, Poto alegre, 1983. Fotos: Martin Streibel

Figuras 95, 96 e 97 -­‐ Iberê Camargo, Estudos para outdoor comemorativo de Ano Novo, 1983.

A velhice, é também uma imagem do corpo comum em Hilst e em Camargo: "ah, Ruisis vai envelhecendo, [...] é, Ruisis envelhece rapidissimamente." (HILST, 2003, p. 43) ou: "Ruiska está velho sim, eu digo que está moço, está velho, uma fundura de


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olhos, um vazio de carnes." (HILST, 2003, p. 46) Camargo, em sua obra, também exercita sua observação da figura humana. O artista construiu infinitas conotações para nos aproximar dessas humanidades. Como na série Desastre (1987), em que retratou carcaças de carros amontoados em um ferro velho. Iberê usou essas carcaças, objetos aparentemente inanimados, ou seja, sem alma, como uma metáfora do corpo: soturnas reflexões sobre a velhice e a obsolescência patrocinada pelo consumismo. Pode-­‐se pensar que a série Desastre é uma (con)sequência da série Manequins, que também pensava a questão do corpo explorado pelo consumismo, a beleza fútil e pré-­‐determinada. No fim sobra tão pouco -­‐ diz.-­‐ Sabe o que sobra mesmo para nós velhos? É a certeza de que não há mais nada que se possa fazer para que não se seja tão obsessivo, tanta entrega ao que a gente faz na vida. A vida é cruel. A vida é miserável. Miserável como essa mão. (CAMARGO op cit RIBEIRO, 1996, p. 44) Vem a história da finitude, da degradação do corpo. A carne acaba, e depois disso -­‐ depois disso, nada. (HILST, 2014, p. 260)

Figura 98 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, da série Desastre, 1987. Grafite e lápis Stabilotone sobre papel 21 x 31,7 cm.


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Além das formas inanimadas para conotar a imagem do corpo, a escritora e o pintor também se valeram de um bestiário para indiciar o corpo e a alma humana. Como já apontei, ambos têm uma vasta lista de animais que habitam suas obras. Entretanto identifiquei o rato, o sapo e o cachorro como os animais comuns aos bestiários de Hilst e de Camargo: "Os cães podem me comer o coração, eu vou matar esses cães, eu vou matá-­‐los. Você tem um revólver? Uma faca? Um veneno?" (HILST, 2003, p. 155) Ou mais adiante: Eu tinha pensado em escrever a estória de um homem muito simples, um homem que nunca havia visto o mar, nem conhecido uma mulher. Ele era um carpinteiro. Ele não entendia o mundo, não entendia. E ele se apaixonou por uma mulher que sabia tudo sobre o mundo. A mulher fez uma porcaria com ele. [...] Ele começou a correr e chegou até a colina mais alta da cidade. Já era noite. Ele deitou-­‐se sobre a terra, respirou e de manhã encontraram o corpo e vários cães ao redor. Os cães estavam comendo o corpo? Não, os cães não entendiam como era possível que um cão não tivesse pelos, nem corpo de cão. Depois os cães se deitaram em cima dele e ficaram ali até que o corpo apodrecesse. (HILST, 2003, p. 156)

Na imagem da figura 100 observa-­‐se um homem deitado na diagonal do papel. Ele apresenta um corpo desgastado e velho, seus dentes aparecem de forma grotesca e sua boca semiaberta parece morta. As narinas aparecem como as narinas de um morto no caixão. Seu braço direito estende-­‐se perpendicularmente e os dedos se abrem. À sua direita, um cachorro sentado olha seu corpo tranquilamente como se esperasse algo acontecer. Porém, à sua esquerda, vê-­‐se outro cachorro que se aproxima sorrateiramente, como se espreitasse o momento de atacar. Os olhos do cão sugerem maldade, o homem está inerte, entregue ao acaso.


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Figura 99 -­‐ Iberê Camargo, Sem título, 1991. Caneta esferográfica sobre papel, 23 x 34 cm.

A esquerda do desenho encontra-­‐se uma figura feminina, agachada, nua, com os braços apoiados nos joelhos. Trata-­‐se de uma figura grotesca, corpo de mulher e cabeça de gata. Essa figura representa a femme fatale, e seu sexo exposto frontalmente indica o grau de sexualidade dessa personagem. Uma pussycat, uma gatinha sexual e, ao dialogarmos este desenho com a passagem do texto de Hilst, podemos perceber que: "A mulher fez uma porcaria com ele." (idem); provavelmente este homem foi traído. Tanto o texto de Hilst quanto este desenho de Camargo, remetem à fatalidade feminina. Gilles Néret, em seu texto no livro Pussycats (2003) cita um trecho de Simone de Beauvoir do livro O segundo sexo: "O cio feminino é suave palpitação de um molusco; ela espreita como a planta carnívora, o pântano onde se afundam insetos e crianças; ela é sucção, ventosa, ela é resina e visgo..." (BEAUVOIR op cit NÉRET, 2003, p. 14) E mais à frente:


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Porque o sexo da mulher é igualmente para o homem essa gruta maléfica que leva tudo aos Infernos, segundo os gregos antigos, para quem a Morte era "oca e obscura como a mulher". (Idem, p. 13)

O rato também é uma imagem comum à obra de ambos. No livro, a escritora cita este animal em diversos momentos, algumas vezes em uma atmosfera abjeta: "olha aqui um rato, que fedor." (HILST, 2003, p. 53) Mas a imagem do rato em Hilst que mais dialoga com a imagem do rato em Iberê aparece na passagem do conto "O Unicórnio", quando a personagem narradora conta uma história para outra personagem. É a história de um rato que tentava subir num muro mas ele nunca conseguia, pois o muro era muito alto e as pedras do muro eram muito lisas. À noite, quando o rato dormia, cansado de tentar escalar o muro, sonhava que chegava ao alto e avistava a paisagem, as montanhas, os rios, as árvores, enfim, uma pequena parte de um mundo novo. (Idem p. 183) Esta passagem refere-­‐se à peça de teatro escrita por Hilda Hilst em 1967 chamada Rato no muro (HILST, 2000, p. 61), e está presente até na sua poesia: Os amantes no quarto Os ratos no muro A menina Nos longos corredores do colégio (HILST, 1970, p. 11)

Em Camargo, a imagem do rato também aparece de forma abjeta. No seu livro No andar do tempo (2012), ele escreve, em 1952, o conto "O rato", onde o personagem Terêncio acorda de um pesadelo onde sonha que está perdendo os dentes (mais uma vez, os dentes). Horrorizado, introduz os dedos na boca para fixá-­‐los aos maxilares. Um guincho estridente o assusta, um rumor insuportável. Embora receoso, Terêncio caminha até ao banheiro, de onde vem o barulho. Descobre um ratão na banheira, debatendo-­‐se na água ensaboada, suja, usada de véspera. Desesperado, o rato tenta subir, sem sucesso, pelas paredes escorregadias da banheira. Terêncio sente muito asco do rato, e de muitas maneiras tenta tirá-­‐lo de lá. Depois de muito custo, e muito nojo, Terêncio consegue levar o rato para fora de sua casa e o despeja na rua:


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...devolve o rato à cidade adormecida. O rato, estropiado, arrasta-­‐se ao longo da sarjeta procurando um buraco para esconder-­‐se. Terêncio o contempla. Depois o persegue, o alcança e salta enorme, pesado, com os dois pés sobre seu corpo molhado: um esguicho de sangue escapa do focinho, O asfalto tinge-­‐se de vermelho, as vísceras escapam do ventre e da boca do rato esmagado. Terêncio sente palpitar debaixo dos pés aquela carne macia, peluda e quente. (CAMARGO, 2012, p. 27)

Figura 100, 101, 102 -­‐ Iberê Camargo, ilustrações para o conto "O rato". 1990. Nanquim sobre papel, 21 x 31, cm cada.

Tanto o rato de Hilst quanto o rato de Camargo tentam subir desesperadamente por uma parede escorregadia. Ambos almejam uma mudança de ambiente que possa proporcionar uma vida melhor, e ambos, assim que conseguem, têm um fim trágico. Pode-­‐se interpretar a imagem do rato como a imagem do ser humano que tenta desesperadamente uma vida melhor, sempre caminhando para a morte. O sapo também aparece nas pinturas de Camargo e também em Fluxo-­‐floema, quando Ruiska diz: "Vou mergulhando no poço. O olho encarnado do sapo no fundo do poço. No fundo do poço o olho encarnado do. Sapo no fundo do poço. Sapofundo. Que bonito sapofundo. Há cadáveres por aqui. Ah, isso há." (HILST, 2003, p. 43)


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Fig.103 -­‐ Iberê Camargo, À beira da Fig. 104 -­‐ Iberê Camargo, Ilustração da lagoa, 1988. Lápis Stabilotone para o conto "À beira da lagoa", sobre papel, 33,1 x 22 cm. 1988, tinta de esferográfica e nanquim sobre papel, 33,4 x 22 cm.

O sapo, segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, no seu Dicionário de Símbolos (2016), é um animal que traz em si o símbolo da feiura e do grotesco. Está representado pela noite e pela Lua. Segundo eles, sapo é a Deusa da Lua. O que se explica pela predileção do animal por recantos sombrios e úmidos. O sapo é um anunciador da chuva, por isso aquele que lhe fizer mal corre o risco de ser fulminado pelo céu. O sapo está em afinidade com o sexo da mulher, provocando, por ocasião do coito, a flacidez pós-­‐ejaculatória do pênis. Além do simbolismo sexual, o sapo está relacionado com o conceito de morte e de renovação. Nas tradições europeias de magia, o sapo é considerado uma das formas do demônio. O sapo seria um espírito maléfico, responsável pelo fato da morte instalar-­‐se na terra. (CHAVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 803-­‐804) Identifiquei também, entre a obra da escritora e do pintor, algumas coincidências metafísicas. Não encontrei em lugar algum, referência sobre um possível encontro entreHilst e camargo, provavelmente nunca se conheceram. Viveram em épocas e lugares diferentes. Tinham um código de linguagem diferente, um verbal o outro


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visual, apesar de Camargo se aventurar na escrita e Hilst na pintura. Porém, algumas ocorrências são comuns aos dois. Sabe-­‐se que Hilst tem um potente trabalho na área da dramaturgia. Oito textos teatrais, finalizados entre 1967 e 1969 (Fluxo-­‐floema foi escrito em 1970) compõem a produção da escritora nas artes dramáticas. Pela época, sua dramaturgia dialoga com o período ditatorial brasileiro. Ela trabalha com alguns arquétipos e questiona os limites humanos, a violência, a fé e a ausência de fé, diante de uma situação extremamente injusta. A peça O verdugo (1968), foi citada indiretamente no conto "O Unicórnio": O verdugo. O verdugo deve se sentir muito sozinho, não? As noites devem ser compridas, será que ele não imagina que uma noite dessas vão matá-­‐lo? Como serão os sonhos de um verdugo? Como será um verdugo quando come carne? Agora não existem mais verdugos. Não, agora somos todos verdugos. (HILST, 2003, p. 158)

Camargo também tinha uma atuante presença nas artes dramáticas. A relação com a dramaturgia é uma face pouco conhecida de sua obra. No acervo da Fundação Iberê Camargo31 pude ver estudos de boca de cena e figurinos para o Balé Rudá, peça de Heitor Villa-­‐Lobos jamais executada pelo compositor em vida. Além de um conjunto de oito painéis de 1960, criado a partir da lenda-­‐conto "A Salamanca do Jarau", de Simões Lopes Neto. No curta-­‐metragem Presságio (1992), de Renato Falcão, Camargo desenha o ator Manoel Aranha enquanto este vive um personagem da peça. No acervo da Fundação Iberê Camargo também consta os guaches criados pelo pintor para uma encenação de Luigi Pirandello – O Homem com a Flor na Boca -­‐, cuja atuação de Manoel Aranha, quando já atingido pelo HIV nos anos de 1990, levou Camargo à comovente performance em seu estúdio que pode ser visto no filme O Pintor (1995) de Joel Pizzini. Uma série de guaches de 1986 ilustra a peça As Criadas, de Jean Genet, motivada pela montagem do grupo Ói Nóis Aqui Traveiz (intitulada As Domésticas).

31

http://iberecamargo.org.br/acervo/


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No livro Fluxo-­‐floema de Hilst a figura de Jean Genet aparece quando dois personagens conversam: "O Genet ...pois é, é o Genet. (HILST, 2003, p. 154) A obra de ambos trazem um diálogo com o teatro e as outras artes. A intermidialidade é um conceito que identifiquei nas obras do pintor e da escritora, a partir do diálogo de ambos com diferentes códigos de linguagem e a contaminação dessas linguagens em suas obras. Camargo, além do seu ofício de pintor, desenhista e gravador, também manuseava as letras com desenvoltura, como já visto aqui. Porém, o que não é tão conhecido, são os dotes plásticos de Hilda Hilst. Com o advento da Flip (Hilda Hilst foi a escritora homenageada na Feira Literária de Paraty, 2018), foi montado no evento uma instalação chamada Casa Hilda Hilst, onde foram expostos desenhos e pinturas inéditos da escritora, trabalhos que foram parte essencial do processo criativo da autora.

Figura 10532 -­‐ Pintura de Hilda Hilst. Figura 106 -­‐ Pintura de Hilda Hilst.

32

Fig. 105, 106, 107, 108: Disponível em:< https://gq.globo.com/Cultura/noticia/2018/07/casa-hilda-hilst-apresentadesenhos-ineditos-da-autora-na-flip-2018.html >


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Figura 107-­‐ Pintura de Hilda Hilst. Figura 108 -­‐ Desenho de Hilda Hilst. As figuras 105 a 108 são trabalhos inéditos da escritora, que até então conservavam-­‐se guardadas na Casa do Sol. Acredito que não seria inconveniência ou inadequação apontar evidentes correspondências entre esses trabalhos plásticos de Hilst e os desenhos de Camargo. As cores de Hilst são bem próximas da paleta do pintor -­‐ o azul, o vermelho e o ocre. Os traços pretos marcam as formas e realçam os desenhos, como em Camargo. Nitidamente, podemos perceber a não importância da representação naturalista do modelo. É notável que nesses trabalhos de Hilst, como em seus textos, não há uma intenção narrativa ou de uma comunicação direta com o expectador. O que ela busca nesses trabalhos plásticos é a sensação. Indiscutivelmente, o desenho em linhas, feito com caneta esferográfica, se aproxima ainda mais da linguagem gráfica de Iberê Camargo. Podem ser apenas coincidências, mas que servem para marcar ainda mais as relações que identifiquei entre a obra de Hilda Hilst e de Iberê Camargo.


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4.2 -­‐ UM ESGAR MAIS QUE IMPERFEITO Hilda Hilst e Iberê Camargo nunca se conheceram. Provavelmente nenhum dos dois nunca mencionou o trabalho, ou sequer o nome do outro. Viveram em cidades diferentes e em tempos diferentes. Entretanto, pude identificar várias correspondências entre seus procedimentos criativos e temas. O texto de Hilst, repleto de imagens, impregna-­‐se pelo pictural de Camargo e vice-­‐ versa. Ambos diluem-­‐se entre si em uma sutil emulsão, e sem remeterem às obras um do outro tecem relações in absentia, ou seja, alusões genéricas, indiretas, da escritora ao pintor e do pintor à escritora. São correspondências. Para tanto, convoca-­‐se a competência do leitor e do expectador, sua grade de associações culturais e artísticas, seu museu imaginário. (OLIVEIRA, 2012, p. 86) A construção da imagética do corpo dialoga em diversos momentos, principalmente com a morte. Ambos usam esse arquétipo do cadáver, cadere, caído, a imagem do corpo grotesco, velho e próximo à terra. A imagem da caveira também é elencada em diversos momentos como a imagem de um corpo eterno, a imagem da memória, tão prezada tanto à escritora quanto ao pintor. A imagem do corpo em Hilst e em Iberê também está vinculada não ao medo da morte, pois essa é certa, é rainha, chega a qualquer hora, mas está associada à angústia de viver, do corpo exposto a um existir doído e injusto. O medo também se reflete nesses corpos representados pela autora e pelo pintor, mas o medo da opressão e da violência vivida em tempos onde o homem subjuga o próprio homem. Com isso, tem-­‐se, nas duas obras, a imagem do grito, o grito de terror e de dor. Apresenta-­‐se também, diante de uma tragédia iminente, um corpo irônico, pessimista, capaz do mais horrível riso grotesco. Um corpo que apresenta-­‐se desprovido de carnes, com ossos e vísceras expostas. Um corpo fantasmagórico. Em Hilda Hilst e nas pinturas de Iberê Camargo, o corpo também é apresentado de forma metafórica, onde animais de reputação grotesca e abjeta como ratos, serpentes, sapos, cães sarnentos e famintos, são convocados para expressarem situações humanas. Até carcaças de carros abandonados em ferro-­‐velhos são


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utilizadas para representar a nossa finitude, e a obsolescência programada pelo capitalismo. Tudo isso produzido em um fluxo de consciência, onde palavras, cores e linhas, são convocadas diretamente da alma e atiradas violentamente, na frente do leitor/expectador escancarando uma existência determinada por suplícios.


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CAPÍTULO 5 -­‐ O CORPO INTERSEMIÓTICO Neste capítulo, apresento os resultados dos trabalhos práticos que venho realizando desde o início da pesquisa. A partir dos conceitos de tradução intersemiótica e de intermidialidade, pelo viés de um projeto artístico pessoal, em que são propostas experiências estéticas relacionadas às correspondências entre o livro Fluxo-­‐floema de Hilda Hilst e as pinturas de Iberê Camargo. Este capítulo se articula com os conceitos da arte contemporânea, procedimentos artísticos, linguagem e mídias, bem como seus desdobramentos com as tecnologias digitais. As análises se voltam, primeiramente, ao ato de traduzir criativamente, com base na construção de um Atlas imagético que permite captar, apropriar e ordenar como memória visual, numerosas "imagens-­‐documentos". Em seguida, o objeto de análise, texto ou pintura, é dirigido para experimentações suscetíveis de provocar transmutações formais e semânticas nas imagens. Segundo Julio Plaza (2003) tradução intersemiótica, ou transmutação, é aquela caracterizada por um tipo de tradução que consiste na interpretação dos signos verbais, por meio de sistemas de signos não verbais ou a transmutação de um sistema de signo para outro, como por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura, ou vice-­‐versa. Aqui, o que ocorre é uma tradução criativa dos diálogos estéticos de Iberê Camargo e Hilda Hilst para o meu trabalho pessoal. O processo tradutor intersemiótico sofre as influências não somente dos procedimentos da linguagem, como também dos suportes e dos meios empregados, pois cada expressão artística se transforma radicalmente pela influência dos meios de produção. E toda produção é uma sensação pessoal, já que a arte é a conversão de uma sensação em um objeto. Assim, pode-­‐se concluir que toda arte é uma conversão de uma sensação em outra sensação. (PLAZA, 2003, p. 11) Como premissa de um processo tradutório, após as análises das obras propostas nesta tese, desenvolvi um Atlas em um arquivo digital. São imagens que evidenciam


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as relações entre o livro e o universo de Hilda Hilst, e de Iberê Camargo e suas maneiras de olhar o mundo, e se revelam através de pequenas narrativas visuais. Em 1924 Aby Warburg deu início a seu Atlas Mnemosyne, um trabalho ímpar no que diz respeito ao método e ao uso de imagens nas artes visuais . Até aquele momento quase ninguém tinha realizado trabalhos com fotografia. Warburg afixou mil reproduções fotográficas com grampos sobre painéis forrados de tecido preto. A última versão do Atlas Mnemosyne continha 63 painéis de 170 por 140 centímetros repletos de fotografias. Depois de Warburg tornou-­‐se urgente repensar o papel das imagens e da arte em uma necessária reformulação do ofício antropológico. Aby Warburg (1866-­‐1929) é hoje conhecido como o pai da iconologia moderna. Foi também historiador das artes e antropólogo. O seu Atlas de Imagens Mnemosyne é, segundo seu próprio desejo, “uma história da arte sem palavras”33 A constituição de arquivos é muito praticada hoje na arte contemporânea. O pintor alemão Gerhard Richter acumulou, durante anos, imagens que funcionam como fontes potenciais para suas pinturas34.

Figura 10935 -­‐ Abby Warburg Figura 11036 -­‐ Gerhard Richter, Atlas, 1962 a 2013 Atlas Mnemosine, painel 47, 1944 (in progress) a 1929.

33

SAMAIN, Etienne. As “Mnemosyne(s)” de Aby Warburg: Entre Antropologia, Imagens e Arte. Revista Poiésis, nº 17, p. 29-51, Jul. de 2011. 34 <https://www.gerhard-richter.com/en/art/atlas/atlas-17677/?&p=1&sp=32> 35 36

Fig. 110: Disponível em: <https://warburg.library.cornell.edu/panel/47> Fig. 111: <https://www.gerhard-richter.com/en/art/atlas/atlas-17677/?&p=1&sp=32>


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Comecei a compor meu Atlas durante as primeiras leituras do livro Fluxo-­‐floema. As pinturas de Iberê também me suscitaram outras imagens. O Atlas tem um sentido enciclopédico, alimentado por impulsos pessoais, temporários, pela pesquisa contínua da imagética do corpo, e por analogias e metáforas com as obras de Camargo e de Hilst. Além de imagens fotográficas, também reuni algumas dezenas de fragmentos de filmes e vídeos para possíveis trabalhos em movimento, como referências para animações e vídeo instalações. Trata-­‐se de se apropriar, filmar e fotografar o universo circunscrito da imagem do corpo nas obras-­‐objeto desta pesquisa. Também reuni fotos de personalidades, filósofos e escritores que apareciam no decorrer das leituras. Além de imagens de obras de arte relacionadas ao universo hilstiano e iberiano. Uma coleção de imagens tomadas da internet, fotos de arquivos pessoais, fotos produzidas por mim e filmagens, que demandaram em seguida um processo de arquivamento digital. Essa coleção se constitui um work-­‐in-­‐progress de fragmentos, um banco de imagens constantemente alimentado, que conta hoje com cerca de mil fotos digitais e 150 filmes e fragmentos de filmes, recolhidos em diferentes locais: na natureza em zonas urbanas do Brasil, da Alemanha, Portugal e Estados Unidos. E em diferentes qualidades de arquivo, tanto profissionais como em baixa resolução, quando apropriadas da internet, celulares e câmeras portáteis. O ordenamento pela data, lugares e sujeitos, já confere sentido ao Atlas, sendo evidente que essa organização forma um tipo de diário de bordo das leituras, e supõem, de algum modo, uma ordem simbólica do real. Além disso organizei esses arquivos imagéticos em pastas: nomes dos contos; Hilda Hilst; Iberê Camargo e geral. Até o momento meu Atlas conta com trinta pranchas no formato 42 x 60 cm (A2). Empreender um projeto artístico que implica num processo tradutório intersemiótico demanda um grande conhecimento do procedimento em si e dos procedimentos plásticos propostos na realização das obras. A pintura, o desenho, a gravura, a fotografia, a animação e o vídeo demandam muitos anos de experiência e prática constante. No meu caso, trabalho com esses suportes há mais de trinta anos ininterruptos. Quero enfatizar que o processo criativo de um projeto artístico depende muito do lastro imagético do artista que se propõe a realizá-­‐lo. Levando


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em consideração que, na tradução intersemiótica, tornam-­‐se relevantes as relações entre as sensações, meios e códigos. Ou seja, as imagens suscitadas em um processo tradutor intersemiótico são imagens geradas a partir da criação livre do artista.

Figura 112 -­‐ Atlas Andre Araujo.


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Este trabalho discute o tema do corpo a partir de três abordagens, procurando em cada uma identificar aproximações dentro do universo das artes visuais. 1-­‐ as abordagens sobre o livro Fluxo-­‐floema; 2-­‐ as pinturas de Iberê Camargo; 3-­‐ o diálogo existente entre as duas obras que são complementares, articulam-­‐se entre si e estabelecem dinâmicas para compreender a construção da imagem do corpo. A primeira imagem que surge diante dessa questão é a de um corpo representado mimeticamente da natureza. Mas interessa-­‐me as diferentes dimensões da representação dos corpos: seja ela o grotesco, o fragmento, o abjeto, o político e também as singulares linhas que demarcam um corpo, e até a própria ausência desse corpo. Os conceitos gerais deste trabalho, incluiram a intermidialidade e a tradução intersemiótica. Para cada conceito foram necessárias diferentes abordagens práticas, e para cada abordagem propus uma contextualização geral, a partir de um levantamento de trabalhos da história das artes visuais que se aproximam de diferentes tópicos relacionados ao corpo humano. Procurei destacar trabalhos de diferentes artistas que discutem o tema do corpo associado a cada um dos subtemas. Um caderno de processo foi muito importante na criação e na construção de uma série que denominei de NADANADA, nome extraído do conto "Floema" do livro Fluxo-­‐floema. A palavra "nada" tornou-­‐se bastante significativa para este trabalho. No dicionário Aurélio: "nada: 1. nenhuma coisa, coisa alguma; 2. de modo nenhum, absolutamente não; 3. a não existência; 4. ninharia; 5. pessoa insignificante, seja pelo aspecto físico, seja pelo intelectual ou moral; 6. o que se opõe ao ser, em graus e sentidos diversos, não ser." Pude observar, com base nas análises do livro de Hilda Hilst e nas pinturas de Iberê Camargo, bem como nos conceitos suscitados nesta pesquisa, a aproximação das definições da palavra "nada" com a imagética do corpo nas obras dos dois artistas, no que diz respeito à não existência, ou seja à morte. A pessoa insignificante pelo aspecto moral como forma de abjeção. Pelo aspecto físico como um corpo grotesco. Também o fragmento, se corresponde à definição de nada ao se opor ao ser, ao todo.


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Com base nas imagens do Atlas que construí, criei diversos cadernos de esboços de processos. Esses cadernos foram muito importantes para nortear e projetar as criações a partir das obras pesquisadas. O caderno de processo funciona como um diário de bordo e ele evita que ideias pertinentes, e também impertinentes, diluam-­‐ se no turbilhão criativo. Pelo caderno de esboços pode-­‐se voltar na pesquisa prática, saber onde a ideia mudou ou tomou outras características. De certa forma o caderno dá uma segurança ao artista, pois trabalhos anotados sem pretensão em um determinado momento, em outro, depois de agregadas novas ideias e conceitos, podem ser movidas com maior segurança estética.


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Figura 112 -­‐ Andre Araujo, Cadernos de processo, 2015 a 2019 (in progress)


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As imagens esboçadas nos cadernos suscitaram a utilização de diversas mídias e suportes. Dividi a série NADANADA em pinturas, desenhos, gravuras, livro de artista, fotografia, performance, vídeo e animações. Calcado nos conceitos de intermidialidade, pude perceber a transposição fronteiriça de uma mídia à outra. Ou seja, quando uma pintura dialoga com uma música, uma performance ou torna-­‐se uma animação e também vice-­‐versa. E pude constatar como a multiplicidade de mídias, transmuta-­‐se horizontalmente. Gostaria de ressaltar que, devido ao espaço restrito e à quantidade de pinturas e desenhos (produzi 30 pinturas e 100 desenhos), apresentarei apenas algumas peças escolhidas.

5.1. NADANADA 5.1.1-­‐ PINTURA As pinturas que criei para a série NADANADA baseia-­‐se na desconstrução da imagem do corpo. Essas pinturas assinalam o limite extremo da desvalorização, da degradação voluntária não apenas da figura, mas da pintura como arte da figuração. Como em Hilst e Camargo, essas imagens que criei são uma valorização do sub-­‐ humano, uma crença na queda da humanidade. Influenciado pelas figuras agônicas de Iberê e de Bacon, distorci o corpo humano, fragmentei-­‐o, tencionei-­‐o no auge das sensações. Corpos revelados pela dissecação ou despidos para o sacrifício. Como em Hilst, Camargo e Bacon expus suas carnes e seus orifícios a despeito de sua condição humana. Estão presentes nas pinturas a degradação e o sofrimento, corpos concretos que não são idealizados pela beleza e sim pelo grotesco. Muito mais morte do que vida. O corpo é intacto, mas não é inteiro, e em muitas vezes faltam-­‐lhe os pés, parte dos braços ou outra parte qualquer. Sendo assim, quanto à figura humana e a representação do tema, não se observa relação com os ideais clássicos de beleza.


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Pelo contrário, o que se pode observar é uma necessidade de romper com toda e qualquer idealização do corpo e mostrar suas verdades, suas deformidades, revelando-­‐os como fantasmagorias aparentes na forma e no conteúdo da pintura. Como em Iberê Camargo e em Francis Bacon, procurei demonstrar o quanto é significativo para a história da pintura e também para a história da arte o ato de desconstrução da figura humana e da representação do corpo. Procurei, através da série NADANADA, explorar o tema da figura humana por meio de fragmentos de corpos como mãos, torsos e pés. Com base nos preceitos do Mestre Iberê Camargo, em suas cores e no tratamento das figuras, deformadas e retorcidas, refleti a possibilidade de dissolver a figura por um viés figurativo-­‐abstrato. A partir da década de 1980 a pintura é marcada pelo ecletismo generalizado, variedade inquietante de estilos e por obras que refletem causas e preocupações individuais. O retorno à pintura é marcado pela atemporalidade e fragmentação. Optar em trabalhar com fragmentos, significou para mim escolher as vibrações das sensações que emergem da imagem do corpo apresentado em partes, criando novas possibilidades de interpretação, ao invés de optar por um conteúdo ideológico monolítico, inteiro e fechado. Essas sensações são necessariamente descontínuas e são signos de um desejo de mutações contínuas. Por meio de personagens sombrios, solitários e disformes, presentes nos objetos de análise, busco o drama do sujeito contemporâneo, suas incertezas, angústias e medo. As imagens dos corpos das figuras representadas nas minhas pinturas tem um aspecto sombrio, são escuras, cadavéricas e expressivas. São corpos quase sempre nus e disformes, e é recorrente a imagem da caveira ou outros ossos. Estas pinturas são contaminadas por colagens de fragmentos de textos e texturas que nada dizem a não ser pela sua qualidade plástica. Ou seja, essas pinturas reproduzem uma despreocupação com os cânones de produção pictórica ou com a tradição clássica de uma pureza da pintura. Pelo contrário, ao pintar a figura humana, baseada na estética hilstiana e iberiana, busquei expressá-­‐la como num espelho de personagens mórbidos e assustadores. A feiúra dos corpos é sustentada pelo horror e por expressões faciais de abandono e alienação. Minhas figuras são


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representações da vida, na forma do corpo humano, o corpo físico, que sofre as dores da existência para além da sua condição física, sofrem as dores da alma. Proponho uma figura humana desfigurada, grosseira, sem acabamento, abandonada à própria sorte, com o intuito de intrigar e causar repulsa ao mesmo tempo, procurando convocar o expectador para sensações de martírio do corpo humano. Assim, posso afirmar que minhas pinturas se relacionam, estética e simbolicamente, com a obra do pintor irlandês Francis Bacon e com a estética neo-­‐ expressionista alemã de Markus Lüpertz e Georg Baselitz. E principalmente, da pintura feita no Brasil, de Iberê Camargo, que desliza na direção de uma arte de reflexão metafísica. Portanto, as pinturas que realizei para esta série corroboram com as discussões da arte contemporânea, no que diz respeito à presença das analogias e das metáforas na pintura, num modo de abordar a imagem artística, não como aquilo que é olhado, pelo que ela reflete e faz pensar. Tal procedimento possibilita dizer outra coisa, ou seja, ultrapassar o que a obra apresenta em sua visualidade e materialidade. Assim, remete-­‐se a imagem pictórica para além de sua visibilidade evidente.

Figura 113 -­‐ Andre Araujo, Antes da sombra, 300 x 100 cm (tríptico) 100 x 100 cm cada painel. Técnica mista sobre tela. 2017

A pintura "Antes da sombra" (fig.113) é um tríptico, onde pode-­‐se observar vários signos postos em fluxo: o corpo fragmentado, um ônibus em chamas, provavelmente


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fruto de uma manifestação, a caveira, a mão e a nudez. Importante ressaltar que no primeiro e no terceiro painel, observa-­‐se a imagem de um fragmento de braço postos à esquerda. Tais fragmentos são referência à pintura de Tiradentes esquartejado (1893), um óleo do pintor Pedro Américo. Que teve uma releitura do pintor Cândido Portinari (1948).

Fig. 114-­‐ Pedro Américo, Tiradentes Fig. 11537-­‐ Cândido Portinari, Braço de esquartejado, 1893. Óleo sobre tela, Tiradentes, 1949. Gravura em metal, 170 x 165 cm. 39,5 x 26,5 cm.

Fig. 116 -­‐ Cândido Portinari, Tiradentes, 1948. Têmpera sobre tela, 309 X 1767 cm.

37 Fig. 116: Disponível em: < http://www.onzedinheiros.lel.br/peca.asp?ID=1856897&ctd=13&tot=&tipo=36 >


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Pode-­‐se reconhecer nestas obras a presença da morte grotesca, da violência do homem, e do poder das leis sumárias. Américo apresenta uma pintura naturalista ao retratar a cena mimeticamente. Portinari tende ao expressionismo cubista de sua época. Portinari deixou diversos estudos que ele fez para o painel. Um deles, a figura 116, é uma gravura em metal. Pode-­‐se constatar o grau de abjeção destas pinturas e estudos de carnes expostas, sangue e ossos. Trata-­‐se de um esquartejamento. Ao todo produzi 35 pinturas nos mais variados formatos, desde tamanhos monumentais de 4,5 metros de largura até algumas menores de 20 cm de largura. Um trabalho que dialoga com Hilda Hilst e com Iberê Camargo e principalmente com questões pessoais minhas, relativas a minha memória e a minha vivência. E que traz, além da minha bagagem como artista, um aprendizado com a autora e o pintor: antes de mais nada a arte deve refletir afectos interiores do artista. Só assim pode tornar-­‐se uma arte pessoal, passional e verdadeira. Para tanto, separei aqui algumas obras para apresentar um pequeno recorte da série de pinturas.

Figura 117 -­‐ Andre Araujo, Sem título, 2018. Téc. mista sobre tela, 30 x 40 cm


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Figura 118 -­‐ Andre Araujo, Sem título, 2018. Téc. mista sobre tela, 30 x 40 cm

Figura 119 -­‐ Andre Araujo, Sem título, 2018. Téc. mista sobre tela, 30 x 40 cm


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Figura 120 -­‐ Andre Araujo, O pogo é fogo, 2017. 60 x 35 cm. Técnica mista sobre tela (tríptico), 20 x 35 cm cada painel.

Figura 121 -­‐ Andre Araujo, Ode ao fim dos tempos, 2018. Técnica mista sobre tela 60 x 80 cm


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Figura 122 Figura 123

Figura 124 Figura 125 Figura 122 a 125 -­‐ Andre Araujo, Sem título. Técnica mista sobre tela, 30 x 40 cm

Figura 126 -­‐ Andre Araujo, A casa da senhora H, 2018. Acrílica sobre tela, 120 x 80 cm (bíptico), 60 x 80 cm cada painel


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Figura 127 -­‐ Andre Araujo, Ruiska, 2018. Técnica mista sobre tela, 28,5 x 57 cm. (bíptico)

Figura 128 -­‐ Andre Araujo, Sem título, 2018. Téc. mista sobre tela, 30 x 40 cm


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Figura 129 -­‐ Andre Araujo, A mulher do Cornudo com a figueira à janela, 2018. Técnica mista sobre tela, 30 x 40 cm

Figura 130 -­‐ Andre Araujo, Corpo terra, 2018. Técnica mista sobre tela, 28,5 x 57 cm. (bíptico).


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Nestas pinturas, o leitor atento irá identificar alguns signos que correspondem ao imaginário do livro, como por exemplo, a cabeça na terra, o porco com assas, o poço da Casa do Sol, a Morte, as varandas em arco da Casa do Sol, o dedo de Deus, da pintura de Miguel Ângelo da Capela Sistina. A figueira e outros elementos referentes a imagética de Camargo, como a terra arrasada, a caveira etc. 5.1.2-­‐ DESENHO Os desenhos que produzi para a série NADANADA, tiveram importante relevância nas análises práticas desta pesquisa. O desenho, como linguagem plástica, sempre esteve em lugar de destaque, tanto na minha formação, como hoje no meu trabalho de artista plástico. O desenho talvez seja a modalidade artística mais primitiva do ser humano. Tudo é desenho. Embora ninguém admita, alguns resistem à ideia da autonomia do desenho como expressão artística. Muitos ainda preferem observar o desenho como arte menor, sob o caráter de rascunho, esboço, ou preparação para algo mais nobre, sobretudo na comparação com a pintura. Em seus Escritos sobre a arte, Ingres que era um exímio desenhista e pintor escreve: O desenho é a probidade da arte. Desenhar não quer dizer simplesmente reproduzir contornos; o desenho não consiste simplesmente no traço; o desenho é também a expressão, a forma interior, o plano, o modelo. Vejam o que sobra depois disso! O desenho compreende três quartos e meio daquilo que constitui a pintura. Se eu tivesse que pôr um letreiro sobre minha porta, escreveria: Escola de desenho, e tenho certeza que formaria pintores. O desenho abrange tudo, com exceção do matiz. É preciso desenhar sempre, desenhar com os olhos quando não se pode usar o lápis. Enquanto vocês não alinharem a observação à prática, não farão nada de realmente bom. (INGRES, 2006, p. 84-­‐85)

Iberê Camargo era um desenhista obcecado pelo seu trabalho. Seus desenhos são caracterizados pela gestualidade, a impetuosidade diante do papel e o constante fazer e desfazer das figuras. O importante em seu processo de criação dele era a busca e não o encontro. Uma obra em processo.


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Em 2011 a Fundação Iberê Camargo, sob a curadoria de Eduardo Veras, realizou a exposição A linha incontornável: desenhos de Iberê Camargo. Veras percebeu que, apesar da quantidade e da qualidade dos desenhos de Camargo, eles quase nunca apareceram em primeiro plano. Isso deu o mote para a exposição: Examinei mais de três mil desenhos recolhidos do acervo da Fundação Iberê Camargo: grafites, bico de pena, pastéis, estudos, esboços, riscos com esferográfica, anotações, aguadas, guaches. Certamente, encontrei obras singelas, delicadas, desleixadas até, mas descobri que, naquilo que é decisivo, eu estivera enganado. Há qualidades no desenho que são muito particulares desse gênero -­‐ síntese, fluidez, clareza -­‐ mas também ali Iberê aparece em convulsão, intenso, apaixonado, como aquele que nos acostumamos a admirar na pintura. (VERAS, 2011, p. 8)

O desenho também é um gênero originário na minha história. Tenho comigo os primeiros desenhos de minha infância. Costumo dizer que nunca passei um dia sequer sem desenhar. Em muitos momentos da minha vida trabalhei como desenhista: de quadrinhos, de propaganda e de design. Na minha obra plástica o desenho tem uma posição de destaque, pois produzo obcecadamente cadernos e mais cadernos de desenhos. Seja de esboços, de anotações de futuros projetos ou cadernos de artista. Para a série NADANADA produzi uma centena de desenhos em diversas técnicas de grafite, nanquim, pastel, guache e em muitos casos utilizei a técnica mista de colagens e materiais variados. Os guaches, embora criados com o uso de cor, meio líquido e pincéis, mantêm características próprias do desenho, em especial com o papel como suporte e a predominância da linha. Os guaches são peças de uma completude maior na comparação por exemplo com os rabiscos a grafite ou esferográfica, mas, em razão da diluição e da transparência, não atingem a densidade matérica tão característica da pintura. Porém, muitos desenhos à guache que realizei aproximam-­‐se bastante da técnica da pintura, pela sua materialidade e empastamento, mas continuam sendo classificados como desenho pelo suporte em papel. Do que discordo, pois essas categorias já foram largamente estilhaçadas por artistas, inclusive contemporâneos de Iberê. Desde os anos de 1960 e 70, na cena internacional e


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também no Brasil, diferentes artistas trataram de expandir os conceitos de escultura, pintura, cinema e também de desenho. Segundo Eduardo Veras: Para o observador, o desenho talvez tenha uma vantagem sobre a pintura. O desenho, quase sempre, deixa à mostra, graças à linha, o caminho de sua construção. Como expectador, olhando para uma linha, posso reconstruir o gesto do artista ao riscá-­‐la. A linha encerra uma narrativa (por menos narrativo que se pretenda o desenho): a linha tem um começo, um desenvolvimento e um epílogo. [...] Desenhos gestuais nos lembram que a linha é o registro de um movimento no tempo -­‐ tanto quanto ela é o registro de uma ação no espaço. (idem, p. 19)

A seguir apresento uma pequena mostra dos mais de cem desenhos que produzi para a série NADANADA.

Figura 131 -­‐ Andre Araujo, Corpo de luta, 2016 Figura 132 -­‐ Andre Araujo, Corpo terra, 2016. Nanquim e caneta esferográfica sobre papel, Nanquim sobre papel, 33,5 x 45,5 cm. 33,5 x 45,5 cm.


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Figura 133-­‐ Andre Araujo, Divina Trindade, 2017. Pastel oleoso e colagem sobre papel, 31 x 42 cm.


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Figura 134 Figura 135

Figura 136 Figura 137

Figura 138 Figura 139 Figuras 134 a 139 -­‐ Andre Araujo, Sem título, 2018. Nanquim sobre papel, 17 x 17 cm


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Figura 140 -­‐ Andre Araujo, Lázarus, 2018. Aquarela sobre papel, 17 x 17 cm

Figura 141 -­‐ Andre Araujo, Lázarus, 2018. Figura 142 -­‐ Andre Araujo, Lázarus, 2018. Nanquim e caneta posca sobre papel, Nanquim sobre papel, 17 x 17 cm


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5.1.3 -­‐ GRAVURA A gravura também foi uma das linguagens que utilizei para produzir a série NADANADA. A gravura, seja em metal, xilogravura, litografia ou serigrafia, é uma prática recorrente no meu fazer de artista plástico. No ano de 2000, nas Oficinas Culturais Oswald de Andrade, em São Paulo, iniciei minhas pesquisas no campo da gravura em metal, certamente por influência do trabalho gráfico de Iberê Camargo. Porém, as artes gráficas aparecem na minha trajetória desde os meus primeiros trabalhos comerciais, quando trabalhei em uma gráfica como arte finalista. Sempre me interessaram muito as técnicas de impressão, seja comercial ou artística. Na minha formação acadêmica em Artes Plásticas na Escola Guignard em Belo horizonte, formei com ênfase em gravura. Sou especialista em gravura em metal, serigrafia e litografia por aquela instituição. A professora Maria do Carmo Freitas Veneroso, da Escola de Belas Artes da UFMG, em seu artigo "O campo ampliado da gravura: continuidades, rupturas, cruzamentos e contaminações" (2014), reflete justamente sobre o que me proponho a pesquisar em termos de contaminações formais nas artes plásticas. Veneroso baseia-­‐se no conceito de Rosalind Krauss acerca de um campo ampliado, no qual a gravura dialoga com outras linguagens. Krauss, segundo Veneroso, determina que esse conceito de campo ampliado pode se tornar infinitamente maleável. Ou seja, em contrapartida a uma demanda modernista de pureza e separação dos vários meios de expressão, a prática pós-­‐modernista preza por um estilhaçamento das fronteiras entre esses meios, fazendo com que múltiplas linguagens operem conjuntamente em uma obra. Segundo Veneroso: A troca frequente que tem existido entre as linguagens artísticas faz com que, ao interagirem umas com as outras, elas contribuam para que ocorra uma ruptura com antigos parâmetros que preservaram a autonomia das disciplinas, exigindo assim, novas formas de abordagem. (VENEROSO, 2014, p. 172)

Assim, estender o campo das artes para além da pura visualidade, tem sido o questionamento de muitos artistas. A gravura tem como objetivo contemporâneo


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ampliar seu campo de atuação. É o que percebe-­‐se no procedimento de vários artistas contemporâneos ao lançarem mão de processos comerciais de impressão. Iberê Camargo tem uma extensa obra gráfica. Por toda a sua existência não se furtou aos mais variados experimentos com gravura. Produziu em xilogravura, em monotipia, em serigrafia, , no metal, a maneira-­‐negra e a gravura em cores. Sua extensa obra gráfica é composta de inúmeras experiências. Camargo era um curioso, fazia para saber como se faz. Mas a meu ver, é em procedimentos técnicos específicos, como no metal, nas águas-­‐fortes e águas-­‐tintas, que ele conseguiu maior desenvoltura para a construção da imagem desejada. O artista deixou um grande legado para a história da gravura brasileira. Além do seu completo Catálogo Raisonné (2006). Camargo também lançou um livro, A gravura (1992), no qual compartilha todo o seu conhecimento técnico, resultado de anos de pesquisa e estudos, que se iniciaram em 1948 em Roma, com o professor Carlos Alberto Petrucci. No livro, Iberê Camargo, de forma bastante didática, mostra as diversas técnicas da gravura em metal e até desenha um projeto de uma prensa para impressão de gravuras. Um livro bastante útil para iniciantes e mesmo para apreciadores da arte gráfica do metal. Nele, Camargo ensina praticamente todas as maneiras de se fazer gravura. Uma atitude bastante generosa do Mestre, visto que, comumente, essas "receitas" eram escondidas dos discípulos como uma forma de poder. Camargo desfez esta ditadura e mudou a relação entre professor e aluno, divulgando para quem quer que quisesse saber, depois de ter compilado com muito esforço, todas as técnicas da gravura. Entretanto, apesar de muito experimento, domínio da técnica e compartilhamento do conhecimento, os experimentos de Camargo giravam dentro da técnica tradicional da gravura. O artista sempre prezou uma pureza da linguagem. Seja na pintura, que era a óleo sobre tela, no desenho ou na gravura, ele não contaminou sua arte com outras linguagens. Cada produção artística era produzida dentro de suas técnicas tradicionais . O que proponho para a série NADANADA, com o intuito de corroborar com a arte contemporânea, que é onde minha arte se insere, é uma contaminação


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intermidiática de linguagens. Para começar, esta pesquisa já tem, em sua gênese, o diálogo estreito entre a palavra e a imagem. Estas contaminações muitas vezes envolvem, por exemplo, procedimentos de impressão . Como explica Veneroso: Sem dúvida o desenvolvimento e a popularização de novos processos de impressão colaboraram fortemente para que a imagem gráfica inundasse até mesmo o espaço público, na forma de intervenções urbanas. A apropriação de imagens pré-­‐existentes, a colagem, os processos fotográficos, a busca da tridimensionalidade na gravura são alguns dos fatores que colaboraram para a expansão do modo de atuação dos gravadores. (VENEROSO, 2014, p. 175)

Para a professora de gravura, tem havido uma nítida aproximação entre impressão, texto e imagem, e este diálogo tem desfocado as fronteiras que definiam a gravura tradicional. Enquanto vários gravadores continuaram fiéis às técnicas tradicionais de gravura, como foi o caso de Iberê Camargo, outros passaram a estender os seus limites para além daqueles usualmente aceitos. Em todas as peças produzidas para a série NADANADA, pode-­‐se notar uma estreita relação entre a palavra e a imagem. Não só nas gravuras, mas também nas pinturas, nos desenhos, no vídeo, nas performances, ou seja, toda a série está calcada no diálogo entre diferentes códigos de linguagens. Este diálogo se revela em contaminações aparentes nas peças, onde utilizei a apropriação de fragmentos da realidade urbana: material impresso como textos tipográficos, jornais, partituras musicais, embalagens, bilhetes de metrô, de forma a introduzir a palavra na produção visual. Uma prática recorrente para dadaístas, surrealistas e cubistas, e que a contemporaneidade retoma valorizando esta vocação das artes visuais em dialogar com a escrita. A apropriação do jornal, e de outros materiais impressos de segunda mão vai ser feita por vários artistas contemporâneos do século XX e início do século XXI. Esses procedimentos intermidiáticos é o que vem norteando a minha produção plástica, como apresento aqui. Na série NADANADA a opção de técnica para a produção das gravuras foi a da gravura digital. O processo de impressão digital pode ser visto como uma metáfora da contaminação da gravura tradicional, ressaltando assim que não faz mais sentido


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tentar preservar uma suposta pureza da gravura, já que o diálogo entre arte e não-­‐ arte pode ser estimulante. Afinal a gravura já traz, inerente a seu DNA, a genética da impureza já que, em termos históricos, foi utilizada com finalidades não artísticas como o jornal, rótulos e ilustrações científicas, ou seja, circuitos que não são reconhecidos como arte. Assim essa impureza do meio torna-­‐se excitante ao ser colocada à luz da produção artística. Ou seja, talvez seja desafiador buscar não a diferenciação entre gravura comercial e gravura artística, mas algo na direção oposta, que questione, coloque em xeque, provoque um curto-­‐circuito na diferenciação, como já vem sendo feito por vários artistas. (VENEROSO, 2014, p. 177)

A criação das gravuras impressas da série, por meio digital, envolveu diversos procedimentos, inclusive manuais. Foi gerado um arquivo que funcionou como uma matriz, a partir da qual foram impressas as cópias. Dessas cópias vinte foram selecionadas para integrar uma edição. Por fim o arquivo-­‐matriz foi destruído, e assim a edição adquiriu a categoria artística, ou seja, não poderá mais ser impressa. Em uma edição de gravura tradicional, é comum a destruição da matriz e a impressão desta matriz destruída para que se tenha certeza que não haverá impressões eternas. E assim as cópias feitas tornam-­‐se objetos artísticos, assinados e numerados. Nota-­‐se que, apesar da técnica de impressão digital, alguns procedimentos tradicionais foram preservados, não havendo assim exclusão de procedimentos, mas uma soma, onde técnicas contemporâneas de última geração tecnológica dialogam com procedimentos tradicionais artísticos. Como esclarece Maria do Carmo Veneroso:

A gravura atravessa, neste início de milênio, uma fase de mudanças e indefinições, que também caracterizam grande parte da arte que vem sendo produzida. Neste contexto, não seria adequado recorrer a conceitos fixos, por tratar-­‐se de um terreno movediço, e por isso mesmo, instigante e desafiador, onde não cabem definições fechadas. Aos poucos, processos de impressão digital estão sendo disponibilizados, para que também possam ser incorporados pelos artistas aos seus trabalhos, fazendo com que a matriz numérica seja usada e valorizada, lado a lado com as matrizes físicas, ampliando ainda mais o campo da gravura. (VENEROSO, 2014, p. 182)


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Fig. 143 Fig. 144

Fig. 145 Fig. 146 Figura 143 a 146 -­‐ Andre Araujo, Entranhas da d'alma, 2018. Gravura digital, 31 x 42 cm


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5.1.4 -­‐ FOTOGRAFIA A fotografia também é um meio de expressão presente neste trabalho. A começar pelo Atlas imagético, construído como fonte inspiradora para futuros trabalhos, ou pelas fotografias produzidas por mim para a série NADANADA. As fotografias que compõem o Atlas são fotografias apropriadas dos mais diferentes lugares e mídias. São fotografias de jornais, físicos e virtuais, de sites, frames de filmes, enfim, imagens de arquivo. Além do Atlas Imagético, produzi uma série fotográfica baseada nos contextos e conceitos vindos das obras de Hilda Hilst e de Iberê Camargo. São imagens inspiradas nas obras desses dois artistas, porém com uma leitura pessoal e com características tradutórias. O objetivo inicial foi recolher imagens do mundo, enquanto produtos das leituras de Fluxo-­‐floema e análises das pinturas de Iberê Camargo. São imagens captadas de maneira informal, às vezes distraída, e sem preocupação de fazer uma foto muito bem-­‐sucedida, em termos técnicos de iluminação e enquadramento. Sabe-­‐se que entre as técnicas de figuração, a fotografia é aquela que está mais próxima do objeto referente. Porém há um corte entre o real e a realidade da foto. Segundo Boris Kossoy: A fotografia é sempre uma representação a partir do real intermediada pelo fotógrafo que a produz segundo sua forma particular de compreensão daquele real, seu repertório, sua ideologia. A fotografia é, como já vimos reiteradas vezes, o resultado de um processo de criação/construção técnico, cultural e estético elaborado pelo fotógrafo. A imagem de qualquer objeto ou situação documentada pode ser dramatizada ou estetizada, de acordo com a ênfase pretendida pelo fotógrafo em função da finalidade ou aplicação a que se destina. (KOSSOY, 2002, p. 52)

A fotografia responde com eficácia às necessidades dos artistas contemporâneos enquanto ferramenta disponível para se captar imagens do real e, posteriormente, submetê-­‐las a processos de hibridação e edição. Com as possibilidades tecnológicas disponíveis, os artistas lançaram mão da fotografia a fim de chegar a outros resultados. Como se, com o tratamento digital, os dados do real fossem


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contaminados por uma infinidade de variações possíveis, deslocando esses dados para o âmbito da ficção. Na produção da série fotográfica RESTOSDENADA, imagens capturadas digitalmente, em percursos pela cidade ou campo, foram manipuladas e editadas no programa Photoshop, e assim ressignificadas metaforicamente no contexto hilstiano e iberiano da morte, da finitude, do abandono e da miséria humana, tornando-­‐se assim ficção. Vale a pena ressaltar que todas as fotografias desta subsérie foram feitas por mim e nenhuma foi apropriada de outros fotógrafos. Como explica Boris Kossoy: O processo de construção da representação não se finaliza com a materialização da imagem através do processo de criação do fotógrafo. Não é nenhuma novidade que a produção da representação, tal como é empreendida pelo fotógrafo, tem sequência ao longo da editoração da imagem. É o que poderíamos chamar de pós-­‐producão, isto é, quando a imagem se vê objeto de uma série de "adaptações". (KOSSOY, 2002, p. 54)

Abaixo algumas fotografias para a subsérie Restos de nada:


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Figura 147 -­‐ Andre Araujo, Série RESTOS DE NADA, 2018. Fotografia.

Outra subsérie que produzi para a série fotográfica NADANADA foram as fotografias baseadas nas performances que realizei. Intitulada NADANADADEMIM, esta série reforça os questionamentos levantados pela arte contemporânea que põe em discussão a impossibilidade do registro e documentação da performance, contrariando justamente a afirmação de alguns teóricos de que na performance, por vezes, a obra só adquire significado, tanto para o artista, quanto para o grupo social, no momento exato de sua realização. Na contramão dos que advogam pela rigidez de uma performance entendida como um processo artístico que só ocorre ao vivo, e que a ação do artista precisa de um público para que seja consumada, desenvolvi uma série performática feita exclusivamente para a fotografia e o vídeo. Desta forma, ocorre uma mudança na


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maneira de compreender a performance, já que o público passou a ser importante apenas na observação da obra final, no caso, uma fotografia ou um vídeo. É o que Regina Melim intitula de "ações orientadas para fotografia e vídeo" (MELIM, 2008, p. 49) ressaltando o aspecto performativo empreendido pelo artista diante da câmera, instaurando seu próprio corpo como matéria artística, criando assim um desdobramento das categorias de escultura e pintura. Melim, assim, diferencia a obra do registro. Trazendo à tona não somente questões de performance tradicional mas também preocupações específicas da fotografia e do vídeo. Ressalto que, com esta intenção de produzir performances para vídeo e fotografia, procurei aproximar mais uma vez esta série de conceitos intermidiáticos, visto que este trabalho também ocorre na fronteira. Este tipo de produção artística, apesar de ser de caráter autoral, só acontece com a participação de outros profissionais. É portanto um trabalho colaborativo, pois faz-­‐se necessário para a realização da obra artística, além do artista performer, o fotógrafo, o cinegrafista, o editor, o sonorizador, o produtor . Assim, a questão da autoria é apresentada de forma múltipla, pois mesmo que haja a direção do artista performático, cada profissional impõe também sua marca autoral. A seguir, apresento as fotografias da série CORPOTERRA, que também rendeu uma vídeo performance e possivelmente ainda renderá outras produções. Esta performance foi inspirada na questão da terra, sua relação com a morte e com a vida. A presença do sangue também é incorporada. Também pode-­‐se relacionar esta performance com a questão da metamorfose e das diversas máscaras sociais.


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Fig. 148 -­‐ Andre Araujo, Performance Corpo Terra, 2018


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5.1.5 -­‐ ANIMAÇÃO Como mais uma forma de exercício intermidiático, desenvolvi, com base nas minhas pinturas, uma série de fragmentos animados, no intuito de apresentar rupturas formais com a bidimensionalidade e mostrar uma pintura expandida para a imagem em movimento e para o som. Minhas pinturas, fotografadas digitalmente, foram a base do processo de criação das animações produzidas para a série NADANADA. Essas fotografias das pinturas, que nesse momento se transformaram em imagens fotográficas das pinturas, foram descarregadas em um computador e retrabalhadas em um programa de edição de imagens (Photoshop). As imagens foram recortadas e repintadas, com uma ferramenta do Photoshop que é um simulacro de pintura a óleo. Posicionando cada elemento em uma camada (layer) diferente do Photoshop pude "descolar" os elementos da pintura que seriam animados. Esse arquivo de Photoshop é então aberto em um programa de animação chamado After Effects. Neste software, é possível movimentar os layers do Photoshop em um determinado tempo pré-­‐estabelecido, numa timeline. Sendo o Photoshop um programa de edição de imagens estáticas e o After Effects um programa de edição de imagens em movimento, ambos trabalham perfeitamente juntos, um como complemento do outro. Tais animações foram feitas para serem exibidas na galeria, em um monitor ao lado das pinturas. Ou seja, o espectador pode observar as mesmas imagens em mídias diferentes, fruindo uma transmutação intermidiática. Pode-­‐se observar com essa produção de animações a grande cadeia tradutória criativa que se sucedeu desde o livro de Hilst e as pinturas de Camargo, passando pelas análises comparativas, seguidas da produção das pinturas, a transposição para a fotografia, os procedimentos de computador, a edição da animação e ao final a instalação em uma sala expositiva. Segundo Arhur Danto, neste caso: A pintura explora dois modos de ser -­‐ apresenta o que os filósofos medievais distinguiam como realidade formal e realidade objetiva, existindo, pode-­‐se dizer, uma como imagem e a outra como realidade. Ela ocupa o espaço do espectador e o espaço fictício de uma personagem num filme. (DANTO, 2007, p. XIII)


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Com estas animações a partir de pinturas, pretendo ressaltar o hibridismo intermidiático presente nesta pesquisa, onde o diálogo entre diferentes linguagens se faz presente em um fluxo infinito e multimidiático.

Figura 149-­‐ Adobe Photoshop

Figura 150-­‐ A imagem é dimensionada para o formato de vídeo


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Figura 151-­‐ A parte que será animada é recortada do fundo

Figura 152-­‐ A imagem que foi recortada, é posicionada nos lugares por onde ela se movimentará


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Figura 153 -­‐ O arquivo do Photoshop é exportado para o After Efects e editado

5.1.6 -­‐ LIVRO DE ARTISTA Outra linguagem produzida para a série NADANADA foram os livros de artista. Escolhi o livro de artista como forma de expressão para este trabalho por se tratar de um local privilegiado das artes, onde podemos ter dentro de uma mesma obra diversas mídias diferentes. Isso naturalmente faz um diálogo com o livro de Hilda Hilst que também é um livro intermidiático. A professora Maria do Carmo Freitas Veneroso nos explica: Os livros de artista utilizam frequentemente a fusão entre mídias que pode ocorrer nas relações intermidiáticas, quando por exemplo palavras e imagens dialogam, sendo que o elemento visual funde-­‐se conceitual e visualmente com as palavras. Os livros de artista podem, pois, ser considerados textos ou gêneros multimídias. (VENEROSO, 2012; p.86)

Foram desenvolvidos dois tipos de livro de artista: um foi criado para ser impresso em gráfica com uma certa tiragem, e o outro para ser uma peça única. Como já foi mencionado antes, inicialmente meu objeto de pesquisa era o livro de


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Hilda Hilst Contos d'escárnio, textos grotescos, porém, no decorrer do processo, mudei para o livro Fluxo-­‐floema por razões já descritas aqui. O fato é que, como a pesquisa em artes prevê uma produção prática concomitante à teórica, criei o livro Olho de Cão (2016) que foi baseado no livro Contos d'escárnio... e que acredito ser relevante apresentar aqui pois fez parte do processo de trabalho. O livro Olho de Cão é um diálogo entre texto e imagem, produzido a partir da transmutação intersemiótica do texto de Hilst para a linguagem visual, e com base na metodologia de pesquisa em artes.

Contos d’escárnio... é um livro intermidiático por conter em seu texto uma

grande diversidade de gêneros e estilos. Como explica Alcir Pécora: “Contos d’escárnio. Textos grotescos (1990), de resto, é um desses típicos livros hilstianos, nos quais ocorre a mistura de gêneros. Certa disposição discursiva anárquica desordena a narrativa, que se compõe sucessivamente como romance memorialístico; diálogos soltos intercalados à história; imitação de certames poéticos à moda das antigas academias; apóstrofes aos leitores, maltratados como ignorantões; apóstrofes aos órgãos sexuais personificados, como apropriações bizarras de lugares-­‐comuns do discurso pornográfico; contos e mini contos com autoria distribuída a diferentes personagens do livro; crônicas políticas; comentários etimológicos e eruditos; crítica literária etc. [...] Há ainda, no mesmo livro, paródias de textos didáticos; textos dramáticos, muito incorretos politicamente, que fazem jus ao título de teatro repulsivo; fábulas e piadas escabrosas; partes de novelas epistolares; excertos filosóficos; textos psicografados etc. -­‐ tudo em sucessão acelerada, como a despencar precipícios e vertigens.” (PÉCORA, 2010; p.15)

Outro fator que dialoga a produção do livro Olho de Cão com os conceitos do livro de artista é o fato de ter sido usado o texto de Hilst, do livro Contos d’escárnio... Isso é uma prática frequente na arte contemporânea e principalmente na produção de livros de artista. “A apropriação de textos e imagens é recorrente ao longo da história da arte, mas a apropriação de livros inteiros é um fenômeno recente. Alguns livros de artista são baseados em uma obra literária ou em um exemplar específico preservando suas marcas de uso.” (CADÔR, 2016; p. 9) O conceito de apropriação se dá também no sentido de deslocamento. Muda-­‐se o lugar do objeto do âmbito da literatura para o lugar das artes visuais. “A apropriação integral de um livro por um


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artista é um novo modo de hipertextualidade, que modifica a obra pelo deslocamento do seu contexto original.” (CADÔR, 2016, p. 390) Ou seja: “Há um deslocamento de gênero da obra, da literatura para as artes visuais, realizado pela inclusão do nome do artista visual na capa do livro. O livro passa a circular no circuito das livrarias especializadas e das galerias de arte.” (CADÔR, 2016, p. 391) Assim, o conceito de autoria também é posto em questão na produção do livro Olho de Cão. Ao apropriar-­‐me dos textos de Hilda Hilst questiono o processo criativo da escritora, que também apropria-­‐se de outros textos e baseia sua criação no emprego de matrizes canônicas de diferentes gêneros da tradição. Aproveito para citar um poema de Glauco Mattoso: A obra é um roubo. O leitor é um bobo. O autor é um ladrão. A autoria é uma usurpação. A criação é uma fraude. Criatividade é repertório. Imaginação é memória. Ideia não é propriedade. (MATTOSO, 2001, S.P. apud. CADÔR, 2016; p.386)

Todas as artes foram exclusivamente criadas para o livro e todas produzidas digitalmente, ou seja, no computador, lembrando que nenhuma arte foi uma reprodução de obras pré-­‐existentes. As artes finais foram criadas com o intuito de obter uma excelente reprodutibilidade técnica. Foram utilizados softwears como o Photoshop para a manipulação de imagens e colagens digitais, o Artrage para pinturas digitais e o Indesign para a paginação e preparação para a impressão na gráfica em tecnologia offset. Prezou-­‐se por uma edição do livro em que constasse o ISBN (International Standard Book Number), e foi produzida uma tiragem de 300 exemplares numerados e assinados. Gostaria de ressaltar que o título do livro Olho de Cão é uma referência a um livro de Hilda Hilst Com meus olhos de cão (1986). É também uma referência à centena de cães que ela criava em sua Casa do Sol e, por fim, uma referência à capa do disco de


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Tom Zé, Todos os olhos (1973), na qual aparece uma fotografia em close de um ânus com uma bola de gude em cima.

Figura 154 -­‐ Caderno de esboços Olho de Cão


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Figura 155-­‐ Caderno de esboços Olho de Cão

Figura 156 -­‐ Caderno de esboços Olho de Cão


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Figura 157 -­‐ Página dupla do livro Olho de Cão

Figura 158 -­‐ Capa do livro Olho de Cão


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Outra produção em Livro de artista feita para essa série foi o livro Corpo-­‐Fluxo (2018). Ao contrário de Olho de Cão, o livro, é uma peça única, que não pode ter uma tiragem impressa. O trabalho foi desenvolvido em um exemplar físico do livro Fluxo-­‐floema, edição de 1970. Trata-­‐se de uma apropriação do livro de Hilst, um livro raro, comprado de segunda mão, onde foi mantido o nome do antigo dono e uma dedicatória de 1971. Neste trabalho foram preservados todos os conteúdos do livro referentes à imagem do corpo -­‐ fragmentos, frases e palavras. As outras partes foram apagadas com alguma intervenção artística: desenho, pintura ou colagem. Ao final temos uma narrativa apropriada e ressignificada com a temática do corpo. Como esclareceu Cadôr, a apropriação integral do livro de Hilst tornou-­‐se um modo de hipertextualidade, , deslocando a obra para um outro contexto. Transmutando o livro de Hilda Hilst da literatura para as artes plásticas.


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Fig. 159

Fig. 160


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Fig. 161 Figura 159 a 161 -­‐ Andre Araujo, Livro artista Fluxo-­‐floema, 2018.

5.1.7 -­‐ VÍDEO Agora apresento o trabalho que considero a síntese intermidiática de toda a série NADANADA. O vídeo NADANADA é uma colagem de tudo o que foi apreendido acerca da construção da imagem do corpo nas obras de Hilst e de Camargo, e incorpora também os trabalhos em diversas linguagens que produzi. O vídeo baseia-­‐se na ideia de fragmento, que permeia toda esta tese. Como já apresentei antes, o fragmento traz uma nova possibilidade, um devir, por assim dizer. O fragmento está sempre na horizontalidade de uma nova conexão. O fragmento é rico, múltiplo, pleno, e é a base deste vídeo. Foi exatamente a questão da fragmentação que me inspirou a produzir o vídeo NADANADA, fazendo uma aproximação dos trabalhos de Hilst e Camargo com os procedimentos metodológicos que Jean-­‐Luc Godard utilizou na série Histoire(s) du


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Cinema (1988). Além da fragmentação estilística, a apropriação e a indefinição de gêneros também aproximaram o vídeo de Godard das obras da escritora e do pintor. Inspirados nos projetos da criação coletiva a fragmentação e a colagem, além do automatismo, apresentam-­‐se como procedimentos principais das práticas surrealistas e outras vanguardas. "Na medida em que tornava plural a atividade criadora a colaboração representava, por si só, uma combinatória análoga à colagem." (MORAES, 2002, p. 47) A palavra surrealismo, segundo Breton:

Defino-­‐a, a seguir, de uma vez por todas: SURREALISMO: s.m. Automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito, ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral. (BRETON, 2001, p. 57-­‐ 58)

Identifiquei alguns desses procedimentos presentes no livro de Hilst e nas pinturas de Camargo, como o fluxo de consciência em Fluxo-­‐floema e as pinturas automáticas de Iberê Camargo. Entretanto, vale ressaltar que o acaso tão presente no fluxo de consciência e no automatismo psíquico não é um acaso qualquer. O acaso muitas vezes passa despercebido, é coisa que não podemos prever e que não faz parte das coisas que nos interessam. O acaso nas artes, por mais aleatório ou induzido, sempre faz parte do que na verdade procuramos. Nós criadores temos uma biblioteca cerebral dos nossos principais interesses. É o que os surrealistas chamavam de "acaso objetivo". O acaso objetivo é o tipo de acaso que ocorre quando temos um olhar treinado para encontrar imagens do nosso interesse. É como na frase de Didi-­‐Huberman, acerca desse olhar: é como andar em uma ruína. Quase tudo está destruído, mas resta algo. O importante é como esse nosso olhar põe esse algo em movimento. Quem não sabe olhar atravessa a ruína sem entender. (DIDI-­‐HUBERMAN apud ALMEIDA, 2015, p.155)


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Este pensamento passa pela a ideia de colecionismo. Ao colecionar imagens e objetos, o artista coletor retira o objeto ou a imagem de suas funções utilitárias e lhe atribui um outro caráter que é estabelecido com os demais componentes da coleção. Em Histoire(s), Godard lança mão de um grande arquivo de imagens, sons e textos que são ressignificados ao serem postos lado a lado com outros fragmentos, criando assim um diálogo, que é o que interessa observar. Como Aby Warburg (1866-­‐1929), que já apresentei, que em seu Atlas de imagens mnemosyne (1924-­‐1929) propõe, ao confrontar diversas imagens, uma nova forma de contar a história da arte, que até então era abordada de forma linear, cronológica e tinha como modelo apenas o canônico. Warburg acreditava que as imagens das "belas artes" dialogavam e se relacionavam com todos os elementos de uma época, gerando assim uma intrincada rede, na qual obras e artistas exercem influência uns sobre os outros. Warburg buscou produzir conhecimento não através de deduções lineares, mas de acordo com as afinidades energéticas e espirituais que ele descobria neste diálogo. Um método que mostra um pensamento denso, em espiral, e que sugere processos de montagem e espacialização, que foi e é muito citado e apropriado por artistas, curadores e pensadores contemporâneos, e que se funda no intervalo e na diferença e não na identidade e no novo. Godard, em Histoire(s), parece apropriar-­‐se desta metodologia ao reunir em seu vídeo fragmentos do escrito, do falado, do sonoro através de um cruzamento incessante desses diferentes materiais com elementos imagéticos das mais variadas ordens. O processo de produção do vídeo NADANADA também perpassa a questão da apropriação de materiais de diferentes códigos e origens. Este procedimento remete à antropofagia cultural presente no Manifesto Atropofágico (1928) de Oswald de Andrade. Wagner Moreira nos explica que essa antropofagia: se refere a um procedimento de apropriação geral que deve ser refinado de acordo com a perspectiva ideológica daquele que devora o outro. Portanto, há o reconhecimento de que todo discurso é uma expressão de poder, além de haver a legitimação do ato de se apropriar do que lhe interessa para um uso próprio que, não necessariamente, deva obedecer o discurso original. A antropofagia cultural é uma espécie de contrabando de conceitos, imagens e procedimentos artístico-­‐


295 culturais que resultam em um entendimento da estética enquanto exercício político. (MOREIRA, 2018, p.216)

Outro fator importante a ressaltar no procedimento criativo do vídeo NADANADA é sem dúvida a questão da montagem. As imagens de diferentes fontes e originárias de procedimentos variados, que jamais intentaram existir juntas, quando postas lado a lado, em um mesmo plano, criam um diálogo que é o que interessa na montagem. "Montagem. Esse aspecto precisa ficar oculto, pois é algo muito importante: consiste em relacionar as coisas entre si e fazer com que as pessoas vejam as coisas..." (GODARD, 1989 p.12) Para Moreira (2018) na montagem, "chama-­‐se a atenção para seu procedimento de justaposição descontínua que, por vezes, gera um grau de tensão acentuado na imagem produzida." (MOREIRA, 2018, p. 227) O projeto do vídeo NADANADA consiste em aplicar o conceito de tradução intersemiótica, baseado nas identificações da construção da imagem do corpo, extraídas do livro Fluxo-­‐floema de Hilda Hilst e também das pinturas de Iberê Camargo . Este trabalho foi desenvolvido a partir das ideias de montagem, colagem, espacialização e intervalo, e utilizando imagens coletadas das mais diversas fontes, como imagens do site Youtube, imagens de acervo de emissoras de televisão, as quais tive acesso, imagens cedidas por outros artistas e imagens que eu produzi, numa tentativa permanente de re-­‐orientação, de apropriação destas imagens enquanto sistemas fragmentários e incompletos. O artista contemporâneo, que trabalha com montagem de imagens e sua apropriação, ressignificando suas verdadeiras raízes, trabalha como um coletor de imagens, como Levi Strauss (1908-­‐ 2009) conceituou: um bricoleur de imagens. Segundo Moreira (2018), essas imagens, criadas a partir de uma qualidade metafórica, apresentam um traço fundamental: chamam o expectador para uma nova leitura pois, como a imagem do artista bricoleur tem interpretações livres, o expectador faz sua própria montagem. Neste caso, é possível poetizar visto a liberdade e as possibilidades da proposta. O expectador é convidado a fazer diversas reflexões acerca do belo, do feio, do grotesco, do abjeto, da morte e de Deus.


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Também questões políticas, de crítica e ironia sobre percepções e sensações do corpo. Nesse momento tudo pode se tornar material para a obra de arte, e a própria arte é questionada sobre sua funcionalidade, comunicação, interpretação e autoria. Trata-­‐se de um híbrido, um monstro, uma criação feita de fragmentos distintos para formar um outro. Essa imagem de alto grau ficcional [...] nesse sentido da metáfora deve-­‐se destacar o movimento que ela provoca na percepção de um objeto, o que instaura um processo de condensação e de um deslocamento do mesmo em relação ao seu modo original de ser percebido. (MOREIRA, 2018, p. 227)

No vídeo, imagens de Hilda Hilst e de Iberê Camargo, apropriadas de entrevistas e de documentários, também aparecem descontextualizadas. Também foram incorporados outros elementos do audiovisual como músicas compostas originalmente para o projeto, músicas apropriadas de Hermam Nitsch, Villa Lobos, da banda de punk rock Olho Seco, canção de ninar finlandesa, ruídos de teclado de digitação, ruídos de animais e filmes pornográficos. Imagens de Hilda Hilst e de Iberê Camargo, apropriadas de entrevistas e de documentários, também aparecem descontextualizadas. A imagem da palavra também é presente no vídeo, como trechos do livro de Hilst, títulos dos quadros de Iberê e um poema de Wagner Moreira, extraído do livro Solos (2015). Este livro de Moreira foi escolhido como parte do escopo verbal do vídeo NADANADA pela relação estético-­‐criativa com o livro de Hilda Hilst, pelo seu procedimento em fluxo de consciência e pelos versos que dialogam com os contos de Fluxo-­‐floema. O poema de Wagner Moreira aparece tanto em sua voz declamando como também escrito. A seguir, proponho uma leitura do poema: aqui nesse tecido desejado espaço fera que se faz humores deliciosos na boca feminil que urge fricção por si adentro bela imagem a que se apresenta a minha frente balançando as pernas em ritmo sincopado esguias em seu se dar aos olhos como um anúncio de um encontro desejado no universo sem palavras escorregadias pernas belas doces em seu suor imaginável o sabor que se abre ao meio subindo corpo adentro que chove chove o vinho licoroso raro singular a se dar inteira em cada parte fremente volúpia no espaço sedutor de uma boca posta em lábios firmes frágeis suculentos líquidos a se multiplicar boca desdobrada em beijo lento forte rijo informe dedos deslizantes pelo suor que só


297 chove um porque um corpo todo sem órgãos sensação palavra imagem cicatriz de imagem nó rítmico potência criadora de todas as imagens mundo todas as imagens metamorfose da mais terrena linguagem multiplicidade monstruosidade palavra imagem fragmento a alastrar o fogo o sangue ágil furor ressoando descontínuo multiplicidade ressonância heterogênea seiva contagiante alucinante ação corpórea terror poder terror irredutível sangue corpo água mundo ar sopro voz fluxo só para bailar terrível e dizer o por derreter junto pele osso carne o corpo exposto no não lugar qualquer coisa que mexe dentro louca coisa mexe sem ser coisa nenhuma porque corpo na sua mínima sutileza de estar por um triz de outras dimensões linha de força em fuga reverberante por aí corpo em seus estados corpo solto o mar nessa quimera revirar o corpo na sua mínima sutileza de estar por um triz simplesmente corpo não coisa exposto fluxo fiama floema fiama fio fama toda a fala que é fragmentária linguagem estranha o seu gosto pela experiência horror no sulco votado à devastação para traçar as mutações a deformação condição do que se quer arte a floresta de uma lógica cheia de raízes secundárias que nunca esteve na vertical a não ser por um fortuito acaso momentâneo em um lance fortuito como os dados o corpo por si mesmo um jogo erótico entre os fluídos que transladam por todos os orifícios possíveis e imagináveis fluxos a jorrarem por aí como um gato de uma perna só a arrastar em escapada de um cão feroz espumante que nunca o alcança sem perdê-­‐lo de vista vizinha que me repele e atrai em um jogo erótico que vá a porra então tamanho poetastro e só a porra porque no cu já leva com gosto regalado se achando sade esparramando merda em um mundo a fragrância das rosas todas e mal pode conter o cheiro adubado que lhe escorre perna abaixo ou boca afora ou mãos ao vento ou putrefato rebento no invertido costume do botar fora o que não presta pelo que digere como festa nem a besta fera se faz tão pouca coisa sombra de ruína descartada da tripa que se quer tem forca para emergir do esgoto em sua curta duração histórica mostrada pela condição democrática de que todo mundo pode ser poeta ao narrar sua micro vivência grotesca beleza mínima por um triz no fio da navalha de uma nudez que pode vir a ser a vagar em fluxo incerto toda excitação disforme que esquece que o belo horror torpor dor mônada atravessada explodida projetada desmembrada incendiada engolida vomitada escarrada fodida despedaçada gozada cheia de som nas vísceras em movimento cinematográfico corpo perdido (MOREIRA, 2015, p. 7-­‐20)

No poema de Wagner Moreira encontramos elementos que são recorrentes no livro de Hilda Hilst e nas pinturas de Iberê Camargo, no que diz respeito à construção da imagem do corpo. Pode-­‐se notar a presença do grotesco, do abjeto, da fragmentação, das palavras de baixo calão, vísceras, uma referência direta ao fluxo e ao título do livro Fluxo-­‐floema. É importante ressaltar que o poema de Moreira não aparece inteiro ou direto como em seu livro. Editei o poema como me interessava ressignificando diversos fragmentos deste. Assim, nessa trama audiovisual, cuja ligação são as pesquisas de Warburg e de Godard, relaciono: imagem, texto, sons e montagens. Concebendo a montagem como instrumento de apropriação de imagens para recontar uma história através de


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metáforas, que trazem a ideia do discurso da imagem, bem como suas livres leituras. Por fim, pretendo estabelecer nesta colagem, uma ligação do cinema com a arte contemporânea e a literatura, no que diz respeito à intermidialidade, promovendo assim novas leituras, novos olhares e novas significações das imagens, importantes para o artista e para o expectador que por elas é atravessado. Pela sua proposta de montagem e edição, o vídeo NADANADA preza pela não-­‐ linearidade e pela aleatoriedade, sugerindo ao expectador desenvolver infinitas interpretações ao acumular fragmentos, sequenciais ou não, e ressignificar as imagens, possibilitando que estas tenham sentidos variados, livre de definições e livre para interpretações.

Figura 162


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Figura 163

Figura 164


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Figura 165

Figura 166


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Figura 167

Figura 168 Figuras 162 a 168 -­‐ Andre Araujo, Frames do vídeo NADANADA, 2018


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CONCLUSÃO O trabalho que compreende uma tese teórico-­‐prática é marcado por um duplo caminho, que envolve uma reflexão sobre o tema escolhido e, simultaneamente, a criação de obras artísticas. É o que se chama de uma pesquisa em artes. O texto apresenta e discute a parte prática como um diário de bordo das experiências sobre os caminhos escolhidos, as dificuldades e mudanças de rotas. E também apresenta o embasamento conceitual com o qual procurei trabalhar ao longo da pesquisa. Nesta tese, a escrita procurou contextualizar os trabalhos práticos, bem como as relações entre a palavra e a imagem nas obras de Hilda Hilst e de Iberê Camargo, estabelecendo associações com referências na história da arte e da literatura. Neste trabalho duplo entre o fazer da escrita e o fazer prático tem-­‐se que lidar com um processo ininterrupto de ir e vir, de um caminho a outro, com uma constante sensação que o outro ainda não está terminado. E, nesse processo, quando se está debruçado sobre um dos lados, o outro fica a chamar. A pesquisa para a escrita foi pautada pelas leituras que ofereceram um campo de descoberta imenso e constelar, onde um autor pode despertar outro, estabelecendo uma rica rede de referências. Já o trabalho prático se baseia na experimentação de ideias, gerando obras que podem se concretizar e integrar o trabalho final, ou serem meros processos que, mesmo incompletos, são parte do procedimento e podem permanecer guardados à espera de novos elementos. As obras de Iberê Camargo e de Hilda Hilst são muito ricas em infinitos aspectos, por isso foi necessário muito esforço para manter-­‐me focado apenas na questão do corpo nas obras desses dois artistas. Na parte escrita desta pesquisa, segui estratégias que permitiram a discussão da temática do corpo em Fluxo-­‐floema e nas pinturas de Iberê Camargo. Essas estratégias, ofereceram-­‐me um levantamento de sentido histórico sobre as transformações que aconteceram ao longo do tempo no universo da literatura e das artes plásticas.


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O corpo tem sido objeto de curiosidade do homem desde que ele tomou consciência de sua materialidade. E vem sendo até hoje motivo de investigações de várias áreas do conhecimento, como a sociologia, as ciências, a antropologia, a literatura, as artes visuais, dentre outras. Na contemporaneidade entende-­‐se que o corpo carrega informações culturais, artísticas, sociais ou políticas. O corpo não é só carne e osso, não se limita à leis da fisiologia, no corpo estão escritas todas as regras, medos e valores de uma determinada sociedade. É justamente por ser considerado um instrumento de comunicação que o corpo foi, e ainda é, usado nas artes visuais e na escrita como elemento de constituição do trabalho de artistas e escritores. Ao olharmos para as linguagens da escrita, da pintura, da escultura, podemos perceber que a representação do corpo é um dos temas mais frequentes dos poetas e artistas, desde o Renascimento. A construção da imagem do corpo nas obras de Iberê Camargo e de Hilda Hilst foi o que norteou esta pesquisa. Identifiquei diversas correspondências entre o pintor e a escritora, no que diz respeito à temática corporal. Tanto em Hilda quanto em Iberê o corpo é a demarcação primeira, e é nele que ambos imprimem suas expressividades, através de uma representação grotesca, abjeta e quase sempre agressiva. Constatei, baseado nas leituras, que mesmo distante fisicamente e temporalmente, o pintor e a escritora apresentam um alto grau de irmandade artística. Seus procedimentos, seja na escrita, seja na visualidade, entrecruzam-­‐se em homologias e diálogos. Numa espécie de desenho esquemático delineei esta tese. Sobretudo, minha intenção foi identificar correspondências entre a escrita e a imagem, numa hipótese de relação acerca do corpo entre as obras do pintor e da escritora. Foi instigante produzir este trabalho múltiplo, onde a identificação dessas relações na construção da imagem do corpo foi uma homenagem a Hilda e a Iberê. Mais do que uma homenagem, trata-­‐se aqui de recuperar aspectos que considero fundamentais em suas obras, e ao procurar evidenciar essas relações procuro também manter viva a obra desses dois nomes fundamentais da arte brasileira.


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Assim, constatada a hipótese, a título de uma conclusão, nunca absoluta já que o término de uma tese é, ou deve ser, muito mais a abertura a novas indagações do que propriamente o encerramento de um problema, pude sublinhar os resultados a partir da construção da imagem do corpo nas obras propostas aqui. Ao longo da pesquisa, tornou-­‐se evidente a hipótese de que há relações entre a obra de Hilda Hilst e as pinturas (na fase final) de Iberê Camargo, no que se refere à imagética corporal. Exemplo disso é a presença das figuras grotescas, da abjeção, a presença da morte e da violência humana nas obras dos dois. Constatei também que, tanto em Hilst quanto em Camargo, a linguagem do corpo aparece sob a égide da fragmentação e da multiplicidade. Ao longo de suas trajetórias artísticas, Hilda Hilst e Iberê Camargo marcaram seus trabalhos por uma extrema entrega aos problemas do corpo e seus mistérios. Entregues a essa busca souberam ser fiéis às suas próprias poéticas. É a partir dessa fidelidade que tantas mudanças ocorreram em suas obras, conforme tive a oportunidade de acompanhar e aqui expor. Tenho certeza de que não esgotei as análises e estudos teóricos pertinentes à temática da construção do corpo. O diminuto espaço de uma tese não permite o esgotamento dessas relações justamente por seu caráter infinito e múltiplo. Afora as questões objetivamente apontadas, a partir das hipóteses e conclusões apresentadas, esta tese indica também algumas questões não explicitadas de forma direta, mas que derivam, de modo geral, dos problemas aqui estudados. Entre essas questões, destaco a importância dos estudos do corpo, no sentido de permitir a visualização de novas perspectivas nos estudos intermidiáticos, sob um olhar mais integrado e menos isolado em relação aos artistas contemporâneos e suas produções. Visto assim, o corpo, sob a luz da intermidialidade, torna-­‐se uma ferramenta para o estudo sistêmico da interarte, a partir dos encontros e desencontros de escritores e artistas visuais, seus silêncios e suas evidências.


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